AUTOR: CICERO DAVID SIEBRA BORGES SOARES

COAUTOR: MARIANA MOTA ARRAES

CURSO DE DIREITO

FACULDADE PARAÍSO DO CEARÁ

O PRINCIPIO DA MORALIDADE E A LEI DE FICHA LIMPA

 

RESUMO: A classe política brasileira não tem sido um exemplo de conduta correta e de bons exemplos para as gerações futuras devido aos constantes escândalos e crimes de distintas modalidades. Marcada por mudanças legislativas frequentes, a política apresenta uma grande novidade para as eleições de 2012: a Lei da Ficha Limpa que tem sido amplamente divulgada nos meios de comunicação, prometendo alterar os rumos da política brasileira. A ilegibilidade de cidadãos por determinado período pode regrar um pouco mais o processo eleitoral e moralizar a política por meio da aplicação da Lei Complementar Nº 135/2010, que dispõe sobre os moldes para a eleição de candidatos com ficha limpa para diminuir a corrupção no Brasil. Esta é uma conquista recente da população brasileira por meio de um instrumento constitucional previsto no artigo 14 da Constituição Federal de 1988, o projeto de iniciativa popular. No entanto, este instrumento tão democrático até hoje só resultou em quatro projetos de lei aprovados. O objetivo principal desse artigo é considerar o contexto da criação da Lei da Ficha Limpa e sua relação com o princípio da Moralidade. Os interesses particulares não podem sobrepor-se e, assim, os maus políticos que não representam a coletividade devem, no mínimo, tornar-se inelegíveis pelo período de 8 anos que a lei estipula. Para ser apreciado pela Câmara dos Deputados, o projeto de Lei da Ficha Limpa foi assinado por mais de 1,3 milhões de cidadãos; depois disso, passou por um longo processo de julgamento de inconstitucionalidade, mas chega para ser experimentada nas eleições de 2012 e é certo que vai movimentar muito esse pleito que ficará marcado na história da política brasileira.

Palavras-chave: Corrupção. Democracia. Inelegibilidade. Lei da Ficha Limpa. Política.

ABSTRACT: The Brazilian political class has not been an example of right conduct and good examples for future generations due to the constant scandals and crimes of various modalities. Marked by frequent changes in law, politics has a great novelty for the 2012 elections: the Lei da Ficha Limpa that has been widely publicized in the media, promising to change the direction of Brazilian politics. The illegibility of citizens for a certain period can regulate a little over the electoral process and moralize politics through the application of Complementary Law Nº 135/2010, which provides for molds for the election of candidates with a clean slate to reduce corruption in Brazil. This is a recent conquest of the Brazilian population by means of a constitutional instrument provided for in Article 14 of the Constitution of 1988, the project initiative. However, this democratic instrument so far only resulted in four bills passed. The main objective of this paper is to consider the context of the creation of the Lei da Ficha Limpa and its relationship with the principle of morality. The interests may not overlap and thus the bad politicians do not represent the community should at least become ineligible for a period of eight years that the law stipulates. To be enjoyed by the Chamber of Deputies, the draft Lei da Ficha Limpa was signed by more than 1.3 million people, after that, went through a lengthy trial process as unconstitutional, but there comes to be experienced in the 2012 elections and is sure to move this very election that will be remembered in the history of Brazilian politics.

Keywords: Corruption. Democracy. Ineligibility. Lei da Ficha Limpa. Policy.

 

INTRODUÇÃO:

A política brasileira, em determinados momentos históricos, ficou marcada por mudanças estruturais quanto à legislação, mas na prática, a grande maioria dos atores ocupantes dos cargos principais no legislativo e no executivo é má protagonista no que condiz a uma atuação regrada pela ética e probidade. As luzes da fama têm focado muito mais os atos indignos e corruptos de políticos que continuam ilesos mediante tantos crimes cometidos contra as regras eleitorais e ao erário público, causando prejuízos inestimáveis ao sistema democrático e à sociedade.

