Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar o procedimento dos crimes de responsabilidade praticados por funcionários públicos em confronto com o procedimento ordinário, tendo como base o princípio constitucional da igualdade e do devido processo legal.

Desenvolvimento

A priori, faz-se necessário conceituar os crimes de responsabilidade praticados por funcionários públicos lato sensu (com exceção daqueles que possuem prerrogativa de função), no âmbito do exercício da função pública. Embora a expressão “crimes de responsabilidade” se refira aos crimes praticados contra a administração pública, não cabe a aplicação de tal procedimento àqueles que possuem foro especial em função de prerrogativa de função conforme disposto no artigo 84 do Código de Processo Penal (CPP).

Conforme estabelece o artigo 513 do CPP, nos crimes de responsabilidade, exceto nos casos de prerrogativa de função, o processo e julgamento destes agentes públicos é de competência dos juízes de direito, devendo sua instrução estar acompanhada com os documentos que justifiquem a presunção do fato delituoso, ou o motivo que impeça a apresentação de provas. Neste primeiro momento começa a se verificar uma distinção do procedimento adotado em relação aos crimes comuns, uma vez que nestes, o simples oferecimento de denúncia ou queixa crime é suficiente para instauração e instrução do feito.

A legislação processual penal, anterior à Constituição da República de 1988, ao exigir a necessidade de “documentos” para o procedimento dos crimes de responsabilidade, trouxe uma condição de procedibilidade, a fim de se evitar o processamento sob alegações desprovidas de verossimilhança que pudessem trazer prejuízos para o exercício da atividade administrativa. Entretanto, a existência de inquérito policial, segundo entendimento jurisprudencial, torna desnecessária tal condição, uma vez que o mesmo seria a investigação necessária para a comprovação do crime, sendo, portanto requisito suficiente para a instrução processual.

Posteriormente, no artigo 514 do mesmo diploma, o legislador estabeleceu que somente nos crimes afiançáveis, cuja pena máxima fosse de 4 (quatro) anos, o juiz poderia autuar e ordenar a notificação do acusado para apresentar resposta por escrito no prazo de 15 dias. Entretanto, com o advento da Lei 12.403 de 2011, a maioria dos crimes se tornou afiançável, possibilitando a ocorrência de notificação nos crimes praticados por funcionários públicos.

Porém, o que nos leva a analisar o referido procedimento, é a proteção pelo legislador processual penal dada ao acusado, uma vez que este, poderá apresentar antes da citação, ou seja, antes mesmo da formação do processo, resposta à notificação.

Entretanto, vejamos, o principio constitucional da igualdade previsto no artigo 5º da Constituição da República implica dentre outras garantias, a uma igualdade de tempos procedimentais, ou seja, isonomia processual, base do Estado Democrático de Direito. Inversamente, o CPP possibilita resposta à notificação pelos funcionários públicos, uma ampla defesa diferenciada dos demais cidadãos?

A Lei 11.709 de 2008 que alterou os artigos referentes ao procedimento comum (394 a 404 do Código de Processo Penal) estabeleceu que, após a citação do acusado, o mesmo terá o prazo de 10 dias para responder à acusação, conforme a nova redação do artigo 396:

Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.

Desta forma, a resposta à acusação só ocorre após a citação do réu, ou seja, após a formação do processo. Diferentemente, o procedimento para os crimes praticados por agentes públicos, conforme dito acima, possibilita para estes a apresentação de resposta administrativa antes mesmo da formação do processo, o que lhes assegura um benefício maior, em uma clara violação à isonomia processual e consequentemente ao principio da igualdade.

Ainda neste mesmo sentindo, verifica-se também no artigo 516 que o juiz, caso convencido da resposta apresentada pelo acusado, poderá rejeitar a queixa crime ou denúncia fundamentando o seu entendimento. Logo, evidente também que este artigo está em dissonância com o devido processo legal, vez que no procedimento comum, o juiz só poderá rejeitar a denúncia ou queixa se presentes um dos requisitos previstos no artigo 395, que dispõe:

Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:

 I - for manifestamente inepta;

II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou

III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.

Ou seja, fica claro que, no procedimento comum, somente quando se tratar de condição processual a denuncia ou queixa crime poderá ser rejeitada, ao contrário do que estabelece o procedimento em análise.

Desta forma, fica nítida a incongruência do procedimento dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos com os preceitos constitucionais de igualdade, uma vez que ao possibilitar a defesa através de uma “fase pré-processual”, estar-se-á ampliando o devido processo legal e ampla defesa, antes mesmo da existência legal do processo.

Conclusão

Diante disso, observa-se que o legislador processual penal ao estabelecer tal procedimento como forma de proteção à atividade administrativa, na verdade criou uma proteção exacerbada ao funcionário público, oferecendo-lhe a oportunidade de defender-se antes da existência do processo e que, porventura, pode se beneficiar do convencimento do juiz pela rejeição da denúncia/queixa. De fato, tal previsão legal pode permitir a impunidade de agentes que praticam atos irresponsáveis no exercício de suas funções, devendo portanto ao contrário do que estabelece o procedimento em questão, ser-lhes aplicado o procedimento comum, respeitando-se desta forma o devido processo legal e os princípios constitucionais.

 

Referências

1. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 9ª. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

2. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 13ª. ed. Belo Horizonte: Lumen Juris, 2010. xvii, 948 p.

3. Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689 de 3 de Outubro de 1941).

4. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

5. Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008.

6. Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011.