III

 Aniversario de minha adorável cunhada. A semana começa com o vaso sanitário entupido desde ontem. gastei os últimos cinquenta centavos comprando o pão nosso de cada dia. Um caroço na palma do pé direito aporrinha um pouco. O  pastorzinho acolito do Pastor Cícero Jorge cumprimenta-me,fazia dias que não nos víamos. Toda vez que olho a figura do exterminador de insetos com a bomba nas costas,o seu passo capenga de uma perna maior ou menor que a outra fazendo-o subir e descer como a oscilação do dólar americano, as cãs debaixo do boné, o olhar arguto de quem não teme nada, faz-me lembrar do meu querido finado compadre Jacob, um dos seres humanos mais humano que conheci. Vitima de sua própria fé, recusando a fazer  a quimioterapia,quando o maldito câncer metástaseando-se em alguns de seus órgãos vitais. Acreditava piamente que sua fervorosa fé o curaria por completo sem a necessidade de submeter a dolorosa terapia. Morreu num quarto ou enfermaria de um Hospital em Goiânia,mas não abdicou e nem transigiu de sua fé. Para mim. depois de meu pai Bamba, ele foi uma pessoa fundamental na formação do meu caráter, ajudou-me muito com seus sábios conselhos, custeou os meus estudos de segundo grau - amigo nas horas que mais necessitei de um,para mostrar-me com u farol um porto seguro. Meu bom compadre.

 Mestre Clayton, o pedreiro estiloso madrugou e segue para o seu trabalho na casa de Alacir. Uma segunda-feira abençoada, lendo um ensaio literário escrito pelo nosso amado mestre o saudoso poeta Nauro Machado sobre ouros grandes como "O Gênio dos Apicuns" Erasmo Dias, autor do romance "Maria Arcangela" - 'uma obra-prima que se ombreia com o que melhor se escreveu -observa  o mestre. A melhor coisa que uma pessoa pode ter é uma boa memória. tendo-a tem o mundo aos seus pés. Eu tinha durante a minha adolescência inocente, mas depois veio o excesso de álcool, cafeína, THC destruíram o meu arquivo cerebral. É o preço que pago pela vida dissoluta que vivenciei sem pensar no prejuízo futuro. Me apego aos 10% que ainda me restam, mas aos poucos também esta diluindo, sou vitima frequente de lapso de memória e de esquecimento momentâneo. É o peso da idade. Por esta razão que devoro todos os livros que encontro pela frente e deles tiras as experiências que tento aplicar nos meus dia-a-dia literário. Ninguém acredita que escrevo, me veem com olhos incrédulos, assim como vi o mestre Roberto, azafamado no estacionamento da Faculdade, mas nas horas vagas escreve seu livro. Não sei porque no final do livro "A Cidade do Sol" emocionou-me a ponto de verter pequenas gotículas de lágrimas. Um bom romance que retrata a dura vida dos afegãos, principalmente das mulheres nas épocas das incertezas, começando com a invasão soviética, a chegada dos  Talibãs e depois o exercito americano com  o pretexto de capturar Osama Bin Laden, o homem que engenhou o mais espetacular atentado terrorista contar o estados Unidos, derrubando as Torres gêmeas do World Trade Center de Nova York, o símbolo máximo do imperialismo.O mundo jamais esquecerá aquelas imagens dos dois Boeing chocando-se explodindo em seguida. Até hoje quando revejo aquelas cenas, tiro o chapéu para esse árabe saudita pela sua audácia e inteligência de burlar um sistema de segurança até então o mais seguro do mundo.. Quanto nós ocidentais ficamos estarrecidos e chocados, muitos comemoram a queda simbólica do agressivo imperialismo americano que durante décadas nos colonizou de forma atroz,impondo a força a sua vontade.Pouquíssimos homens teriam a coragem e engenhosidade desse mestre eme arquitetar um atentado perfeito que abalou o mundo inteiro.É certo que muita vitimas inocentes morreram, mas o que falar dos inocentes japoneses de Hiroshima e Nagasaki, ou os pobres aldeãs vietnamitas queimados vivos pelas bombas de Napalm - também não forma crimes ou atentados consentidos? Uma BMW preta desliza suavemente sobre o asfalto da Vila como um felino na savana. Um chuvisco ameniza o calor.Imagino como minha cunhada deve estar uma arara  esbravejando contra tudo e contra todos.. Coloco as tralhas que estavam expostas na calçada para dentro, a grade de Gilberto, a churrasqueira de pernas tortas e dentro dela o ferro de ferrar o gado de Seu Wilson. A manhã de segunda-feira, se foi como veio sem nenhuma novidade. Os pingos estatelam-se e espocam no asfalto, nos cimentos das calçadas e escorrem pelos rêgos das sarjetas. Cada chuva é um pesadelo para mim, o medo constante da laje desabar. Das montanhas afegãs de Cabul de Laila Teriq e família para o inverno russo em Varikino na Sibéria com Dr. Jivago, a bela Lara e sua filha.

  Por volta das três e meia da tarde já estávamos conformados,quando a agua chegou.Que alegria encheu nossos corações. Coloquei a bomba para  funcionar,desenrolei a mangueira e começamos  a encher pelo balde de agua para beber, depois a caixa d'gua. Tudo cheio.Larissa e suas perguntas.Confesso que sento uma mistura de inveja e não sei mais o quê, quando Seu Pietro orgulhosamente disse para minha cunhada, que passara no SEST e que vai comprar uma moto. Pensei no infeliz e depressivo do meu triste filho lutando contra os seus moinhos de ventos, agoniado por ainda esta desempregado. Respirei fundo.Um dia chegará a vez dele, basta não desistir e nem desanimar.Mesmo com todas as adversidades e surtos depressivos preencho os meus dias restante em busca da escrita perfeita. E assim vai ser com meu amado filho,um dia as coisas acontecerão naturalmente. O barulho d'agua continua no cano da cisterna.. Ao som do swing de Thelonious Monk acabei a digitação de "Tuberculose", o meu quarto romance baseado nesses cadernos.

   Uma brilhante lua no meio do céu, ma brisa suave, ainda pouco Danielzinho e família vieram trazer um presente para minha cunhada. 67 anos. Começa dar os primeiros sinais de senilidade, mas continua ativa, uma guerreira. Gosto muito dela, digo sempre que é a minha segunda mãe, mas as vezes me emputeço, mas volto ao normal. cada um é cada um. A mãe de Clarinha domingo pretende fazer um almoço, convidou todos os seus conhecidos. Nada mais me prende,posso começar um novo projeto,mas qual? Me pergunto, não tem nenhum desde "Os Cadernos de Pai José" ( Le Cahier Rouge du Pére Joseph) que publiquei na França que não escrevo ficção ou algo similar - apenas reproduzindo as anotações desses cadernos que se amontoam desde 2012. O pretinho baixinho com uma barriguinha proeminente, vendedor de juçara passa meio-desconfiado olhando para os Jeovanianos aglomerados no meio da rua  em frente a sede de sua congregação. A Dona Antonia, moradora do bairro de São Benedito a mesma que combinara comigo no sábado de eu passar ontem na residência dela para medir um basculante, passou de manhã e disse-me em pé na porta:

 - O senhor não foi, gastei o dinheiro. Agora só quando eu tiver - completou sorrindo e saiu levando a filhinha pelo braço.Placidio ficou de levar amanhã as medidas de uma grade, vamos ver e esperar.