O PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DO JUDICIÁRIO E O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

 

 Alex Bruno Canela Vilela[1]

Klícia Waléria Leite [2]

 

SUMÁRIO: Resumo; 1  Introdução; 2. Princípios Constitucionais; 3. O Estado de Coisas Inconstitucional; 3.1.  Conceito 3.2. Direito Comparado; 3.3. O Estado de Coisas Inconstitucional no âmbito do Supremo Tribunal Federal; 4. O princípio da Inafastabilidade da Jurisdição e o Estado de Coisas Inconstitucional; 4.1. Conceito; 4.2. A tutela jurisdicional ante o ECI; 5. Considerações Finais.

 

 

RESUMO

 

Este artigo tem por finalidade tratar sobre o fenômeno do Estado de Coisas Inconstitucional, sob o prisma do Princípio da Inafastabilidade do Judiciário. Para tanto, analisar-se-á o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, bem como posicionamentos doutrinários e o Direito Comparado, enfatizando-se os princípios constitucionais ante a violação dos direitos fundamentais que, portanto, fundamentam um Estado Democrático de Direito. Ressalta-se, em específico, o princípio da inafastabilidade da jurisdição e, por conseguinte, a intervenção do Judiciário ante o Estado de Coisas Inconstitucional, a fim de zelar pelo estrito cumprimento dos princípios.

PALAVRAS-CHAVE: Princípios. Inafastabilidade. Judiciário

1 INTRODUÇÃO

 

O Estado de Coisas Inconstitucional caracteriza-se pela existência de quadro insuportável de violação massiva de direitos fundamentais. Tal violação pode vir a decorrer tanto de atos comissivos quanto omissivos, sejam eles praticados por diferentes autoridades públicas. Tal ‘estado’, no entanto, tem sua situação agravada ao passo em que há a inércia continuada por parte daqueles que deveriam tomar algum posicionamento.

Direcionando a análise a uma perspectiva pautada na concepção de princípios, tem-se que, ante a violação massiva de direitos fundamentais, tem-se, por conseguinte, a violação exorbitante dos princípios constitucionais que devem fundamentar as diretrizes de um Estado Democrático de Direito. Ressalta-se assim, sob o prisma do princípio da inafastabilidade do Judiciário, a aplicação de tal princípio, como forma de eximir a massiva violação de direitos fundamentais, ante o Estado de Coisas Inconstitucional.

Enfatiza-se assim o caráter fundamental que permeia os princípios e direitos, ressaltando a possibilidade de intervenção do Judiciário ante o Estado Inconstitucional. Pautando-se, então, na inafastabilidade da ação e, ainda, no adjetivo que está intimamente atrelado aos princípios constitucionais, tal artigo almeja, sobretudo, à exposição de fatores que evidenciam que o Judiciário pode intervir ante a violação de direitos fundamentais e, por conseguinte, combater a violação massiva de direitos fundamentais.

 

2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

 

O advento do positivismo jurídico atrelou à concepção de princípios o caráter jurídico, antes não intrínseco ao conceito jusnaturalista do termo. A partir de então, tem-se os princípios não mais com uma instância supra-legal, mas sim dotados de “dignidade de norma jurídica”, segundo FERNANDES (2011, p. 42).

Sob o viés do pós-positivismo, os princípios destrelam-se do exclusivo caráter normativo e passam a incorporar o significado de regras. Assim sendo, os princípios abandonam o caráter secundário de apenas auxiliar na interpretação/integração e passam então a ter força normativa assemelhando-se às regras.

Ante o supracitado, emana então a necessidade de se diferenciar normas e regras, a fim de melhor compreender a concepção de princípios. Assim, vale mencionar Canotilho (1993), indo ao encontro do pensamento de Dworkin, compreendendo as regras e princípios como duas espécies de normas, ressaltando assim que a distinção entre regras e princípios seria uma distinção entre duas espécies de normas.  Partindo de tal ideia, Canotilho sintetiza os critérios que podem auxiliar a diferenciar, sendo eles: o grau de abstração, de determinabilidade, de fundamentalidade, de proximidade da ideia de direito e da natureza normogenética.