Em 2010, por força e organização da iniciativa popular foi implementada a Lei Complementar Nº 135/2010, que estabeleceu os princípios para a eleição de candidatos com ficha limpa, cujo intuito principal é o de diminuir a corrupção no Brasil.

A Lei da Ficha Limpa é uma conquista recente por meio de um recurso legal, que possibilita a qualquer cidadão interpor projetos de lei à Câmara dos Deputados – a iniciativa popular. No entanto, um instrumento tão democrático implementado pela Constituição Federal de 1988 até hoje resultou em apenas quatro projetos aprovados. A Lei da Ficha Limpa voltada a eleições mais transparentes, após ter ficado no purgatório do Supremo Tribunal Federal desde 2010, entrou em vigor no início do ano de 2012 e foi aplicada ao pleito das Eleições presidenciais neste ano.

Durante a minha pesquisa para a elaboração deste artigo foi interessante notar a quantidade de referências a essa lei nos noticiários online, em jornais e revistas impressas, demonstrando ser um assunto que mobiliza a opinião pública e a sociedade em geral. No entanto, devido à sua aprovação recente e, ao fato de passar por um longo julgamento de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal – STF, não se consegue encontrar o tema amplamente registrado em dissertações e livros.

O objetivo principal desse artigo é considerar o contexto da criação da Lei da Ficha Limpa e sua relação com o princípio da Moralidade.

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica cujo desenvolvimento deu-se recorrendo a artigos científicos, livros, dissertações impressas e online.

 

DEMOCRACIA E EXERCICIO DA CIDADANIA

Com relação aos conceitos de Democracia, destacamos o conceito de democracia participativa que nos foi legado pela Grécia Antiga, berço da civilização ocidental o conceito de democracia representativa pertencente ao Estado Liberal.

“O ponto de partida dessa diferença reside no fato de que em Atenas participavam das Assembléias – ekklesia – apenas os indivíduos com certos direitos, os cidadãos, que assim se caracterizavam pela possibilidade de intervenção direta nas decisões políticas. Esta era a essência da democracia grega: somente os membros da comunidade política faziam parte da polis. (...) a política é, na verdade, a palavra chave da civilização ateniense”. (MOSSE apud RIBEIRO, 2001, p. 2)

A democracia ocidental originou-se da democracia ateniense, que, apesar de ser considerada participativa, dela participava uma pequena parte da população, pois a participação era restrita aos cidadãos adultos, cujos pais fossem atenienses, excluindo dela os estrangeiros; o número ficava ainda mais reduzido porque nem escravos nem mulheres podiam participar das assembleias democráticas. (RIBEIRO, 2001)

“Diversas são as conceções de democracia que perpassam as sociedades humanas ao longo dos séculos, desde sua primeira manifestação, na Grécia antiga. Apesar de caracterizada como um modelo restritivo, posto que escravos e mulheres estavam excluídos de qualquer intervenção nas decisões políticas, vem de Atenas o ideal democrático de participação de todos os cidadãos na vida pública”. (RIBEIRO, 2001, p. 2)

Dallan (1984) compreende que o conceito de cidadão incorre em equívocos, ambiguidade e multiplicidade de sentidos, pois há quem o utilize “com a intenção de eliminar diferenças entre os seres humanos”, apregoando a igualdade, partindo da premissa de que se todos são cidadãos, então todos são iguais. Por outro lado, há os que lhe atribuem uma significação restrita, pois consideram cidadão o indivíduo que possui responsabilidades públicas, incluindo o direito de participação nas decisões de caráter político.

“Essa ambiguidade vem de longe, tendo sido já assinalada pelo filósofo francês Jean Jacques Rousseau, no seu Contrato Social, no século XVIII. Rousseau dizia que a designação de cidadão só deve ser dada às pessoas que participam da autoridade soberana e que, desse modo, dão seu consentimento às leis. É ainda Rousseau quem observa que os franceses usavam mal o termo, esclarecendo também que muitos usavam a palavra cidadão como sinônima de burguês”. (DALLAN, 1984, p. 62)

