O PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE: UMA RELEITURA DA DOGMÁTICA PENAL NOS TEMPOS MODERNOS[1]

 

                                                                                                             Kamila Pereira Cardoso

 

 

SUMÁRIO: Introdução. 1 Princípio da culpabilidade: Aspectos dogmáticos. 1.1 Os sentidos fundamentais do Princípio da Culpabilidade. 1.2 Exclusão da Culpabilidade. 2 Releitura crítica acerca do princípio da culpabilidade. Conclusão. Referências.

 

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise a respeito do princípio da culpabilidade, ressaltando seus aspectos gerais e dogmáticos. Por fim, fazer uma releitura crítica acerca desse princípio, analisando como, de fato, ele é aplicado na sociedade moderna.  

 

Palavras- Chave: Princípio da culpabilidade; Direito Penal;Crítica

 

INTRODUÇÃO

 

Sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, consequentemente seu Direito Penal há de ser legítimo, democrático e vinculado aos princípios constitucionais que o informam. Dessa forma, o tipo penal deverá estar em concordância com os princípios constitucionais presentes no ordenamento vigente.

Pode-se dizer que, aplicar a justiça de forma plena, e não apenas formal implica não somente aplicar o ordenamento jurídico positivo, como também os padrões morais, sociais de todo um grupo, ou sociedade.

Os princípios constitucionais e as garantias individuais surgem, pois, como balizadores na aplicação e interpretação das normas, na escolha da decisão mais justa. Desta forma, do Estado Democrático de Direito, parte o princípio regulador de todo o Direito Penal: o da dignidade da pessoa humana, que será conformado aos princípios constitucionais do Brasil, elevando-o à categoria de Direito Penal Democrático.

E é partindo dessa idéia, de que todos os princípios constitucionais são, ou ao menos deveriam ser regulados por um mínimo de dignidade (dignidade da pessoa humana), que será apresentado a seguir as noções elementares acerca do Princípio da Culpabilidade.    

 

1 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE: ASPECTOS DOGMÁTICOS

    

A culpabilidade é apresentada como uma exigência nascida na sociedade e no mundo jurídico, apresentando um caráter individual, porém social. E é devido a este julgamento de culpabilidade, que existe a inspeção da reprovação do indivíduo que não tenha atentado para as exigências gerais.

 

O princípio da culpabilidade deve ser entendido, em primeiro lugar, como repúdio a qualquer espécie de responsabilidade, pelo resultado, ou responsabilidade objetiva. Mas deve igualmente ser entendido como exigência de que a pena não seja infligida senão quando a conduta do sujeito, mesmo associada causalmente a um resultado, lhe seja reprovável. (BATISTA, 2005, p.103)

 

Este princípio relaciona-se diretamente com o “juízo de censura” que existe nas condutas típicas e ilícitas as quais o agente pratica. A censura citada significa que o agente assumiu uma conduta específica surtindo um efeito, que se encontrava em condições de agir de forma diversa.

A ânsia por responsabilidade subjetiva leva a crer que em se tratando de um delito culposo ou doloso, a conseqüência jurídica deve ser proporcional, e adequada à gravidade do delito. Com isso afasta-se a responsabilidade penal objetiva. Portanto o agente tem que responder pelo fato de ter causado de forma material o evento, sem nenhuma deturpação por causas psicológicas. “[...] quem pratica um ato ilícito responde por todas as suas conseqüências, independemente de serem queridas, previstas ou fortuitas.” (PRADO, 2005, p.117)

 

1.1  OS SENTIDOS FUNDAMENTAIS DO PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE

 

O princípio da culpabilidade, de acordo com Rogério Grecco, apresenta três sentidos fundamentais os quais são: Culpabilidade como elemento integrante do conceito analítico de Crime; Culpabilidade como princípio medidor da pena e Culpabilidade como impedidor da responsabilidade penal objetiva, ou seja, o da responsabilidade penal sem culpa.

A culpabilidade como elemento integrante do conceito analítico do crime, implica dizer que esta é a última característica analisada, em um crime, ou seja, logo que houver certeza da prática do ato ilícito pelo agente. Confirmado o crime ( fato típico e antijurídico), parte-se então para um estudo detalhado do ocorrido para considerar a possibilidade ou não de censura em relação ao fato. Percebe-se então a função importante que a culpabilidade exerce para a caracterização da infração no âmbito penal.

A culpabilidade como princípio medidor da pena, mostra a conclusão do ato, e sua caracterização como crime, fato típico, antijurídico e culpável. Aparentemente o agente encontrar-se-á classificado como condenado, entretanto, o juiz fazendo uso de seus poderes e conhecimentos, deverá aplicar a lei de acordo com a infração. A culpabilidade assume uma postura reguladora da pena, não devendo ultrapassar o que a culpabilidade estabelece para a respectiva conduta.