“Saber como distinguir, no âmbito do superconceito norma, entre regras e princípios, é uma tarefa particularmente complexa. Vários são os critérios sugeridos. a) Grau de obstracção: os princípios são normas com um grau de abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida. b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa. c) Carácter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito).d) «Proximidade» da ideia de direito [...] e) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante”. (CANOTILHO, p.167,1993)

Almejando à concepção de princípios, três teorias merecem destaque. A primeira teoria é aquela que identifica os princípios com normas gerais ou generalíssimas de um sistema. Indo ao encontro de tal teoria, preceitua BOBBIO (1997, p. 158), então, que os princípios seriam “normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais”. “[...] os princípios gerais são normas como todas as outras”. 

Ainda almejando expor a diferença entre princípios e regras, autores como Norberto Bobbio e Del Vecchio consideram que os princípios e regras deveriam se discernir pelo grau de abstração (ou de determinabilidade). Essa perspectiva intitulada de critério quantitativo (por colocar em relevo a quantidade de abstração) foi objeto de inúmeras críticas na doutrina, sendo nomeada por Robert Alexy como uma tese fraca. Tal crítica de Alexy faz referência ainda a tese qualitativa desenvolvida pelo autor, que leva em consideração a forma ou modo de aplicação das regras e princípios no caso de colisões (tensões). Tal tese pode ser compreendida como a segunda teoria, defendendo que os princípios não se aplicam integral e plenamente em qualquer situação. Os princípios, não estariam atrelados a exatidão e caráter impetuoso, sendo passíveis de cumprimento em diferentes graus. Na teoria de Alexy, tem-se assim que “os princípios são mandamentos de otimização, ou seja, normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possível diante das condições fáticas e jurídicas existentes”.

De acordo com ALEXY (1993, p. 86):

“El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que se realice algo em la mayor medida possible, en relación con las posibilidades jurídicas y fácticas. Los principios son, por consiguiente, mandados de optimización que se caracterizan porque pueden ser cumplidos en diversos grados y porque la medida ordenada de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades fácticas, sino también de las posibilidades jurídicas. El campo de las posibilidades jurídicas está determinado a través de princípios y reglas que juegan en sentido contrário. En cambio, las reglas son normas que exigen un cumplimiento pleno y en na medida, pueden siempre ser sólo o cumplidas o incumplidas. Si una regla es válida, entoces es obligatório hacer precisamente lo que ordena, ni más ni menos. Las reglas contienen por ello determinaciones en el campo de lo posible fáctica e jurídicamente. Lo importante por ello no es si la manera de actuar a que se refiere la regla puede o no ser realizada em distintos grados. Hay por tanto distintos grados de cumplimientos. Si se exige la mayor medida posible de cumplimiento en relación com las posibilidades jurídicas y fácticas, se trata de un principio. Si solo se exige una determinada medida de cumplimento, se trata de uma regla”.

Adotando-se a distinção entre princípios e regras conforme preconiza Alexy, pode-se analisar a estrutura das normas de direitos fundamentais.

Analisando-se o conflito de regras e princípios, tem-se que um conflito de regras só pode ser solucionado através de cláusula de exceção em uma das regras, eliminando, desse modo, o conflito; ou então através da invalidade de uma das regras em conflito. Tal “invalidação” deve-se ao fato de as regras não admitirem graduações em seu cumprimento, uma vez que são garantidoras de deveres definitivos.

Ante a colisão de princípios, por sua vez, tem-se que um deverá ceder perante o outo. No entanto, isso não invalida o outro, mas sim de uma certa “preponderância’. Nesse sentido, avalia-se não a validade do princípio, mas aquele que, na circunstância específica, acaba por ter maior peso.

Dessa forma, tem-se a relação existente entre princípios e direitos fundamentais, justificando assim as inúmeras decisões pautadas no sopesamento de direitos e, por conseguinte, na aplicação daquilo que Robert Alexy já sinalizava em casos de colisão de princípios, isto é, a preponderância de princípio A ante o B.