A Revolução Francesa foi o divisor de águas entre as antigas classes pertencentes ao período da Monarquia e do Feudalismo, onde diferenciavam-se os plebeus dos nobres, os livres dos escravos; a partir de então todos passaram a denominar-se cidadãos, demonstrando a existência de igualdade entre todos. A cidadania ficava vinculada ao pertencimento a uma nação, portanto havia os cidadãos ingleses, os cidadãos italianos, etc. (DALLAN, 1984)

OS PRINCIPIOS DOS DIREITOS HUMANOS

Igualdade e a dignidade são essências dos Direitos Humanos, pois são comuns às possibilidades de fundamentação existentes, tais como a natureza humana, a opção religiosa, os aspetos culturais e a existência de direitos historicamente construídos que são fontes distintas de fundamentação dos direitos humanos.

Pela igualdade, tem-se que os direitos humanos são intitulados por todos os indivíduos pelo mero fato de serem humanos. Essa igualdade pode ter origem:

• Na ideia de uma criação comum, como indicam várias religiões.

• Na existência de características humanas presentes em todos os seres humanos, como estabelece a corrente naturalista a qual o conceito dos direitos humanos desponta como um direito natural.

• Na positivação e na aceitação, por parte das mais diferentes culturas, de um determinado número de direitos, como explicita a corrente historicista, que diz que todo fenômeno cultural, social ou político é histórico e não pode ser compreendido senão por meio de e na sua historicidade. Essa corrente fundamenta o fato de que o direito é um constructo histórico, ou seja, é construído à medida que os fatos históricos vão acontecendo (IKAWA; PIOVESAN; ALMEIDA, 2005, p. 1).

A igualdade mencionada no estudo dos Direitos Humanos é muito peculiar, porque está implícita nela a ideia de dignidade que permite o respeito às diferenças relativas ao gênero, à raça, à idade. O ser humano, nesse contexto, tem o fim em si mesmo e não é mero meio para outros fins.

“O conceito atual de direitos humanos foi confirmado com a realização da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993. Naquela ocasião, foram elaborados a Declaração e o Programa de Ação de Viena. Em seu parágrafo quinto, a Declaração estabelece que: ‘Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase’”. (IKAWA; PIOVESAN; ALMEIDA, 2005, p. 3)

Participar das decisões sobre os destinos da cidade, do Estado e do país, em um regime democrático é possível por meio do voto (escrutínio universal), no entanto, poder propor um projeto de lei era uma possibilidade que só o legislativo possuía até a implementação da Lei Nº 9.709, que facultou essa possibilidade a todos os cidadãos. 

 

DEFINIÇÃO DE DIREITO SOCIAL

O princípio da Democracia é todos participarem plenamente dos direitos e deveres existentes na sociedade. Dessa forma, é inconcebível que qualquer cidadão seja alijado de seu direito à Seguridade Social, o que seria ferir o próprio princípio da Democracia que institui o caráter pleno de participação de todos os cidadãos. Daí apelarmos para o caráter silogístico dessa questão, parafraseando o conhecido silogismo de Descartes para provar a existência de Deus[1]: todo cidadão de fato se fizer jus a todos os direitos que lhe confere a sociedade democrática, por analogia, teremos que todo cidadão só o é plenamente se estiver de posse de todos os direitos que lhe assistem.

A expressão “direito social” pode ser considerada pleonástica, pois seu feitio é eminentemente sociológico, principalmente pelo que reveste o Direito, qualquer que seja seu aspeto, mesmo individual. O Direito só tem sua razão de ser em função da sociedade; sem ela seria vão.

E, nesse sentido, o Estado social que supera o então Estado Liberal, reconcilia o Direito com sua autêntica função, a função social; seja qual for a ideia ou o conceito e que do Direito se faça, ou por mais transcendente que pareça, ninguém conseguirá abstraí-lo do meio social de onde emerge e adquire seu cunho de realidade; quer como produto imediato e espontâneo desse meio, quer como razão de ser, em que se torna, da estabilidade e coesão do grupo ou comunidade humana que o produziu (LEITE, 2006, p.1).

