O presente artigo tem o escopo de dissertar sobre um dos mais importantes princípios que regem a Ação Penal Pública Incondicionada, e que garante o curso legal desta, seja a favor ou não do réu, até o trânsito em julgado da sentença penal: o princípio da indisponibilidade. Tratar-se-á também sobre a polêmica entre a Ação Penal Pública Incondicionada e a Ação Penal Pública Condicionada no que se refere ao princípio supracitado, correlacionando com a Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha, assunto que foi em pauta de julgamento no Supremo Tribunal Federal – STF.

            Sabe-se que o Ministério Público é o órgão legitimado para interpor a Ação Penal Pública Incondicionada, representando e resguardando o interesse do Estado – titular do jus puniendi – em punir ou não o réu pelo crime praticado. Durante o trâmite processual, então, cabe ao Ministério Público a tutela do direito estatal.

            O princípio da indisponibilidade da Ação Penal Pública Incondicionada aduz que o Ministério Público, em nenhuma hipótese poderá transigir, dispor, desistir da ação penal, abrindo mão, assim, do interesse que não lhe pertence, devendo conduzir o processo até o fim.

Positiva tal princípio os artigos 10, 17 e 28 do Código de Processo Penal, que estabelecem respectivamente, o prazo cabal para a conclusão do inquérito policial; o impedimento do arquivamento do inquérito pela autoridade policial; e por fim estabelece o juiz como fiscal do princípio da obrigatoriedade da ação penal, permitindo-lhe discordar da promoção feita pelo Ministério Público. Importante também salientar o conteúdo disposto nos artigos 42 e 576 do referido código que proíbe a desistência da Ação Penal que tenha proposto o Ministério Público e impede que o Parquet  desista do recurso que haja interposto em ação penal pública.

Assim, quando o Ministério Público dispuser de elementos para amparar a acusação, deverá oferecer a denúncia. Uma vez oferecida, não poderá o Parquet desistir da Ação Penal, pois o interesse é do Estado, atuando assim, apenas como órgão representante deste, devendo exercer todos os atos processuais compatíveis com o que lhe incumbir, interpor recursos pertinentes, assim, desenvolvendo legalmente a acusação.

            O titular da ação penal pública incondicionada é o Ministério Público, pois o crime dispensa a representação de terceiros, tendo somente o Parquet a legitimidade e a obrigação – de acordo com o principio da obrigatoriedade – de ajuizá-la.

            Paralelamente existe a Ação Penal Pública condicionada à representação da vítima, que para ser instaurada, depende do implemento de uma condição: a  representação da manifestação e consentimento da vítima (ou de seu representante). Nos termos do art. 100, § 1º, do Código Penal:
A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça” Dispõe ainda, no mesmo sentido, o artigo 24 do CPP: Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo”.Em linhas gerais, a vítima deve permitir que o Ministério Público prossiga ao ajuizamento da Ação, visto que o fato criminoso ocorreu com esta.

             Ocorre que, se a vítima não manifestar o consentimento da sua vontade, no sentido de permitir ao Ministério Público o ajuizamento da ação penal, o processo não será iniciado, engavetando-se mais uma realidade que será impune por decisão do sujeito passivo.

            Assim, enquanto de um lado o Parquet está vinculado aos princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade, tendo o dever de ajuizar a ação penal e conduzi-la até a sentença de mérito, visando tutelar os interesses do Estado, do outro se tem a vítima, desvinculada de ambos os princípios ora ilustrados, sendo-lhe facultativa a permissão do ajuizamento ou não da ação penal, por ser a mesma a titular exclusiva do direito tutelado.

É neste ponto que paira a presente discussão: apesar do embasamento legal, teria o Ministério Público realmente que dispor da Ação Penal somente pelo fato não haver representação da vítima? Poderia o Parquet ser legítimo para propô-la? Qual o limite da indisponibilidade da Ação Penal tendo em vista que os crimes, de forma geral, mesmo que condicionados à representação da vítima, são uma ameaça à coletividade e à paz social, devendo o Estado puni-los por também se tratar de interesse público?

Leciona o professor Elmir Duclerc (2005, p.238): “[...] simplesmente não é possível falar de crimes que atinjam prioritariamente interesse privado”. No mesmo sentido o professor Eugênio Pacelli (2004, p. 121); “[...] se houvesse um delito que interessasse mais ao particular que à coletividade, talvez não houvesse razão para a criminalização da conduta [...]”.