3 ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL - ECI

 

3.1 Conceito

O Estado de Coisas Inconstitucional ocorre diante a existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem modificar a situação inconstitucional.

O instituto ganhou repercussão com as decisões da Corte Constitucional da Colômbia e tem como principais expoentes no Brasil, a Clínica de Direitos Fundamentais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), coordenada pelo Professor Daniel Sarmento, e Carlos Alexandre de Azevedo Campos, docente da mesma Universidade. Em decisão recente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o sistema penitenciário brasileiro vive um "Estado de Coisas Inconstitucional", com uma violação generalizada de direitos fundamentais dos presos. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios acabam sendo penas cruéis e desumanas.

O Estado de Coisas afirmado pelo Tribunal é direcionado a um amplo de autoridades, abrangendo os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), tanto da União, como dos Estados e do Distrito Federal. A ausência de medidas legislativas, administrativas orçamentárias e judiciais eficazes levou caracteriza o que os defensores do instituto em “falha estrutural”, que tem levado à constante afronta aos direitos dos presos, trazendo repercussões sobre toda sociedade.

3.2 Direito Comparado

 

O Estado de Coisas Inconstitucional tem origem no direito constitucional colombiano, quando a corte máxima desse país se posicionou, através da Sentencia de Unificación (SU) nº 559[3], de 1997, no sentido de aplicar o referido instituto.

Na ocasião, a Suprema Corte da Colômbia apreciou a situação de 45 professores dos municípios de María La Barra e Zambrano tiveram direitos previdenciários negados pelas autoridades locais. Ao investigar as falhas na aplicação dos direitos reclamados, os juízes colombianos entenderam que as violações alegadas atingiriam um número amplo e indeterminado de cidadãos, assumindo uma gravidade tão grande que não poderia ser atribuída a responsabilidade a um órgão apenas, mas a toda a estrutura jurídica e política da época.

Entendia a Corte Colombiana que existia uma completa falta de políticas públicas voltadas para coibir a violação dos direitos fundamentais em comento. Cumprindo o que afirmou ser um “dever de colaboração” com os outros poderes, tomou decisão que não se limitou às partes do processo.

Entretanto os dois casos de maior repercussão quanto ao Estado de Coisas Inconstitucional na Colômbia foram a questão penitenciária e o deslocamento forçado de pessoas, situações marcadas por resultados diametralmente opostos. Na Sentencia de Tutela (T) 153[4], de 1998, a Corte Colombiana apreciou a situação degradante dos estabelecimentos prisionais do país, em situação bastante parecida com a ADPF 347, objeto deste estudo.

O pretório colombiano visualizou a degradação à dignidade dos presos a ponto de afirmar que existia “uma tragédia diária dos cárceres”. Dessa forma, foi novamente declarado o Estado de Coisas Inconstitucional, determinando um plano de elaboração de construção e reforma das unidades prisionais, a aplicação de recursos orçamentários pelo Governo Nacional, criação de presídios estaduais e a tomada de medidas por parte do Presidente da República no sentido de assegurar os direitos dos apenados colombianos.

Não obstante, as medidas declaradas do ECI não surtiram os efeitos desejados, devido a falta de aplicação e monitoramento das requisições do Tribunal, que foi bastante criticada pela falta de flexibilidade de suas medidas, não levando em consideração as limitações das administrações locais.

Por outro lado, o ECI dos deslocamentos forçados teve outra repercussão. A Colômbia é um país que ficou conhecido pelos altos índices de violência, levando muitas pessoas a se deslocarem de regiões para outras por ameaças de grupos violentos, evitando assim maiores tragédias. Segundo dados da Consultoria para os Direitos Humanos e o Deslocamento (Codhes), cerca de 5,2 milhões de pessoas, entre 1985 e 2010, foram retiradas forçadamente das zonas rurais[5].

