O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS ESSENCIAIS ANTE A INTERRUPÇÃO POR INADIMPLEMENTO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA:

Uma análise à luz do Direito do Consumidor

 

 

                Karolinne França Mendes

Sergianny Pereira da Silva *

Súmário: 1Introdução; 2 Energia elétrica: bem essencial e direito fundamental do consumidor; 3 As práticas comerciais consumeiristas: proibição da abusividade; 4 O Princípio da boa- fé objetiva no fornecimento de energia elétrica; 5 A antinomia entre norma do consumidor  e norma jurídica; 6 A Teoria da Lesão e a proibição do retrocesso;  Conclusão. Referências

 

RESUMO

Apresenta-se uma análise acerca do fornecimento de energia elétrica, sob o prima do Código de Defesa do Consumidor, estendendo reflexão a respeito das possibilidades de interrupção destes tipos de serviços públicos com base no inadimplemento do consumidor, dada a essencialidade deste serviço. Reflete-se a possibilidade de corte do fornecimento e, de igual forma, como vem sido consolidado o entendimento dos tribunais quanto à aplicação do princípio da continuidade nos serviços públicos essenciais, visto sua importância atual na vida dos consumidores.

 

PALAVRAS-CHAVES

 

Inadimplemento. Energia Elétrica. Interrupção. Práticas Abusivas.

 

1 INTRODUÇÃO

 

A presente exposição tentará estabelecer uma discussão reflexiva a cerca do fornecimento de serviço essencial, em especial a energia elétrica, reconhecida como um

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*Paper apresentado à disciplina de Direito do Consumidor, ministrada pelo Prof. ª Thays Viegas, no Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, para fim de obtenção da segunda nota, pelas alunas do 6° período vespertino. Email: [email protected] e [email protected]

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serviço essencial à pessoa humana. Nesta perspectiva buscar-se-á analisar a possibilidade de corte deste serviço, dada a sua essencialidade e o principio da continuidade que engloba a prestação destes serviços essenciais. 

O CDC surgiu com o intuito de regular as relações de consumo deflagradas na realidade social, estabelecendo meios de proteção ao consumidor, tantas vezes figurante de uma posição desfavorável nestas relações. Nesta ótica, se buscará analisar a posição do consumidor ante o fornecedor de energia elétrica, bem se em caso de inadimplemento, o corte do fornecimento do serviço não configuraria um mecanismo de autotutela por parte do fornecedor, posto haver outros meios judiciais de cobrança da dívida respectiva.

Para fim de estabelecer estas discussões além de base bibliográfica referente ao assunto, buscar-se-á consolidar um posicionamento acerca deste tema com jurisprudências que corroborem para esta formação.  

Assim, sem mais delongas cabe iniciar a exposição apresentando a energia elétrica como um serviço essencial do consumidor.

2  ENERGIA ELÉTRICA: BEM ESSENCIAL E DIREITO FUNDAMENTAL DO CONSUMIDOR

Ante a realidade brasileira atual, não é difícil observar que o fornecimento de energia elétrica se revela com um serviço por deveras essencial a própria existência humana.  Foi com base neste entendimento que a energia elétrica fora considerada um direito essencial, pela Portaria n° 03/1999, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça1, fato que vincula o fornecedor (seja público, concessionárias ou permissionárias) deste serviço a todas as obrigações referidas na legislação consumeirista, que reveste a prestação deste serviço das características da adequabilidade, eficiência, segurança e continuidade, como bem assevera o art. 22, do CDC. Por esta razão, em caso de descumprimento das obrigações que são auferidas aos fornecedores deste serviço, resultará na obrigação da pessoa jurídica de cumpri-las e de reparar os danos causados ao consumidor. Isto reflete, inclusive, na forma de cobrança de débitos que será realizada ante a inadimplência do consumidor guardando o mesmo

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1 MARTINS, Plínio Lacerda. A interrupção do fornecimento de energia elétrica por falta de pagamento- uma reflexão para o direito do consumidor. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas gerais. Belo Horizonte, n. 8, jan./jun. 2007. Pg. 2

de um tratamento vexatório no ato deste procedimento.

Vale ressaltar, que o CDC surgiu de um comando constitucional de proteção ao consumidor, fato que pode ser observado no art. 5°, XXXII; 170, V, da CF/88 e art. 48, dos ADCT, o que eleva o direito do consumidor a direito fundamental constitucional, não podendo ser inobservado em relações de cunho consumeirista.