            Segundo muito bem ilustrado pelo Professor Damásio de Jesus, em sua obra Código de Processo Penal Anotado, 24ª edição, Ed. Saraiva, 2010: “ [...].Em certos crimes, a conduta típica atinge tão seriamente o plano íntimo e secreto do sujeito passivo, que a norma entende conveniente, não obstante a lesividade, seja considerada a sua vontade de não ver o agente processado[...]. Há uma colisão de interesses entre a exigência de repressão do sujeito ativo e a vontade da vítima de que a sociedade não tome conhecimento do fato que lesionou a sua esfera íntima.[...]. A titularidade da ação penal pertence ao Estado, mas ele faz com que o seu exercício dependa da vontade do particular”, sabe-se que a lei protege a integridade moral do particular, a esfera íntima e o interesse exclusivamente particular ao atribuir a condição de procedibilidade ao sujeito passivo, desprezando assim o interesse público e social.

            Há de se convir, que de fato existem crimes que realmente lesionam exclusivamente a esfera íntima do indivíduo, como há também aqueles que, além de produzirem o mesmo efeito ao particular, por força do seu tipo penal ou por repercussão do mesmo, seja pela imprensa ou pela insegurança de outros indivíduos perante a ciência da liberdade do infrator ou da impunibilidade ao mesmo, afetam também a moral social e pública.

            Um exemplo deste tipo de crime, que pode ser ilustrado em vista deste raciocínio, seria a violência doméstica e familiar contra a mulher. Vulgarmente conhecida como Lei Maria da Penha, a lei 11.340/06, tratava-se de um crime processado mediante Ação Penal Pública condicionada à representação da vítima.

            Em um recém julgamento o STF - Supremo Tribunal Federal - considerou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4424, alegando ser inconstitucional o Art. 16 da referida lei (dentre outros – Art. 12, I, 16 e 41), que aduz: “Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.”. O STF entendeu que o Ministério Público, neste caso, poderá vir a oferecer a denúncia, independentemente da representação da vítima.

            Tal entendimento se embasa exatamente no interesse, não só particular da vítima, como também público e social, no que tange aos direitos concedidos à luz da constituição às mulheres em geral, devendo os mesmos serem efetivamente respeitados, evidenciando assim a eficácia legal fronte ao cumprimento do direito positivado.

            A corrente majoritária da Corte acompanhou o voto do relator, ministro Marco Aurélio, no sentido da possibilidade de o Ministério Público dar início a ação penal sem necessidade de representação da vítima, defendendo em linha gerais a afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana. O Ministro Cezar Peluso foi o único que votou contra, sob a alegação do direito de omissão da vítima perante a propositura da ação penal, voltando-se para o interesse individual do sujeito passivo.

            Veja-se o voto do Ministro Luiz Fux, que engloba toda a matéria discutida pela Egrégia Turma: “Sob o ângulo da tutela da dignidade da pessoa humana, que é um dos pilares da República Federativa do Brasil, exigir a necessidade da representação, no meu modo de ver, revela-se um obstáculo à efetivação desse direito fundamental porquanto a proteção resta incompleta e deficiente, mercê de revelar subjacentemente uma violência simbólica e uma afronta a essa cláusula pétrea.”.

            Quanto à indisponibilidade, neste caso, agora é vislumbrada, se não, devendo ser, em ambas as ações penais públicas. De um lado, a Ação Penal Pública condicionada à representação da vítima, é disponível, podendo o sujeito passivo autorizar ou não o Parquet a mover a ação penal. Diante da recusa ou a não representação da vítima, a ação penal não seria proposta pelo Ministério Público, permanecendo assim, o sujeito ativo impune. Em contrapartida, a Ação Penal Pública incondicionada, é indisponível, como dito alhures. Agora, podendo o Ministério Público ingressar a ação penal independentemente de renúncia da parte, torna-se a ação penal pública condicionada indisponível.

            Conclui-se que a legislação penal e processual penal ainda tem traços inquisitoriais e encontra-se em muitos casos bastante ultrapassada. Tornou-se fundamental uma grande transformação para que a legislação consiga acompanhar a evolução rápida da sociedade e que, sobretudo respeite inteiramente os princípios da nossa Constituição.

No que se refere à ação penal, deve-se concluir que a concepção da esfera privada de Direito não se adapta à realidade. A aplicação do princípio da Indisponibilidade nos crimes que são considerados de Ação Penal Condicionada é importante e imprescindível para garantir a não impunidade, os direitos fundamentais, o interesse público e os princípios constitucionais. É necessário que se tenha consciência de que, em um Estado Democrático de Direito, o interesse da maioria não pode ficar condicionado à vontade de poucos. A procura pela paz social não pode ser tolhida pelo interesse da minoria, sob pena de anular o caráter dos embasamentos democráticos construídos.