A perceber a falta de mobilização das autoridades quanto ao problema, a Corte Constitucional novamente reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional, por meio da Sentencia T-025[6], examinando o pedido de 108 famílias que foram deslocadas, sendo que muitas destas eram compostas por minorias étnicas e grupos vulneráveis, carecendo de uma atenção maior do Estado em relação a outros direitos sociais como educação, saúde, moradia, entre outras.

Destarte, o Tribunal colombiano determinou que fosse criado um marco regulatório para tratar dos direitos das minorias afetadas nos deslocamentos; dotação orçamentária específica e outras medidas destinadas a um amplo número de autoridades para que, através de ações conjuntas fosse dado o devido enfrentamento ao dilema.

Diferentemente da questão carcerária, as medidas prolatadas no ECI dos deslocamentos forçados tiveram maior sucesso, porque combinaram flexibilidade e foram dirigidas a um número amplo de autoridades, permitindo um maior diálogo entre os poderes envolvidos. “A corte buscou harmonizar o ativismo judicial revelado nas intervenções sobre políticas públicas com a proposta de diálogos institucionais”, conforme destaca (CAMPOS, 2015, p.2).

Paralelamente ao diálogo, houve um maior monitoramento das requisições do Tribunal, possibilitando avaliar o desenvolvimento das políticas públicas, permitindo que a própria sociedade civil participasse de forma mais ativa no deslinde da situação. Ressalte-se que o deslocamento forçado ainda é uma realidade no país, porém houve uma sensível melhora a partir da decisão da Corte Local que passou a atuar de forma mais madura, levando em consideração as experiências anteriores, erros e acertos.

 

3.3 O Estado de Coisas Inconstitucional no âmbito do Supremo Tribunal Federal

Ainda em agosto de 2015, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que trouxe à baila a questão carcerária do país, inaugurando a discussão sobre o Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil.

É inquestionável que a situação carcerária no país afronta de forma visceral os direitos humanos no país. A população carcerária brasileira cresce de forma assustadora, enquanto que os estabelecimentos prisionais já não acompanham a muito tempo essa escalada, sendo palcos de todo tipo de selvageria, abusos de poder, corrupção, disputa entre facções, motins e fugas. O ideal de ressocialização do sistema penal mostra-se, em geral, falido, onde o apenado sofre diante da completa falta de estrutura física e humana para se reabilitar socialmente, o que fica demonstrado pelo índice de reincidência na prática delituosa, que, segundo o CNJ beira a 70%[7].

Diante da gritante falta de respeito aos direitos humanos, o STF recebeu na citada ADPF o pedido de declaração do Estado de Coisas sobre a crise carcerária, com a pretensão de que o Tribunal interfira na criação e implementação de políticas públicas, alocações orçamentárias, perfazendo um total de oito medidas:

a) melhor fundamentação por parte dos magistrados no tocante à manutenção de prisão preventiva ou medidas cautelares, dizendo expressamente o motivo pelo qual estão aplicando a prisão e não uma das medidas cautelares alternativas previstas no art. 319 do CPP;

b) implementação pelos Estados, no prazo máximo de 90 dias, de audiências de custódia (segundo o Informativo 795 STF);

c) que os juízes, quando forem impor cautelares penais, aplicar pena ou decidir algo na execução penal, levem em consideração, de forma expressa e fundamentada, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro;

d) estabelecimento de penas alternativas à prisão;

e) abrandamento de requisitos temporais necessários para que o preso goze de benefícios e direitos, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando ficar demonstrado que as condições de cumprimento da pena estão, na prática, mais severas do que as previstas na lei em virtude do quadro do sistema carcerário;

f) abatimento do tempo de prisão, se constatado que as condições de efetivo cumprimento são, na prática, mais severas do que as previstas na lei. Isso seria uma forma de "compensar" o fato de o Poder Público estar cometendo um ilícito estatal.

g) coordenação de um mutirão carcerário a fim de revisar todos os processos de execução penal em curso no País que envolvam a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los às medidas pleiteadas nas alíneas “e” e “f” acima expostas.

h) liberação, sem qualquer tipo de limitação, do saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) para utilização na finalidade para a qual foi criado, proibindo a realização de novos contingenciamentos.