Enquanto serviço público, o fornecimento de energia elétrica pode ser atribuído a concessionárias ou permissionárias, o que, contudo, não as exime de cumprir com as obrigações que as alcança pelo fato de fornecerem tal serviço, a exemplo da continuidade da prestação dos serviços essenciais, como é o caso da energia elétrica. 

Vale mencionar a lição exemplar de Moura a este respeito:

A continuidade dos serviços essenciais significa que devem ser eles prestados de modo permanente e sem interrupção, salvo ocorrência de caso fortuito ou força maior que determine sua paralisação passageira. A hipótese é a de o particular já estar recebendo o serviço. Não pode a pessoa jurídica criar descontinuidade. Serviços essenciais são todos os que se tornam indispensáveis para a conservação, preservação da vida, saúde, higiene, educação e trabalho das pessoas. Na época moderna, exemplificativamente, se tornam essenciais, nas condições de já estarem sendo prestados, o transporte, água, esgoto, fornecimento de eletricidade com estabilidade, linha telefônica, limpeza urbana, etc. [...] Uma inovação trazida pela atual Constituição é a extensão do mesmo critério às concessionárias ou permissionárias do serviço público. 2

Como melhor ficará delineado a seguir, a noção desta continuidade, contudo, tem sido relativizada, possibilitando a interrupção de serviço essencial, como a energia elétrica. Neste sentido, intenta-se refletir sobre esta hipótese, para fim de formar um entendimento próprio a respeito.

3 AS PRÁTICAS COMERCIAIS CONSUMEIRISTAS: PROIBIÇÃO DA ABUSIVIDADE

 

Ao consumidor, o CDC assegura o direito de reparação pelos danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos a ele causados, como prevê o art. 6°, VI, do CDC.

Fato se faz que, conflitos como este eclodem todos os dias na realidade social e que fazem saltar aos olhos nítido desequilíbrio na relação consumidor-

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2 MOURA, Mário Aguiar. O poder público como fornecedor perante o Código de Defesa do Consumidor. Repertório de Jurisprudência IOB: 2° quinzena de abril. 1992. Pg. 17

fornecedor, refletindo, muitas vezes, em práticas abusivas por parte do pólo mais forte desta relação. Isto repercute na necessidade de uma intervenção estatal satisfatória, no sentido de prevenir o consumidor de possível lesão, que o poderio econômico da parte mais forte é capaz de ocasionar, mediante a própria força contratual.3

Vale destacar que, faticamente, os contratos pactuados pelo consumidor para o fornecimento de energia elétrica se moldam na figura dos contratos de adesão, que, em realidade, usurpam o direito de abrir discussão a respeito das cláusulas impostas pelo fornecedor, dentre elas as que se referes à questão da interrupção do fornecimento de energia elétrica.

Fato é que, não raras vezes, o consumidor é surpreendido com a cobrança de debitas indevidos, que como solução, o fornecedor apresenta o pagamento da dívida, para só, posteriormente, discuti-la, sob pena da configuração do corte de energia elétrica. Ora, esta prática abusiva nos parece, na medida em que o próprio CDC, dispõe no seu art. 39, IV, que se prevalecer a fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seu produto ou serviço, constitui prática abusiva repudiada pela norma consumeirista.4

Não se pode negar que é de conhecimento de todos ser pretérito o tempo em que a execração pública e o constrangimento dos devedores eram vistos como meios para obrigá-los ao pagamento de suas dívidas. Assim, cabe-nos refletir em que medida o corte do fornecimento de energia elétrica é um mecanismo vigente de cobrança que fere a dignidade dos devedores ou oportuniza aos mesmos uma espécie de constrangimento. Ora, o fornecimento de energia elétrica é essencial e sua interrupção enseja direito do consumidor de, em juízo, postular o seu fornecimento, de modo a assinalar direito básico do consumidor, previsto no art. 6°, VI, X e 22, do CDC.5

Certo é que o tratamento vexatório na prática da cobrança é repelida pelo CDC, em seus art. 42, podendo configurar até mesmo conduta criminosa, estabelecida no art. 71, do CDC. 

Por esta razão, que deve ser observado no fornecimento deste serviço, também, uma vinculação ao princípio da boa- fé objetiva, orientador do CDC e de todo o ordenamento jurídico brasileiro.

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3 MARTINS, Plínio Lacerda. Op. Cit. Pg. 5

4 Id Ibidem. pg. 6

5Id Ibidem. pg. 8

4 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA

 

A legislação consumerista, com o intuito de proteger o consumidor de práticas abusivas, prevê o desenvolvimento de ações por parte do Estado que visem garantir a prestação de serviços adequados aos padrões de segurança, qualidade e durabilidade que destes são esperados apresentar. Neste sentido, dispõe o art. 4°, II, d, do CDC, que dispõe ser dever do Estado primar pela

 “(...) harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.

