Crônica

                                             O POETA DO SERTÃO

                                                            Edevaldo Leal

 

                              Estou na terra do poeta do povo – o poeta do sertão, como eu prefiro. Ando devagar e com cuidado em respeito ao poeta que, tantas vezes, fez o mesmo trajeto que hoje eu faço. Em cada esquina, em cada canto, em todas as ruas por onde passo, vejo aquele moleque, o pretinho de pernas cambotas, o que lhe valeu o apelido de Pé de Xote. Gago, vejo Pé de Xote descalço e sem camisa, de calção listrado, o tabuleiro preso à  rodilha na cabeça, vibrando no ar a voz a gritar : “ venha, seu moço, venha comprar pirulito, arroz doce e munguzá “.

                               Afinal que cidade é essa e quem é Pé de Xote? O cronista não tem pressa e deixa para resolver  curiosidades depois, se é que, pelas pegadas  deixadas  na areia movediça deste início de crônica, o leitor já não saiba de quem eu falo.

                              De estudo, do alfabeto, Pé de Xote sabia pouco. Já exímio e festejado compositor brasileiro, construía tudo de memória: as letras e as canções. Peço ao poeta uma ajudinha e, então, ele diz por que não logrou êxito nos estudos: “ Eu vendia pirulito, arroz doce, munguzá / Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam  estudar/ A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar “.

                              Resignado ,o poeta-compositor nunca guardou mágoa de sua vida pobre e sofrida, mesmo quando, aos nove anos, vítima do preconceito, os poderosos de plantão o afastaram dos estudos, para dar lugar ao filho de um apadrinhado político da região. Preferia ver seus amigos “doutô”, como revelou em Minha História, composição de sua autoria. Tristeza, para o celebrado compositor, era saber que, muitos de seus colegas “ ...continuam no sertão/ Não puderam estudar,/ e nem sabem fazer baião”.

                              Passo, com certa reverência ,pela rua da Golada, à margem direita do Rio Mearim, onde Zé Cachangá  era o tocador de uma só música: Pisa na Fulô. Aqui, nesta rua, cresceu o menino que, mesmo sem estudos, se fez poeta e poeta do povo. Não estudou, é verdade, mas  assimilou experiências ao longo da vida e construiu uma poesia de matriz nordestina, que se tornou universal por estimular a liberdade, esse sentimento tão comum a todos os povos em qualquer época e lugar.

                              Os poemas-composições do  poeta do povo lembram-me o homem dos pés descalços, sujos da poeira seca da terra nordestina, “... o lavrador com o joelho no chão/o pranto banhando o rosto/seu filho pedindo pão...”. A vida simples do nordestino, a fala, os hábitos e a desigualdade social compõem o tema que vibra na obra do autor de Morena do Grotão.

                              Desconhecido nestes tempos de tremes e bregas, ele teve músicas gravadas por nomes como Nara Leão, Luiz Gonzaga, Tim Maia, Gilberto Gil, Cássia Éller, Alceu Valença, Paulinho da Viola, Tom Jobim, Edu Lobo, Alcione, João Bosco e Chico Buarque de Holanda.

                              Estou em Pedreiras, município do Estado do Maranhão, berço e túmulo de João do Vale.

                              Feito o Carcará de sua canção mais famosa, que, em um tempo sombrio da nossa história ajudou a espantar os fantasmas da liberdade, João do Vale resiste: pegou, quebrou e passou por cima dos espinhos de sua infância pobre e verdadeiramente não morreu: está vivo, pulsante, em cada canção em que retrata a brava gente nordestina.

                              Nem a propósito, o bicho que pousou agora naquela árvore é o pássaro malvado. É o Carcará, a águia do sertão.

                                                   Pedreiras/MA, 15 de julho de 2013.