Com efeito de liminar, a egrégia corte deferiu os pedidos "b" (audiência de custódia) e "h" (liberação das verbas do FUNPEN). Entretanto, as medidas "e" e "f", foram indeferidas, por entenderem os Ministros do risco de violação à separação dos poderes. Quanto aos pedidos “a”, “c” e “d”, o STF entendeu que seria desnecessário ordenar aos juízes e Tribunais que fizessem isso porque já são deveres impostos a todos os magistrados pela CF/88 e pelas leis. Logo, não havia sentido em o STF declará-los obrigatórios, o que seria apenas um reforço[8].

Durante o julgamento da referida ação, diversas foram as reações quanto aos pedidos. O Advogado Geral da União Luiz, Inácio Adams afirmou, em relação à medida “h”, que o problema carcerário não é o contingenciamento de recursos, porém a má aplicação destes por parte dos Estados e que as medidas já estão sendo tomadas pelos três poderes, segundo Adams é necessário “buscar um diálogo nacional que passe pelos Três Poderes e pelos estados de forma ativa[9]”.

Por sua vez o Ministério Público Federal, representado pela Vice-Procuradora-Geral da República, Ela Wiecko, considerou que as medidas peticionadas na ADPF são muito abrangentes, embora justas, e que o descontingenciamento dos recursos do Fundo Penitenciário poderia “abrir a porta para o descomprometimento com a obediência a essas normas e tornar esse estado de coisas ainda mais inconstitucional”.

O Ministro Marco Aurélio de Mello, relator do processo, destacou em seu voto que “a responsabilidade pelo estágio ao qual chegamos não pode ser atribuída a um único e exclusivo Poder, mas aos três – Legislativo, Executivo e Judiciário –, e não só os da União, como também os dos estados e do Distrito Federal”[10], concretizando dessa forma um dos requisitos para a concretização do Estado de Coisas Inconstitucional: o direcionamento a um amplo número de autoridades e responsáveis.

Ainda segundo o relator, o Estado de Coisas fica evidenciado pela efetiva falência do sistema, de modo que “a situação é, em síntese, assustadora: dentro dos presídios, violações sistemáticas de direitos humanos; fora deles, aumento da criminalidade e da insegurança social”, desrespeitando o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção contra a Tortura, além da própria Lei de Execução Penal.

4 O PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DO JUDICIÁRIO E O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

 

4.1 Conceito

 

O Princípio da Inafastabilidade da jurisdição está contido no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal. É também conhecido como princípio do Acesso à Justiça, e consiste que todos tenham direito à proteção jurídica do Estado, a partir dos conflitos ocorridos na vida em sociedade. Assim, aplica-se a inafastabilidade da jurisdição, o uso dos órgãos jurídicos competentes. Mas essa tutela, presente na Constituição, deverá ser efetivada através da ação do interessado ou por meio de conhecimento, no processo de execução ou asseguração.

Dessa forma, o magistrado tem a autorização de cessar ou evitar lesão ou ameaça a direito por meio da ação. Com este mandado constitucional, o judiciário rompe com o paradigma de que o juiz se porta meramente como “la bouche de loi”[11], apenas aplicando o sentido das leis conforme o sentido originário do legislador, adotando uma postura de salvaguarda da Constituição e dos direitos fundamentais.

Assim, o judiciário terá a possibilidade de apreciar, inclusive, atos normativos quando estejam em confronto com a ordem constitucional, como afirma Bastos (1997, p.214):

"Isto significa que lei alguma poderá autoexcluir-se da apreciação do Poder Judiciário quanto à sua constitucionalidade, nem poderá dizer que ela seja inivocável pelos interessados perante o Poder Judiciário par resolução das controvérsias que surjam da sua aplicação."

Nesse sentido, o Ministro Marco Aurélio de Mello, ao relatar o Recurso Extraordinário nº 172.084/MG, expôs que:

"A garantia constitucional alusiva ao acesso ao Judiciário engloba a entrega da prestação jurisdicional de forma completa, emitindo o Estado-Juiz entendimento explícito sobre as matérias de defesa veiculada pelas partes. Nisto está a essência da norma inserta no inciso XXXV, do art. 5º da Carta da República."