É fato que o princípio da boa-fé, base do ordenamento jurídico brasileiro, não está excluído de sua verificação nas relações de consumo, como bem pode ser observada a sua previsão em legislação específica. É, por esta razão, que a boa-fé deve delinear também a prestação dos serviços essenciais, como a energia elétrica, por parte do fornecedor, pelo fato notório de ser, hodiernamente, este um dos serviços mais essenciais à pessoa humana.

É neste sentido que o Princípio da Boa- fé Objetiva é aclarado pelo CDC e muito bem demonstrado nas palavras de Marques

Boa-fé significa aqui um nível mínimo e objetivo de cuidados, de respeito e de tratamento leal com a pessoa do parceiro contratual e seus dependentes. Este patamar de lealdade, cooperação, informação e cuidados com o patrimônio e a pessoa do consumidor é imposto por norma legal, tendo em vista a aversão do direito ao abuso e aos atos abusivos praticados pelo contratante mais forte, o fornecedor, com base na liberdade assegurada pelo princípio da autonomia privada.6

Assim, o princípio da boa- fé é aclamado nas relações consumeiristas, posto haver práticas abusivas que desequilibram a relação contratual e atentam ao mínimo esperado de boa- fé a ser verificado nas relações de consumo, principalmente, quando diz respeito ao modo de cobrança de débitos.  É com este norte, que o CDC traz a

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6 MARQUES, Claudia Lima Marques. Congresso Mineiro de Direito do Consumidor, sobre Saúde e Qualidade. Belo Horizonte. 15 a 17 de maio de 1996

previsão, como direito básico do consumidor, a proteção contra cláusulas e práticas abusivas do fornecedor. (art. 6°, IV, do CDC).

Diante do já exposto, cabe agora aprofundar a discussão em torno da possível antinomia entre a norma consumeirista e a jurídica, como assim se dará.

5 A ANTINOMIA ENTRE NORMA DO CONSUMIDOR E NORMA JURÍDICA

 

Eis que surge um ponto nesta discussão capaz de aquecê-la ainda mais: como ponderar o art. 22, do CDC, que impõe continuidade dos serviços públicos essenciais, com o art. 6°, §3°, II, da Lei n° 8987/95, que autoriza o corte de fornecimento de energia elétrica por inadimplemento, afirmando que nem mesmo caracteriza descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após aviso prévio? Lex posteriori revoga legis a priori? O serviço essencial pode ser interrompido?

Lógico parece que o CDC, “como norma especial, contém o sistema jurídico do equilíbrio da relação de consumo, não podendo ser revogada por norma posterior que regula a concessão e permissão de serviços públicos, e não o direito do usuário/consumidor”7. Além do que, a Emenda Constitucional n°19/98, em seu art. 27, afirma que o Congresso Nacional deve elaborar lei em defesa do usuário de serviços público, o que ainda não fora cumprido, mais uma vez levando à aplicação do CDC em tais situações.

6 A TEORIA DA LESÃO E A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO

 

Como da relação de consumo, o consumidor pode provar de uma situação de desvantagem, cabe mencionar a Teoria da Lesão, que prevê a possibilidade de haver uma desvantagem exagerada ao consumidor, caracterizando ao mesmo uma lesão.8 A lesão aqui é caracterizada por ser vício no negócio jurídico que se compara ao dolo, o que não impossibilita à parte que contratar o serviço a possibilidade de negociar e revisar as cláusulas contratuais que trazem uma onerosidade excessiva ao consumidor.9

O CDC adota a Teoria da Lesão, bastando fato superveniente que concretize

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7 MARTINS, Plínio Lacerda. Op. Cit. Pg. 9

8 Id Ibidem. pg. 5

9 Id Ibidem. pg. 5

a lesão ao direito do consumidor para configurá-la. Desta forma, a interrupção do fornecimento de energia elétrica ao consumidor em estado de inadimplência, configuraria lesão a direito do consumidor, posto que este teve obstado seu direito de acesso à justiça para fim de discutir a débito em questão, em face do corte realizado pelo fornecedor, que nesta situação guarda posição de manifesta vantagem, posto que utilizou para do corte para compelir ao pagamento, fato que nitidamente traduz a realização da justiça privada (autotutela), o que, ressalte-se, é repudiado no ordenamento jurídico brasileiro.10

Como já mencionado acima, o CDC eleva o direito do consumidor a direito fundamental constitucional e, neste sentido, têm-se ousado afirmar que “é correto a premissa de que qualquer norma infraconstitucional que ofender os direitos consagrados pelo CDC está ferindo a Constituição e, mutatis mutandis, deverá ser declarada como inconstitucional” 11. Por razão de possuir status constitucionais, o direito do consumidor não pode sofrer retrocessos, o poderia ser observado quando a Lei da Concessão do Serviço Público afirma não haver descontinuidade na sua interrupção por inadimplemento, quando o próprio CDC, no seu art. 22, afirma a obrigatoriedade da continuidade do serviço público, sendo, neste raciocínio, inconstitucional, o dispositivo que autoriza a interrupção do serviço essencial.

