O Poder da Imprensa no Golpe de 1964

O objetivo deste artigo é analisar o poder que a imprensa exerce junto à sociedade, influenciando as memórias de gerações e incentivando a aceitação de verdades conforme os fins daquele jornal.
Em 31 de Março de 1964, jornais por todo o Brasil já divulgavam o que estava por vir, o golpe militar um dia depois. No entanto, as notícias desqualificando o governo João Goulart e tratando o desfecho de 1° de abril como um ato revolucionário era visível. O Correio da Manhã, do dia anterior à tomada do poder, estampava a manchete, "O Brasil já sofreu demais com o governo atual. Agora chega". No Tribuna da Imprensa, da mesma data, publicava, "Os democratas assumem os comandos militares. Rio festeja a demissão" (CAPELATO, 1994, p. 53).
Nota-se o caráter impactante das notícias e o poder que a imprensa possuía e possui para a construção da memória coletiva de uma dada sociedade. Conforme Gérard Lebrun "a força não significa necessariamente a posse de meios violentos de coerção, mas de meios que permitam influir no comportamento de outra pessoa" (LEBRUN, 2004).
Marialva Barbosa, por exemplo, em seu Os Donos do Rio, fez um trabalho minucioso de investigação das relações de poder entre os empresários-jornalistas e os governos federal e estadual. As trocas de matérias encomendadas entre jornais e governos eram presentes desde o início da república.
Então, esses periódicos se auto-constroem em parceria com os governos estabelecidos, possuindo um poder inquestionável, já que terão a função de formar um discurso unificado. Priorizando conteúdos e desprezando outros, esses jornais, estão construindo memórias da sociedade sob determinada ótica.
O jornalista, ao selecionar certos fatos e relegar outros ao esquecimento, possui o poder do que deve ser explorado ou não na sociedade. Eternizar um momento é domesticar e selecionar a memória. Os jornais, nesse sentido, atuam como senhores da memória, já que escolhem o que deve ser lembrado ou esquecido. Conforme Le Goff, a memória escrita está diretamente ligada a poder.
O Jornal do Brasil, por exemplo, no início criou-se uma imagem de um periódico popular e destinado a fiscalizar os absurdos do poder, no entanto, ao final do século XIX, assume, nitidamente, uma postura de defensor dos grupos políticos e econômicos que o financiava. Essa função de intermediário dos leitores com o poder público dá ao jornal popularidade e poder, no qual, invariavelmente, os periódicos são procurados pelos poderosos para agir conforme seus interesses.
Entretanto esta conivência não era gratuita, já no governo Prudente de Morais a troca de favores com os periódicos era freqüente. Havia distribuição de verbas a jornais de confiança do presidente.
A Gazeta de Notícias recebia mil réis por matéria encomendada. João Lage, de O Paiz, afirmava que a subvenção é uma atividade própria do jornalismo. Entre 1903 e 1905, o empresário obtém, do Banco da República, empréstimos no valor de 1250 contos.
Em 1911, o Jornal do Brasil conseguiu empréstimos junto ao Banco do Brasil. Campos Sales afirmou que distribuiu, no período, um milhão de contos de réis à grande imprensa carioca. Durante o governo FHC a aliança do governo com a grande imprensa também foi denunciada por estudiosos (LESBAUPIN, 1999). Percebe-se que o caminho de poder e imprensa se entrecruzam. Para Francisco Falcon "História e poder são como irmãos siameses, separá-los é difícil; olhar para um sem perceber a presença do outro é quase impossível" (FALCON, 1997). O poder manifestado na imprensa é um poder persuasivo, onde o convencimento se mostra mais eficaz que a violência.
Durante as articulações para o golpe de 1964, o convencimento para tal ato estava presente em muitos periódicos, porém junto à persuasão veio a violência. Conforme Foucault, a dominação capitalista não conseguiria tanto êxito se fosse apenas baseada na repressão (FOUCAULT, 1979). Nelson Werneck Sodré, em análise semelhante, afirmava que um grande jornal, hoje, é uma empresa capitalista de grandes proporções. "A dominação se exerce dispensando o uso de força militar, e sim pelo uso da propaganda e do convencimento [...] Quem controla a imprensa e os meios de massa não precisa mais de golpes militares" (SODRÉ, 1999, p. 12-13). O filósofo francês, precursor nesta análise referente às relações de poder, transformou o assunto em regra estabelecida. Hoje, é praticamente inexistente a negação das relações de poder nas diversas esferas da sociedade.
A partir das influências foucaultianas, a história política deixa de se preocupar apenas com a organização e relações de poder no Estado, para analisar também as relações políticas entre grupos sociais diversos. São essas relações presentes na imprensa, cujos interesses se voltam para analisar uma classe dominante.
Para Foucault não existe uma teoria geral do poder, ou seja, o poder não é algo que tenha natureza ou essência com características universais. O poder não é global e unitário, e sim uma prática social em constante transformação. Esse poder é caracterizado como micro-poder, pois apesar de não ser o poder estatal, penetra na vida cotidiana do indivíduo, intervindo diretamente e materialmente. O autor não considera o poder uma mercadoria, rejeitando assim o modelo econômico, ou seja, para ele é uma relação de força, onde não há uma disputa que se ganha e se perde, mas uma relação de dominadores e dominados.