O Direito Social deve ter caráter prático e não pode restringir-se à mera teoria, volatizando-se sem atingir eficácia alguma nem realizações de fato.

Direito social, portanto, refere-se à dimensão globalizada, integrada (não-excludente, não-refratária ou meramente dogmática, excessivamente formal ou sectária do direito), buscando-se a máxima realização da isonomia e da proporcionalidade. Neste sentido, também são direitos tendentes a alcançar os direitos econômicos e trabalhistas e não só os direitos individuais, civis e políticos - defendendo-se, por isso, a necessidade de serem cláusulas pétreas (MARTINEZ, 2003, p. 2).

Utilizando-se de uma nuance crítica, o autor esclarece que o Estado Democrático de Direito Social é uma espécie de devir jurídico e bem poderia ser anunciado pela necessidade do fomento teórico e prático para uma leitura atenta do panorama atual da democracia, da federação e da República do nosso país.

Leite (2006) destaca que “todo direito é, ao mesmo tempo, social ou individual... O indivíduo isolado nem é sujeito nem objeto de direito: o direito só aparece com a vida em sociedade”, pois não há direito individual que não seja também um interesse social, da mesma forma que não há direito social que não se resolva igualmente em um interesse individual[2].

O direito social é o que podemos classificar como o direito essencial, básico, pois “precede a sentença, a lei, que se estratifica em hábito, costume, práxis, ou se articula por convenção ou em estatutos (direito estatutário)”, segundo a autora citada, pois esse status que lhe é próprio independe da interferência posterior da engrenagem legal e jurisprudencial do Estado.

A classificação dos direitos demonstra a seguinte situação: os direitos de primeira geração, os direitos civis e políticos compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais e realçam o princípio da liberdade; os direitos sociais são os direitos fundamentais de segunda geração, juntamente com os econômicos e os culturais, que exigem do Poder Público uma atuação na implementação da igualdade social dos hipossuficientes e acentuam o princípio da igualdade:

“O Estado Democrático de Direito Social é a organização do complexo do poder em torno das instituições públicas, administrativas (burocracia) e políticas (tendo por a priori o Poder Constituinte), no exercício legal e legítimo do monopólio do uso da força física (violência), a fim de que o povo (conjunto dos cidadãos ativos), sob a égide da cidadania democrática, do princípio da supremacia constitucional e na vigência plena das garantias, das liberdades e dos direitos individuais e sociais, estabeleça o bem comum, o ethos público, em determinado território, e de acordo com os preceitos da justiça social (a igualdade real), da soberania popular e consoante com a integralidade do conjunto orgânico dos direitos humanos, no tocante ao reconhecimento, defesa e promoção destes mesmos valores humanos. De forma resumida, pode-se dizer que são elementos que denotam uma participação soberana em busca da verdade política”. (MARTINEZ, 2003, p. 3).

Segundo Martinez (2003), o direito deve ser utilizado como uma poderosa ferramenta de transformação social, que só frui socialmente quando interfere positivamente no contexto social, gerando mudanças no status quo, ou seja, naquilo que está estabelecido, que se diferencia da função social do direito, “pois que esta pode tanto expressar e materializar a necessária transformação da ordem social estabelecida (buscar a justiça sempre que se deparar com uma lei injusta) quanto a manutenção da chamada ordem estabelecida”.

“Portanto, um direito não só estatal, não só hegemônico e expressivo da vontade do Estado, mas um direito instigado pelo crescimento/fortalecimento dos anseios, das aspirações e das necessidades sociais. Enfim, isso que chamei de fruição do direito social (mundialização do direito) é alçar o direito para além das categorias limítrofes da sua racionalização (na verdade, reificação, dado que se afasta completamente das necessidades mais prementes/elementares da sociedade civil) ou então da institucionalização e instrumentalização do Estado”. (MARTINEZ, 2003, p. 4)

Há uma evolução na legislação brasileira que é preciso compreender para contextualizar o nascimento da Lei Complementar da Ficha Limpa, incluindo a Lei Nº 9.709, de 18 de Novembro de 1998, que veremos a seguir.