Muitos entendimentos foram formados tomando como ilegal o corte do fornecimento de energia elétrica, dada sua essencialidade e a exigência de continuidade de sua prestação, como se pode observar no julgado abaixo:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ENERGIA ELÉTRICA. SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL. CORTE DE FORNECIMENTO. CONSUMIDOR INADIMPLENTE. IMPOSSIBILIDADE.- Esta Corte vem reconhecendo ao consumidor o direito da utilização dos serviços públicos essenciais ao seu cotidiano, como o fornecimento de energia elétrica, em razão do princípio da continuidade (CDC, art. 22).- O corte de energia, utilizado pela Companhia para obrigar o usuário ao pagamento de tarifa em atraso, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar o adimplemento do débito- Precedentes.- Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 298017/MG, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/04/2001, DJ 27/08/2001, p. 230)12

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10 Id Ibidem. pg. 5

11 Id Ibidem. pg. 11

12 AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 298017/MG, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/04/2001, DJ 27/08/2001. Disponível em:<< http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/ >>. Acesso em:<< 30. Out. 2010>>.

Porém, o STJ tem mudado seu entendimento, entendendo ser possível o  “corte do fornecimento do serviço essencial, desde que notificado previamente o consumidor inadimplente, em atenção ao princípio da segurança jurídica e da continuidade do serviço público, que não é absoluto e sim relativo”.13Sendo assim, o fornecedor poderá interromper o serviço se, após o aviso prévio, o consumidor, continuar inadimplente.

Ao contrário deste entendimento, sustenta-se no presente trabalho não ser possível a interrupção do serviço público essencial em caso de inadimplência, pois cabe ao fornecedor se valer dos meios válidos em juízo para cobrar que lhe é devido, podendo, inclusive, requerer ao juiz a interrupção do serviço, posto ser o juiz o representante do Estado, cabendo a ele dizer o direito e, se for o caso, determinar providência excepcional em procedimento cautelar, caso seja conveniente, o que suspende a possibilidade de o próprio fornecedor usar de justiça privada para valer seus interesses, interrompendo o fornecimento do serviço para compelir o consumidor ao pagamento, posto haver meios legais e judiciais para tanto, que não ferirão direito fundamentais do consumidor.

Porém, alegra saber que tal entendimento não fora por completo apartado do STJ, como pode ser observado no voto corajoso, embora vencido, do Ministro Luiz Fux

ADMINISTRATIVO. CORTE DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. INADIMPLÊNCIA DO CONSUMIDOR. LEGALIDADE. 1. A 1ª Seção, no julgamento do RESP n° 363.943/MG, assentou o entendimento de que é lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (Lei 8987/95, art. 6/ §3°, II). 2. Ademais, a 2ª Turma desta Corte, no julgamento do RESP n° 337.965/MG conclui que o corte no fornecimento de água em decorrência de mora, além de não malferir o Código do Consumidor, é permitido pela Lei n° 8.987/95. 3. Não obstante, ressalvo o entendimento de que o corte do fornecimento de serviços essenciais – água e energia elétrica- como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade e afronta a cláusula pétrea de respeito à dignidade humana, porquanto o cidadão se utiliza dos serviços públicos posto essenciais para a sua vida, curvo-me ao posicionamento majoritário da Seção. 4. Hodiernamente, inviabiliza-se a aplicação da legislação infraconstitucional impermeável aos princípios constitucionais, dentre os quais sobressai o da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República, por isso que inaugura o texto constitucional, que revela o nosso ideário como nação. 5. In casu, o litígio não gravita em torno de uma empresa que necessita de energia para insumo, tampouco de pessoas jurídicas portentosas, mas de uma pessoa física miserável e desempregada, de

 

