Resumo
A sociologia, no século XX, adquiriu um espaço institucionalizado e a investigação das relações entre sociedade e indivíduo tornou-se um objeto de estudo particular nesta disciplina. Trabalhar neste objeto de estudo significa oferecer construções discursivas sobre o ser humano e suas formas de sociabilidade. Sob esta perspectiva, as propostas para teoria social efetuadas por Talcott Parsons, Norbert Elias e Erving Goffman fornecem notadamente elementos para a compreensão de temas importantes, como o interacionismo e da interdependência entre os indivíduos e grupos sociais.

Palavras-chave: Talcott Parsons, Norbert Elias, Erving Goffman, teoria social.

Abstract
20th Century Sociology has become academic institutionalized, and the relation between society and individual became a particular research object for this academic subject. Working on this object means offering discursive constructions over the human being and their ways of sociability. Under this perspective, Talcott Parsons, Norbert Elias and Erving Goffman’s social theory thoughts give us elements for important subject comprehension, such as individuals and social groups interactions and interdependence.   
 
Keywords: Talcott Parsons, Norbert Elias, Erving Goffman, social theory.  




Apresentação
A sociologia, como campo do conhecimento, sofreu um importante processo de institucionalização acadêmica a partir do século XX. A compreensão da cultura, da estrutura social, da socialização, da ação, do conflito e da mudança passou por significativos debates e importantes elaborações teóricas neste período, e questões como gênero, raça, cultura e classe social passaram a ganhar muito espaço entre os pensadores contemporâneos.