LEI Nº 9.709/98 - Iniciativa Popular

A Lei Nº 9.709, de 18 de Novembro de 1998, em seus artigos 13 e 14 dispõe sobre a Iniciativa Popular, normatizando o procedimento que dá ao cidadão comum a possibilidade de apresentar projetos de lei à Câmara dos Deputados quando atingir o número mínimo de assinaturas (1% do eleitorado brasileiro e nunca menos que 0,3% em 5 estados, in verbis:

“Art. 13. A iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

§ 1o O projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscrever-se a um só assunto.

§ 2o O projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação.

Art. 14. A Câmara dos Deputados, verificando o cumprimento das exigências estabelecidas no art. 13 e respectivos parágrafos, dará seguimento à iniciativa popular, consoante as normas do Regimento Interno”. (BRASIL, 1998)

LEI DA FICHA LIMPA - BREVE HISTÓRICO

As Organizações não-Governamentais Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE e Articulação Brasileira Contra a Corrupção e a Impunidade – Abracci que possuem uma abrangência muito grande e representam os interesses de mais de 100 outras entidades civis não-governamentais e apoiadas nos princípios constitucionais agilizaram uma ação que durou mais de um ano na coleta de assinaturas pelo Brasil inteiro com o intuito de propor uma lei que combatesse a corrupção nos meios políticos. O intuito é exigir que o aspirante a qualquer cargo público tenha que demonstrar comportamento ilibado e uma vida pregressa sem o cometimento de crimes eleitorais ou ter lesado o erário público em administrações públicas anteriores. Assim, em todos os estados da federação e no Distrito Federal, o total de mais de 1,3 milhões de assinaturas de eleitores brasileiros, o que representa mais de 1% do eleitorado nacional e cumpre o exigido para se propor lei por iniciativa popular. (SIQUEIRA; NEVES, 2010)

“Em 29 de setembro de 2009, representantes das entidades que fazem parte do MCCE entregaram ao Congresso Nacional, representado pelo então presidente da Camara dos Deputados, deputado Michel Temer, o projeto de lei de iniciativa popular que propunha a inelegibilidade de candidatos processados e, já na fase de tramitação, ficou popularmente conhecido como Projeto de Lei da Ficha Limpa.

Em 19 de maio de 2010, após algumas tentativas de protelar a votação, o Congresso Nacional cedeu à pressão popular existente e aprovou, com alterações, a Lei da Ficha Limpa. Em 07 de junho de 2010, finalmente, essa lei foi publicada no diário oficial, com a sanção presidencial”. (SIQUEIRA; NEVES, 2010, p. 1)

Segundo Siqueira; Neves (2010) a Lei da Ficha Limpa, desde que foi aprovada em 2010 tem causado grande polêmica nos meios político e jurídico com grande repercussão na mídia, principalmente por ocasião das eleições à Presidência da República.

A origem dessa lei está embasada em movimentos recentes que reivindicam a participação mais direta dos cidadãos nos destinos da política e, consequentemente, nos destinos da própria sociedade democrática. Tal lei vem da alteração da Lei Complementar 64, promulgada a 18 de maio de 1990, que por sua vez havia se originado do Projeto de Lei Popular 518/09, que começou quando das campanhas da fraternidade da CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que em 1996 tratou do tema “Fraternidade e Política” e em 1997 abordou o tema “Combatendo a corrupção eleitoral”, que abordaram durante dois anos seguidos a questão do combate à corrupção eleitoral, a nível das comunidades católicas, nos contextos de suas realidades paroquiais e diocesanas. A Igreja Católica, que em outros momentos históricos obteve mais resultados em suas pregações junto aos setores políticos contou com o reforço de ONG’s, que durante a década de 2000 se juntaram à discussão e reivindicação de maior moralidade na classe política brasileira. (SIQUEIRA; NEVES, 2010)

O Brasil, nessas últimas décadas, vêm se abrindo a manifestações populares de caráter participativo em decisões sobre questões distintas, previsto no artigo 14 da Carta Magna de 1988 que estabelece que a soberania popular deve ser exercida diretamente por meio de plebiscitos, referendos ou iniciativa popular.