O princípio da inafastabilidade da jurisdição tem ganhado cada vez mais força na sociedade brasileira, principalmente em face da administração pública. Segundo a Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal o Poder Judiciário poderá apreciar a anulação dos atos da administração pública quando eivados de ilegalidade.

Destarte, tem se tornado cada vez mais recorrente, numa sociedade em que o Estado ainda falta, e muito, com a prestação dos direitos insculpidos no texto constitucional, a busca pela jurisdição para a resolução desses conflitos. Embora seja questionável, e com certa razão, o assoberbamento dos Tribunais, o princípio da inafastabilidade da jurisdição não pode ser rechaçado, porque em muito tem contribuído para a discussão de mazelas sociais, muita das vezes negligenciada pelos demais poderes, a exemplo da questão carcerária que chegou ao pleno do Supremo Tribunal Federal com a ADPF 347.

 

4.2 A Tutela Jurisdicional ante o ECI

 

Diante da notoriedade que Poder Judiciário vem ganhando com a aplicação do princípio da inafastabilidade da jurisdição, o Supremo Tribunal Federal também se tornou protagonista nessa nova ordem constitucional, o que fica evidenciado com a relevância dos temas trazidos à apreciação da suprema corte brasileira e do impacto de suas decisões na sociedade brasileira.

Dessa forma, o Estado de Coisas faz parte da aludida realidade do órgão de cúpula da justiça brasileira. Durante o julgamento da ADPF 347, foi questionada a possibilidade jurídica de declarar do ECI pela via judiciário, recebendo também críticas sobre a legitimidade democrática e constitucional do STF em adotar essas medidas.

É preciso ressaltar que a questão está longe de ser pacificada, até mesmo porque o STF deferiu apenas em medida cautelar alguma das medidas ajuizadas na arguição em comento. Todavia, de acordo com que se pode extrair das palavras do Ministro Marco Aurélio, ao declarar o estado de coisas inconstitucional dos presídios, a possibilidade de discussão merece ser considerada, uma vez que o objetivo do ECI é justamente provocar o judiciário diante de um quadro agravado de violação à direitos fundamentais.

Nesse sentido Campos (2015), argumenta que a decisão do STF foi correta, pois, como corte constitucional, não foi nem inerte, nem tentou resolver tudo sozinha.

Diante de um judiciário cada vez mais ativo e protagonista em questões de relevância da sociedade, a declaração do Estado de Coisas Inconstitucional tende a ser uma alternativa, diante de um quadro sistemático de violações estruturais a direitos fundamentais, que não se limitam ao problema carcerário, configurando com bastante clareza as palavras do Ministro Luís Roberto Barroso ao afirmar que o judiciário que defender uma “agir proativo” ou “expansivo” da Justiça[12].

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A análise dos princípios vem ganhando relevância no âmbito do direito constitucional brasileiro, conforme anota MELLO (2005, p.) um princípio é um “mandamento nucelar de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas (...)”, logo, não somente as normas, mas também o Estado e aqueles que atuam em seu nome estão vinculados a concretização dos parâmetros principiológicos insculpidos na Carta Magna.

Dentre estes princípios, é de grande valia o da inafastabilidade da jurisdição. De acordo com esse corolário, o Poder do Judiciário não pode se escusar de apreciar lesão ou ameaça a direitos, inclusive em relação a outros princípios. Conforme leciona Alexandre de Moraes[13] “o Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade de ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular”. Por essa razão, o magistrado tem a atribuição de aplicar as leis, no sentido de buscar maior efetividade dos direitos fundamentais, podendo, quando constatado, fazer cessar possíveis violações às garantias constitucionais.

Dentro desse diapasão, surge no cenário político e jurídico brasileiro o Estado de Coisas Inconstitucional, produto de diversas experiências na Corte Constitucional da Colômbia diante de gritantes violações a direitos fundamentais naquele país, conforme demonstrado nesse trabalho. Esses litígios têm como características falhas estruturais, decorrentes da completa falta de políticas públicas do Estado, cuja prejudicialidade atinge um número indeterminado de indivíduos e responsabilidade alcança um amplo número de autoridades, poderes e instituições públicas.