 

A primeira das circunstâncias judiciais a ser auferida pelo juiz é, justamente a culpabilidade. Nessa fase esse estudo não mais se destinará a concluir pela infração penal, já verificada no momento anterior. A culpabilidade, uma vez condenado o agente, exercerá uma função mediadora da sanção penal que a ele será aplicada, devendo ser realizado outro juízo de censura sobre a conduta por ele praticada, não podendo a pena exceder ao limite necessário à reprovação pelo fato típico, ilícito e culpável praticado (GRECO, 2007, p.91)

 

A culpabilidade como princípio impedidor da responsabilidade penal objetiva, ou seja, o da responsabilidade penal sem culpa significa dizer que para que seja estipulado um resultado e este atribuído ao agente, este precisa ter agido, dolosa ou culposamente. Sem um ou outro, não existe conduta, e sem esta o fato não pode ser tido como típico, e logicamente não existirá crime. Isso tudo implica no resultado das ações (dolosa ou culposa), sendo que não podem ser atribuídos devido à responsabilidade penal, que deverá ser sempre subjetiva.

 

Em primeiro lugar, pois, o princípio da culpabilidade impõe a subjetividade penal. Não cabe, em direito penal, uma responsabilidade objetiva, derivada tão-só de uma associação causal entre conduta e um resultado de lesão ou perigo para um bem jurídico. É indispensável à culpabilidade. (BATISTA, 2005, p.104)

 

Além dos três sentidos citados, Nilo Batista afirma que a personalidade penal, é também de extrema importância. Isso significa a intranscendência da responsabilidade penal, já que esta não pode ultrapassar o autor do crime, sendo sempre de caráter pessoal. E também que existe a individualização da pena, para que esta seja concreta e aplicada para aquele a que se destina, deve ser analisado neste caso o juízo de reprovabilidade (essência da culpabilidade). Este juízo afirma ser necessário que, a reprovação venha para pessoas que ocupam uma situação melhor socialmente e também para a maioria excluída economicamente da sociedade, entrando no mérito do principio da igualdade.

 

1.2 EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE

 

O princípio da culpabilidade, expresso na fórmula nulla poena sine culpa é considerado o segundo mais importante instrumento de proteção individual do Estado Democrático de Direito, porque proíbe punir pessoas que não preenchem os requisitos do juízo de reprovação [...]. (DOS SANTOS, 2006, p.24)

 

 Esta afirmação de Cirino dos Santos explicita o modelo inicial da exclusão de culpabilidade, entre: os incapazes de saber o que fazem, os que não sabem o que fazem e os que não tem poder de não fazer o que fazem.  

A proibição de punir os que são incapazes de saber o que fazem (inimputáveis) é feita pela conclusão de que eles são incapazes de entender suas ações de certas ou erradas, e principalmente o reconhecimento das normas. Mas são certamente aplicadas medidas de segurança baseada no nível de periculosidade do autor inimputável.

Os que possuem desconhecimento inevitável da proibição de fato (imputáveis), por não saberem o que fazem. “[...] mas não proíbe punição em situação de erro evitável sobre a proibição da norma, por insuficiente reflexão ou informação do autor” (DOS SANTOS, 2006, p. 24-25)

E também proíbe a punição dos imputáveis por que estes sabem o que estão fazendo, e conhecem a punição para sua ação, mas o fazem sem o poder de não o fazer, já que em situações anormais pode existir a redução ou total exclusão de comportamento diferente do que ocorreu. Um exemplo clássico deste caso seria agindo em legítima defesa, em que, para defender a si ou a outra pessoa, o criminoso é lesado corporalmente ou até mesmo assassinado (sem exagero, do contrário desclassifica o crime de legítima defesa).

 

2 RELEITURA CRÍTICA ACERCA DO PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE

 

O princípio da culpabilidade, como bem vimos, baseia-se na idéia de que o delito é prática social reprovável, uma vez que contraria os valores e normas sociais gerais comuns aos cidadãos como um todo.

No entanto, o que se vê na prática é algo bem diferente. O que ocorre na realidade, é uma imposição dos valores sociais de uma minoria dominante, detentora do poder de classificação e etiquetamento, portanto, são os valores sociais desta minoria, que prevalecem. Ou seja, não existem valores e normas institucionalizadas por uma moral “oficial”, unívoca, senão uma imposição dos valores sociais, que não condizem com os valores de toda a população, e sim com uma parcela desta, uma minoria com maior força.