“O plebiscito e o referendo são consultas que se fazem ao povo para que este delibere sobre determinado assunto. A diferença entre ambos é que, enquanto no plebiscito a consulta é anterior a ato legislativo ou administrativo, no referendo a consulta popular é posterior ao ato legislativo ou administrativo.

A iniciativa popular é iniciativa de Lei, ou seja, é a fase introdutória que dá início ao processo de formação de uma Lei. É a faculdade que a Constituição atribuiu ao povo para apresentar projetos de lei ao Poder Legislativo”. (SIQUEIRA; NEVES, 2010, p. 1)

A Lei da Ficha Limpa regulamenta, especificamente, casos de inelegibilidade[3] de indivíduos que se candidatam às eleições em todas as instâncias: Municipal, Estadual e Federal. Tal lei tem caráter de lei complementar por necessitar de maioria absoluta para sua aprovação. Para tanto, é importante apresentar uma diferenciação intrínseca à elegibilidade e à alistabilidade, apresentada por Siqueira; Neves (2010, p. 2): “O direito ao sufrágio divide-se na capacidade de votar e de ser votado. A capacidade de votar diz respeito ao direito de votar (alistabilidade) e a capacidade passiva, por sua vez, diz respeito ao direito de ser votado, de eleger-se para um cargo político (elegibilidade)”.

Recorremos, então, a um raciocínio lógico que permitirá esclarecer melhor esta questão: apesar de ser condição sine qua non ser eleitor para ser candidato, nem todo eleitor está investido do caráter da elegibilidade, porque no sistema brasileiro a “alistabilidade não coincide com a elegibilidade”, explicam Siqueira; Neves (2010, p. 2).

“(...) para se habilitar a concorrer algum mandato eletivo, além de se possuir a capacidade eleitoral ativa (direito de votar), é necessário cumprir certos requisitos, denominados condições de elegibilidade e, ao mesmo tempo, não incidir em impedimentos à capacidade eleitoral passiva, denominados inelegibilidades.

As condições de elegibilidade são as seguintes: nacionalidade brasileira ou condição de equiparado a português, sendo que para Presidente e Vice-Presidente da República exige-se a condição de brasileiro nato; pleno exercício dos direitos políticos; alistamento eleitoral; domicílio eleitoral na circunscrição; idade mínima exigida para exercer o cargo pleiteado e filiação partidária”. (SIQUEIRA; NEVES, 2010, p. 2)

Os autores reconhecem que sob a ótica da mídia, a Lei da Ficha Limpa parece é mais vanguardista do que na realidade é, pois a lei tem caráter de complementar, ou seja, reza sobre matéria já existente legalmente, sendo uma revisão ou acréscimo a uma lei já existente, portanto pode ser considerada uma reforma e não uma revolução no sentido de retrata “problemas de imoralidade e improbidade na vida política (...) tentativa de aprimoramento do sistema de seleção de candidatos probos”. (SIQUEIRA; NEVES, 2010, p. 3)

A Lei Complementar 135/10, que deu nova redação à Lei Complementar 64/90, instituiu outras hipóteses de inelegibilidade voltadas à proteção da probidade e moralidade administrativas no exercício do mandato, nos termos do parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição Federal.

“Outra reserva legal qualificada é prevista no art. 14, §9º, que estabelece a previsão dos demais casos de inelegibilidade que versem sobre “a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e a legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. (SENNA, 2010, p. 10)

Trata da inelegibilidade de cidadãos que enquanto ocuparam cargos no executivo tenham infringido “a dispositivo da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos”; “abuso do poder econômico ou político”; “condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado” por crimes, In Verbis:

“1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;

2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;

3. contra o meio ambiente e a saúde pública;

4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;

5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;

6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;

7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;

8. de redução à condição análoga à de escravo;

9. contra a vida e a dignidade sexual; e

10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando”. (BRASIL, 2010)