Desse modo, o Supremo Tribunal Federal acolheu, em medida cautelar, duas das oito medidas propostas na arguição. Para o Ministro Marco Aurélio, relator da ADPF 347, existe um Estado de Coisas Inconstitucional no sistema prisional brasileiro, cuja realidade é de completo desrespeito aos direitos humanos. O STF determinou a realização de audiência de custódia e o descontingenciamento de recursos do fundo penitenciário.

Não obstante, a concretização do ECI ainda não é unanimidade no pais, recebendo também críticas quanto a sua natureza e aplicabilidade, como demonstrado durante o julgamento nos pronunciamentos do Advogado Geral da União e da Procuradoria Geral da República, quando trataram do fim do contingenciamento dos recursos da União para o sistema prisional brasileiro. Para uma parte da doutrina, o ECI configura um arriscado ativismo judicial, onde estaria sendo violado o princípio da separação dos poderes e ainda correndo o risco de não obter um resultado prático[14].

Embora sejam relevantes os questionamentos, é inegável a notoriedade da discussão em torno do Estado de Coisas Inconstitucional. Primeiramente por conta das imensas violações estruturais aos direitos fundamentais ainda presentes na sociedade brasileira, que não se resumem ao problema carcerário. Dessa forma, o ECI se tornaria um instrumento com vistas a atacar o flagelo gritante de uma série de garantias fundamentais no país.

 Segundo, porque de um modo ou de outro a busca pela decretação do Estado de Coisas traz a baila a participação do judiciário na resolução de vicissitudes sociais, uma vez que o Supremo Tribunal Federal, como guardião da constituição e órgão de cúpula da Justiça brasileira, tomou uma importante iniciativa no sentido de debelar uma crise estrutural do país. Isso configuraria, ao menos teoricamente, o aspecto mais intrínseco do princípio da inafastabilidade da jurisdição, a apreciação da lesão a direitos.

Independentemente de quais serão os desdobramentos do ECI no Brasil, é válido o entendimento inicial do Supremo, em que reconhece a necessidade de tomar uma atitude em para amenizar um dilema, sem, contudo, afrontar a separação dos poderes, o que mostra um judiciário participativo, mas não intromissão nas demandas nacionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. Teoria Geral. Comentários aos arts. 1o à 5o da Constituição da República Federativa do Brasil. Doutrina e Jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Atlas S.A., 1998, p. 197.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 18 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.451.

 



[1] Estudante do 10° período de Direito, Campus Bacanga – Universidade Federal do Maranhão, UFMA. E-mail: [email protected].

[2] Bolsista no Programa de Educação Tutorial- PET conexões sociopedagógicas e acadêmica do 5º período de Direito, Campus Bacanga – Universidade Federal do Maranhão, UFMA. E-mail: [email protected].

[3] Disponível em http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1997/SU559-97.htm, acessado em 03/10/2015, às 18h 05.

[4] Disponível em http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1998/t-153-98.htm, acessado em 03/10/2015, às 18h 15.

[6]Disponível em  http://www.corteconstitucional.gov.co/T-025-04/Autos.php, acessado em 03/10/2015, às 18h 25.

[7] Reincidência Criminal no Brasil. Relatório de Pesquisa. IPEA. Rio de Janeiro. 2015.

[8] Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=299385.

[9] Idem.

[10] Idem

[11] Ou “boca da lei”, clássica expressão de Montesquieu ao afirmar a separação dos poderes e as atribuições do Poder Judiciário.

[13] MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. Teoria Geral. Comentários aos arts. 1o à 5o da Constituição da República Federativa do Brasil. Doutrina e Jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Atlas S.A., 1998, p. 197.

[14] É o posicionamento defendido por José Eduardo de Faria e Celso Campilongo. Disponível em http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,estado-de-coisas-inconstitucional,10000000043, acessado 08/10/2015; 21h 45.