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13 MARTINS, Plínio Lacerda. Op. Cit. Pg. 15

sorte que a ótica tem que ser outra. Como afirmou o Ministro Francisco Peçanha Martins noutra ocasião, temos que enunciar o direito aplicável ao caso concreto, não o direito em tese. Forçoso, distinguir, em primeiro lugar, o inadimplemento perpetrado por uma pessoa jurídica portentosa e aquele inerente a uma pessoa física que está vivendo no limite da sobrevivência biológica. 6. Em segundo lugar, a Lei de Concessões estabelece que é possível o corte considerado o interesse da coletividade, que significa interditar o corte de energia de um hospital ou de uma universidade, bem como o de uma pessoa que não possui condições financeiras para pagar conta de luz de valor módico, máxime quando a concessionária tem meios jurídicos  legais da ação de cobrança. A responsabilidade patrimonial no direito brasileiro incide sobre o patrimônio do devedor e, neste caso, está incidindo sobre a própria pessoa. 7. Outrossim, é voz corrente que o interesse da coletividade refere-se aos municípios, às universidades, hospitais, onde se atingem interesses plurissubjetivos. 8. Destarte, mister analisar que as empresas concessionárias ressalvam evidentemente um percentual de inadimplemento na sua avaliação de perdas, e os fatos notórios não dependm d prova (notória nom egent probationem), por isso que a empresa recebe mais do que experimenta inadimplementos. 9. Esses fatos conduzem a conclusão contrária à possibilidade de corte do fornecimento de serviços essenciais de pessoa física em situação de miserabilidade, em contra-partida ao corte de pessoa jurídica portentosa, que pode pagar e protela a prestação da sua obrigação, aproveitando-se dos meios judiciais cabíveis. 0. Recurso especial provido, ante a função uniformizadora da Corte. (REsp 604364/CE, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/05/2004, DJ 21/06/2004, p. 175)14   

Desta forma, intentou-se demonstrar que o corte do fornecimento de um serviço essencial como é a energia elétrica deve ser encarado com a cautela que o assunto merece, posto não se tratar de um serviço qualquer, mas de um serviço essencial ao ser humano, dada ser reconhecida seu caráter fundamental enquanto direito, respaldando-se, inclusive, no texto constitucional. Devido o caráter de continuidade deste serviço, defende-se ser ilegal a interrupção do serviço com base no inadimplemento do consumidor, principalmente, a depender do caso concreto, quando se tratar o consumidor de uma pessoa física que vive em situações de miséria e pobreza não muito difíceis de serem observados em nosso país.

CONCLUSÃO

Ante o exposto, conclui-se ser prática abusiva o corte do fornecimento de energia elétrica com base no inadimplemento do consumidor, pela simples razão de ser este um serviço essencial reconhecido. Logo, sob o óbice deste entendimento não

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14 RECURSO ESPECIAL 604364/CE, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/05/2004, DJ 21/06/2004. Disponível em:<< http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/182278/recurso-especial-resp-604364-ce-2003-0199346-0-stj >>. Acesso em:<< 30. Out. 2010>>.

prevalecerá a norma que autoriza a interrupção do serviço (Lei n/ 8987/95) em face do CDC, posto dever prevalecer esta em razão da proibição do retrocesso.

Além do que, entende-se que o corte como forma de compelir o consumidor ao pagamento não deve ser um meio aceito e perpetuado, visto que assim, estar-se-ia permitindo ao fornecedor exercer uma justiça privada (autotutela) para fim de satisfazer seus interesses. Posto que há, em nosso ordenamento jurídico, meios judiciais que possibilitam a cobrança do débito devido, atingindo o patrimônio do devedor e não ocasionando uma lesão ao consumidor, por auferir prejuízos a própria pessoa do devedor.

 REFERÊNCIAS

  

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 298017/MG, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/04/2001, DJ 27/08/2001. Disponível em:<< http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/ >>. Acesso em:<< 30. Out. 2010>>.

MARQUES, Claudia Lima Marques. Congresso Mineiro de Direito do Consumidor, sobre Saúde e Qualidade. Belo Horizonte. 15 a 17 de maio de 1996.

MARTINS, Plínio Lacerda. A interrupção do fornecimento de energia elétrica por falta de pagamento- uma reflexão para o direito do consumidor. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas gerais. Belo Horizonte, n. 8, jan./jun. 2007.

MOURA, Mário Aguiar. O poder público como fornecedor perante o Código de Defesa do Consumidor. Repertório de Jurisprudência IOB: 2° quinzena de abril. 1992

RECURSO ESPECIAL 604364/CE, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/05/2004, DJ 21/06/2004. Disponível em:<< http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/182278/recurso-especial-resp-604364-ce-2003-0199346-0-stj >>. Acesso em:<< 30. Out. 2010>>.