O próprio princípio da moralidade da administração pública já veio estabelecido na Constituição Cidadã (alcunha da CF/88), que em seu artigo 5”, alínea LXXIII dispõe que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”. (BRASIL, 1988) (Grifo nosso)

”A proteção do patrimônio público pressupõe o respeito aos princípios da administração pública, como moralidade, legalidade e impessoalidade, valores constitucionais com força normativa e norte de interpretação de todo o sistema jurídico pátrio. A corrupção administrativa está umbilicalmente ligada à corrupção eleitoral. Um é causa e efeito do outro. Constituem em uma grave doença  a ser extirpada de nosso país, pois é certo, como já se disse, que ou o Brasil acaba com a corrupção ou a corrupção acaba com o país”. (CAVALCANTE JUNIOR; COÊLHO apud MACEDO, 2011, p. 9)

Segundo Senna (2010), a frustração do eleitor frente a atos de corrupção, antiética e de vilipendiamento do erário público de candidatos que ele ajudou a eleger por meio do seu voto é muito grande, pois, normalmente sente-se corresponsável ou revolta-se contra o próprio sistema democrático que permite tantas distorções e desrespeito à coisa pública e à boa-fé do eleitorado.

“Nada desestimula mais o eleitor a exercer o direito de voto do que saber da existência, nas múltiplas legendas que compõem nosso sistema partidário, de uma quantidade muito elevada de candidatos que têm contas a acertar com a Justiça. para alguns destes, a principal razão pelo que correm atrás de um mandato ou buscam reeleger-se é dificultar a ação dos órgãos julgadores”. (PANNUNZIO apud MACEDO, 2011, p. 9)

Macedo (2011) observa que o caráter cíclico de políticos corruptos dificulta a própria ação da justiça porque tais indivíduos acobertam-se sob o direito da imunidade parlamentar para assegurar sua “impunidade”[4]:

“Alguns autores defendem que a intenção do candidato, réu em processo sem trânsito em julgado, seria a de se esquivar da sanção, já que o mandato eletivo concede várias imunidades. O princípio da moralidade pública denegaria a esses candidatos a concorrência no pleito eleitoral. Esse é um princípio inerente ao exercício de qualquer função pública que demanda um comportamento honesto e ético34. No caso da moralidade do mandato popular, o que se busca é a solidificação da democracia representativa, através da ética no processo de escolha dos candidatos e na tentativa de impedir a fraude, a corrupção e o abuso de poder econômico futuros, no seio dos órgãos eleitos”. (NASCIMENTO apud SENNA, 2010, p. 14)

Durante o processo do julgamento da Inconstitucionalidade da Lei da Ficha Limpa pelo STF, os argumentos rondavam acerca da vida pregressa do candidato ser considerada ou não para caracterizar sua inelegibilidade ao pleito desejado. Nesse sentido, um dos argumentos para sua inconstitucionalidade repousava na presunção da inocência, mas na verdade, Bertasso (apud SENNA, p. 14) argumenta que os critérios para a inelegibilidade poderiam assemelhar-se à ocupação de cargos públicos quando o Judiciário analisa a vida pregressa do candidato independentemente de qualquer permissão legal ou constitucional: “não se deveria recorrer aos princípios da presunção de inocência. A intenção do constituinte reformador era de que fosse analisada a vida pregressa do candidato quando da aferição de elegibilidade, o que não era possível com base apenas com o texto da LC nº. 64/90”.

 Caldeira (2010) entende que no pleito de outubro de 2010 houve ativismo judiciário, aquando do julgamento da Inconstitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, o Supremo Tribunal Federal teve intensa participação nos resultados das eleições, pois a aplicação da Lei da Ficha Limpa já aprovada e promulgada na época (4 de julho de 2010). 