Ora, se vivemos em uma sociedade estratificada, onde há um pluralismo de grupos sociais, é bem difícil formar uma opinião “única”, “legítima”. E na luta pela afirmação desses valores sociais, as classes altas e médias acabam saindo vencedoras. Dessa forma, são os seus valores que são levados em consideração e que são protegidos pelo Direito Penal. Enquanto os demais são meros desviantes, e necessitam ser punidos:

 

Uma minoria desviante representaria, ao contrário, a culpável e reprovável rebelião a respeito destes valores, orientando o próprio comportamento, mesmo podendo fazer diversamente por critérios e modelos que não teriam natureza ética, mas ao invés, seriam a negação culpável do mínimo ético protegido pelo sistema penal. (BARATTA, 2002, p. 74- 75)

 

       O Direito Penal, portanto, não defende os valores éticos de todos os cidadãos igualmente, e sim os valores daquele grupo que detêm maior coerção, aqueles que se encontram no topo da pirâmide, e das relações sociais de produção. Ele acolhe valores de uns, e ao mesmo tempo sufoca os valores de outros tantos.

 

O Direito Penal, não exprime, pois, somente regras e valores aceitos unanimente pela sociedade, mas seleciona entre valores e modelos alternativos, de acordo com grupos sociais que, na sua construção (legislador) e na sua aplicação (magistratura, polícia, instituições penitenciárias) têm um peso prevalente. (BARATTA, 2002, p. 75)

 

Dessa forma, os crimes praticados pelos estratos baixos da sociedades serão sempre perseguidos, ao passo que os cometidos pelas classes altas serão mais bem aceitos aos olhos da sociedade. Ou seja, os comportamentos desviantes das classes altas, são neutralizados, de forma que se busque uma justificação favorável a estes, enquanto os comportamentos das camadas pobres são criminalizados.

O Direito Penal só reflete as contradições impostas pelo capitalismo e pela própria sociedade, mantendo o status quo. O processo de definição funciona da seguinte maneira: não é o comportamento em si que se torna um delito, mas uma interpretação que a classe dominante faz dele. Todos os indivíduos estão sujeitos a praticar crimes, mas apenas certos delitos ou certas pessoas são criminalizadas. Não se sustenta aqui, que apenas certos grupos estão motivados a um comportamento desviante. O que se fala é que certos grupos tem maior probabilidade de serem taxados como criminosos e de sua conduta dar causa a uma sanção.

 O direito é um instrumento pelo qual as classes dominantes se utilizam na realização de seus próprios interesses. Enfim, o processo de criminalização é um processo que acontece de forma extremamente seletiva, injusta, tendenciosa e desigual.

 

O direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário; a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; o grau efetivo de tutela e a distribuição do status  de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade. (BARATTA, 2002, p. 162)

 

 

CONCLUSÃO

  

Com base em tudo o que aqui foi exposto, é de se concluir que: O Princípio da Culpabilidade está relacionado ao “juízo de reprovação” das condutas típicas e ilícitas, praticadas por um determinado agente. Vê-se que, a conseqüência pela prática do delito deve ser proporcional, e, portanto condizente com o delito então praticado.

Dessa forma, a culpabilidade, antes de mais nada, tem um caráter social, ou seja, funciona como uma forma de fiscalização das atitudes dos indivíduos, e principalmente daqueles que não tenham atentado para as exigências gerais, morais e éticas da sociedade na qual ele está inserido.

No entanto, o que se vê na realidade prática, é algo totalmente distinto e deslocado dessa proposição formal. O que se vê é que o delito não é uma prática social reprovável, que contrarie os valores e normas sociais gerais, unívocas. Mesmo porque, numa sociedade estratificada tal qual a nossa, inexiste valores e normas tidas como únicas, legítimas, oficiais.  O que existe, é sim aqueles valores sociais tidos como “principais” e condizentes com os valores sociais de uma minoria detentora do poder, que são impostos, e portanto detém maior coerção sobre os demais.

O Direito Penal, portanto, acolhe somente os valores pertencentes aos estratos médios e altos da sociedade, neutralizando os crimes cometidos por estes, e criminalizando os crimes cometidos pelas classes baixas. Em suma: não é o comportamento em si que se torna crime, mas a interpretação que a classe dominante faz dele.

 

CULPABILITY PRINCIPLE: A PENAL DOGMATIC READING IN MODERN TIMES  

 

ABSTRACT

The present article has the objective to make an analyzes about the Culpability principle, projecting its general and dogmatic aspects. At last, do a critical re-reading about this principle, analyzing, in fact, how it is used in the modern society.

 

Key-Words:  Culpability Principle; Penal Code; Critic

 

REFERÊNCIAS

 

BARATTA, Alessandro.Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do Direito Penal. 3ª.ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

 

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, 10ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

 

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 8ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.

 

DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito Pena: parte geral.Curitiba: Lumen Juris, 2006.

 

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V.1 5ª.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.



[1] Paper apresentado à Disciplina de Teoria do Direito Penal ministrada pela professora Carolina Pecegueiro