O pesquisador, ao investigar um jornal, procura saber quem são seus proprietários e editores, a quem se dirige e quem quer conquistar (CAPELATO, 1994). Mapeando esses dados, conseguirá um perfil provisório do periódico, pois atualmente os historiadores reconhecem que os fatos são fabricados e não dados. Não abandonaram a busca pela verdade, esta continua sendo o grande objetivo, porém reconhecem que possuem muitas verdades. Capelato indicou Foucault como um dos que revolucionou a análise do documento-jornal como fonte de pesquisa.
Em 1964 houve inúmeras manobras criadas pelos meios de comunicações para cooptarem todos aqueles que estavam contrários à ditadura. Os assassinatos nos porões dos quartéis eram noticiados como suicídios. Qualquer posicionamento contrário ao regime era rapidamente denegrido pela grande mídia. Já os jornais alternativos foram as grandes vozes que destoavam o discurso estabelecido, que balançavam os alicerces do governo. A sua existência era o que de mais democrático existia na imprensa brasileira.
Porém, nem só a imprensa nanica sofreu as restrições dos governos militares. Com a imposição do AI-5 muitas redações são invadidas e fechadas. O Última Hora, de Samuel Wainer, perdura até 1971 e A Tribuna da Imprensa sofreu repetidos atos de violência.
O casamento entre história e teoria é essencial a toda pesquisa historiográfica e sociológica, para que não ocorra uma simples narração. O motivo pelos quais os veículos de comunicações pouco publicaram sobre a morte de Vladimir Herzog, ou sobre a morte do estudante Edson Luís de Lima já demonstrava o posicionamento do jornal.
Perceba que os inimigos dos militares são sempre retratados como líderes subversivos e perigosos. O Jornal do Commercio estampava a manchete Marighela Teve o Fim Que Procurou (JORNAL DO COMMERCIO, 06/11/1969), ressaltando que sua morte representou uma derrota para o terrorismo. O poder que a imprensa exerce junto à sociedade e a parceria entre empresários jornalistas e governos estabelecidos foram visivelmente demonstrados na história da república do país.
No âmbito dos veículos de comunicações as organizações de esquerda eram mostradas para a sociedade em geral como grupos terroristas que visavam tomar o poder das forças democráticas. "Vitória não foi do exército, foi do povo", anunciava o general Olympio Mourão Filho ao Jornal do Commercio do dia 04 de abril de 1964, referindo-se ao golpe, demonstrando o quanto os periódicos amazonenses tendenciaram na divulgação das notícias no período.
Percebe-se que falar em democracia em um país onde grandes empresas jornalísticas possuem amplos tentáculos com o poder político é um tanto contraditório. Durante o período militar os valores democráticos foram postos à margem da sociedade, no qual não só as classes populares foram prejudicadas, como também uma parcela das classes conservadoras que não concordavam com o autoritarismo dos militares.
A agressão à democracia era constante no Estado Autoritário. Naquela época havia muitas vozes que eram caladas pelas torturas e pelo medo, hoje essas vozes foram silenciadas por um grupo político que transforma a mídia num aparelho unilateral, onde as discussões que põem em cheque este Brasil neoliberal são tiradas do ar em prol da imagem de um país que não existe.
De acordo com Gramsci é este, de fato, o papel do jornalista. Um executor do grupo dominante, mediando suas ações, divulgando-as e buscando, principalmente, o consenso e o apoio espontâneo da população.
Segundo Maria Helena Capelato "desde os seus primórdios, a imprensa se impôs como uma força política. Os governos e os poderosos sempre utilizam e temem; por isso adulam, vigiam, controlam e punem os jornais" (CAPELATO, 1994, p. 13). A Revolução faz ressurgir um Brasil mais autêntico e liberto (JORNAL DO COMMERCIO, 10/04/1964), enfatizava Plínio Coelho no Amazonas, ao se pronunciar sobre o golpe. Exército consolida a revolução democrática, exaltava o mesmo jornal (JORNAL DO COMMERCIO, 03/04/1964).
Nota-se que o jornal usa, insistentemente, o termo revolução, a fim de caracterizar o ato anticonstitucional como democrático, assim como demonstrar para o leitor que aquele episódio era inevitável para a construção de um país livre e democrático.
Para Flávio Aguiar a grande lição que os golpistas tiveram após o episódio de 1961, era que dessa vez tinham que neutralizar qualquer tipo de oposição na imprensa, para que se divulgasse o ideal de Brasil que lhes fosse interessante. Daí os inúmeros mecanismos criados pelos militares para controlarem os veículos de comunicações. Controlando a notícia, dominava também a memória da população civil, penetrando e impondo um ideal.
Tudo que foi exposto sobre a história da imprensa no Brasil, só nos mostra o quanto esta foi e é pragmática. Toda a grande imprensa, seja jornal, revista, televisão ou rádio, está compromissada com a classe dominante. A manutenção do poder estabelecido é o seu objetivo, sendo assim não se pode classificar este contexto como democrático. Durante a década de 1960 o eixo a ser combatido pelos militares, como enfatizava a grande imprensa, era o governo João Goulart, que se distanciava das estruturas político-econômicas vigentes no país, defendendo e propondo a reforma agrária e a nacionalização de empresas internacionais. Apenas com o endurecimento da repressão apareceram outras vozes discordantes desta conjuntura. Os jornalistas passaram a atuar clandestinamente para combater a ditadura. Setores da igreja aliavam-se aos revolucionários, onde, posteriormente, será uma das alas que formarão o PT. Atualmente, essa que era a grande voz da oposição, reforça o discurso das elites brasileiras, entoadas por toda a imprensa neoliberal.


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