“O protagonismo das instituições judiciárias pode ser vislumbrado na sua atuação em função da campanha eleitoral de 2010. Na no mês de setembro da campanha eleitoral de 2006 o relatório de análise da mídia pelo Senado Federal atribuiu ao STF a condição de protagonista em 0,2% do total de 1.784 notícias analisadas. Em contraste, em setembro de 2010, esse mesmo conceito levou o Judiciário a tornar-se protagonista em 12,8% do total de 1.847 notícias selecionadas para análise”. (CALDEIRA, 2010, p. 72)

Os efeitos da judicialização das eleições de 2010 continuarão sendo dramáticos porque alguns dos candidatos citados nos pedidos de inelegibilidade sagraram-se vencedores nas urnas pelo voto popular, mas terão que posteriormente prestar contas conforme o que preleciona a Constituição e a legislação eleitoral. (CALDEIRA, 2010, p. 105)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O recente surgimento da Lei da Ficha Limpa envolto em polêmicas mirabolantes que abarcam desde os princípios constitucionais até o ativismo do judiciário em longo processo de julgamento da inconstitucionalidade dessa lei somado ao próprio conteúdo dessa norma que dispõe sobre formas de inelegibilidade do cidadão candidato à ocupação de cargos públicos por meio das eleições acresce a importância de tal assunto.

Os interesses particulares não podem sobrepor-se aos direitos de todos já ensinavam os doutos filósofos e doutrinários, mas a verdade é que quando um político lesa a comunidade por corrupção ou falta de decoro parlamentar ou crimes contra o erário público está ele sobrepondo-se aos interesses da população que o elegeu e a todos que foram prejudicados por suas más ações. Assim, deve ficar inelegível pelo período de 8 anos que a lei estipula.

Não pode ele acobertar-se na imunidade parlamentar que a tantos criminosos faz sombra.

A Lei da Ficha Limpa foi resultado de uma ampla consulta às bases da sociedade demonstradas nas mais de 1,3 milhões de assinaturas para torná-la processo de iniciativa pública. A lei ficou de 2010, quando do seu nascimento até o início de 2012, sendo objeto de uma Ação de Inconstitucionalidade e só agora poderá ser aplicada às próximas eleições.

O turbilhão de notícias, textos, reflexões e processos que ela tem gerado serão o mínimo do que ela poderá gerar para o futuro, pois a sociedade merece que a corrupção dos políticos seja punida exemplarmente com, no mínimo, o seu afastamento da possibilidade de vir a corromper nos próximos 8 anos. Assim, desligado da máquina de governo e quase desconhecido pelo novo eleitorado terá que concorrer em iguais condições com os outros candidatos.

Ainda é cedo para tecer quaisquer expectativas, mas sabe-se que a direção está correta e que a Lei da Ficha Limpa tem um grande potencial de melhorar o nível das eleições e dar-lhe transparência tão propalada nesses últimos anos, mas sem grandes resultados práticos.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, Maria Joseane Lopes de; LEMOS, Maria Nazaré de. Iniciativa popular no Brasil a partir do século XX. Dissertação (Lato-Senso em Gestão Pública e Legislativa). Recife/PE, 2008. 46p.

BRASIL. Lei Ficha Limpa – Lei Complementar 135/10. Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010.

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[1] Partindo-se da premissa de que Deus é perfeito, então teria todas as faculdades, inclusive a perfeição e teríamos necessariamente que concluir que Ele existe, pois se lhe faltasse uma faculdade – a da existência – Ele não teria a perfeição.

[2] Joaquim Pimenta apud LEITE, Gisele. Considerações sobre os direitos sociais no ordenamento jurídico: conteúdo dos direitos sociais, posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, 2006, p. 2).

[3] Chama-se de inelegibilidade as restrições à participação no pleito eleitoral daqueles que são sujeitos passivos (candidatos). Elas são limites impostos ao direito fundamental de elegibilidade em razão de princípios como o da moralidade para o exercício do mandato, da lisura das eleições, da impessoalidade, ou seja, em nome da salvaguarda do próprio princípio democrático. (SENNA, 2010, p. 3)

[4] “Seu objetivo (do candidato processado) não é prestar um serviço público de qualidade, mas resolver seu drama pessoal. Seu objetivo, sem dúvida, é encontrar guarida na sombra da impunidade, assegurada pela generosa imunidade parlamentar, produto espúrio do processo legislativo viciado”. (NASCIMENTO apud SENNA, 2010, p. 14)