Autores clássicos, como Comte, Marx, Weber e Durkheim, procuraram demonstrar a viabilidade das reflexões sociológicas, ou sobre a sociedade, como objeto de estudo. Já a sociologia do século XX apresentou uma diversidade de pontos de vista, uma pluralidade de discursos sociológicos procurando afirmação dentro de uma estrutura institucional como as universidades e institutos de pesquisa. Certamente, os autores deste período partiram de contribuições dos teóricos formativos para a ampliação de seus argumentos ou para o desenvolvimento de conceitos totalmente inéditos como base da própria obra intelectual.
A análise do pensamento sociológico oferece um amplo panorama das diversidades de opiniões sobre a sociedade em geral, e também sobre o ser humano em particular. Pode-se afirmar que velhas e novas questões se entrelaçam nesta construção teórica. Por um lado, a sociologia adquiriu um espaço institucional legítimo, e por outro, uma gama de questões específicas e das quais haveria de se incumbir.
Um dos pontos centrais da sociologia refere-se a uma problematização sobre a natureza do homem, mais especificamente sobre sua capacidade associativa, a qual representa uma característica fundamental na formação, perpetuação e transformação das sociedades em geral e do indivíduo em particular. Uma vez que os homens vivem em sociedades, o que os caracteriza para viverem desta forma assume uma considerável dimensão nas discussões da sociologia contemporânea.
Socialização é o processo através do qual os indivíduos são preparados para exercer sua participação nos sistemas sociais (JOHNSON, 1997). Incluído neste conceito está a compreensão de símbolos e sistemas de idéias, linguagem e demais relações as quais constituem os sistemas sociais. De modo geral, os indivíduos não são socializados para exercer a compreensão dos sistemas como sistemas, nem mesmo para analisarem como tais sistemas funcionam e quais suas conseqüências. Em vez disso, o indivíduo vem a compreendê-los como uma realidade a qual aceita como natural, que simplesmente é o que lhe parece ser. Em outras palavras, o que em geral não é incluído se trata de qualquer tipo de conscientização sociológica do que é aquilo do qual o indivíduo participa e como dele está participando.
Da perspectiva de indivíduos, a socialização é um processo mediante o qual é criado um self ¹ social e um senso de apego a sistemas sociais, através da participação dos indivíduos nos mesmos. Da perspectiva dos sistemas sociais, a socialização é necessária para que o sistema continue e funcione eficazmente, uma vez que todos eles dependem de indivíduos motivados e preparados para o desempenho de vários papéis os quais abrange.
Este trabalho tem por objetivo descrever e comparar os conceitos relativos ao indivíduo e sua inserção / atuação nos sistemas sociais, sob a perspectiva dos autores Talcott Parsons, Norbert Elias e Erving Goffman. Os três autores, de nacionalidades e backgrounds acadêmicos diferentes, são expoentes representantes do pensamento sociológico do século XX, e representam base para diversos autores e trabalhos acadêmicos contemporâneos.
Talcott Parsons e o funcionalismo estrutural
Em seu primeiro contato com os textos de Parsons, o leitor possivelmente terá a impressão de ser um autor cuja obra é de difícil compreensão, com a utilização de termos e jargões os quais podem até mesmo serem julgados desnecessários. Mesmo assim, tornou-se um dos autores mais influentes de sua geração, e suas idéias continuam a influenciar a obra de muitos outros teóricos (GEHARDT, 2002). O estilo de escrita de Parsons reflete o fato de ser um dos primeiros a tentar levar a teoria social a um nível analítico de teorização geral e altamente formal. Tal estratégia exigia uma utilização mais precisa de conceitos os quais, pelo seu grau de abstração, eram difíceis de ser expressos em linguagem simples e cotidiana. No entanto, nos dias atuais a teorização formal e abstrata se tornou mais comum, e assim a linguagem utilizada nos trabalhos de Parsons já não parece mais tão densa e extremamente erudita. Deste modo, os estudiosos que se voltam para este autor tendem a ficar surpresos com a relativa facilidade com que suas idéias podem ser compreendidas (SCOTT, 2009).
Ao longo de seus estudos acadêmicos, a teoria social européia tornou-se o principal assunto de interesse para Parsons de modo que, em sua tese de doutorado, buscou trabalhar sobre as implicações das idéias de Weber e Durkheim. Em seguida, começou a trabalhar em sua mais importante obra, A estrutura da ação social, publicada em 1937.
O argumento dessa obra se dá no fato de que o trabalho dos sociólogos clássicos (ou formativos) haviam lançado as bases de um novo começo e um novo processo na teoria social. Durkheim e Weber, juntamente com os economistas Pareto e Marshall, eram vistos como os principais representantes da tradição formativa na sociologia, e que convergiram de diferentes pontos de partida para demarcarem as linhas gerais de um novo e sofisticado enfoque da teoria social. Cada qual havia, à sua maneira, resolvido o “problema hobbesiano da ordem” (PARSONS, 2010), o qual era inerente às teorias individualistas de ação egoísta do tipo estudado na economia. O conflito e a desordem, argumentava Parsons, só podem ser evitados quando o exercício do auto-interesse individualista é limitado por uma moldura moral de valores culturais compartilhados. Durkheim e Weber mostraram que esses valores morais eram os elementos fundamentais da ordem social. Os indivíduos são socializados dentro de sistemas de valores culturais e criam expectativas normativas formadas no interior das instituições sociais nas quais a ação individual é regulada.
Parsons acreditava que era sua tarefa a elaboração dessa teoria emergente, aprofundando a síntese que ficara aparente nas obras sociológicas individuais dos autores clássicos. Ele descreveu a nova teoria social como “teoria de ação voluntarista”. Com isso desejava dizer que os atores individuais são determinados em suas ações pelas condições materiais de sua socialização: devem exercer a escolha entre as alternativas abertas e disponíveis ao seu alcance, e nesse sentido deve-se considerar que agem voluntariamente. As escolhas subjetivas feitas pelos atores são baseadas nos valores que adquiriram durante sua socialização, mas não determinadas por eles. A ação voluntarista envolve uma escolha entre fins ou objetivos alternativos e uso de meios para a realização dos objetivos apropriados em relação às condições em que se encontram os indivíduos e os valores morais com que estão comprometidos.
Essas idéias foram elaboradas numa perspectiva da teoria social que colocava no centro das atenções o conceito de “sistema social”. De acordo com esse enfoque, as ações de indivíduos e grupos estavam inter-relacionadas com as instituições e outras estruturas produzidas por meio de ações e poderiam, portanto, ser analisadas em termos de relações sistemáticas entre seus elementos. Depois da publicação de A estrutura da ação social, Parsons começou a desdobrar essa idéia numa série de ensaios nos quais formulou uma abordagem à qual chamou de “funcionalismo estrutural”. Para o autor, este conceito descrevia um estágio particular no desenvolvimento metodológico das ciências sociais, e não uma corrente específica de pensamento científico.
Parsons afirmava que o sistema social era fruto das ações individuais. Seu ponto de partida se dava na interação entre dois indivíduos, entre os quais havia uma variedade de oportunidades nas quais os mesmos poderiam interagir. Tais oportunidades, por sua vez, eram influenciadas por uma série de fatores físicos e sociais.
Assim, Parsons determinou que cada indivíduo possui expectativas nas ações de outros indivíduos, além das reações ao seu comportamento. Tais expectativas seriam derivadas das normas sociais e valores aceitos pela sociedade na qual habitam. Como o autor enfatizou, no entanto, em um contexto geral nunca haveria um perfeito “encaixe” entre os comportamentos e normas, assim como uma relação nunca seria completa ou “perfeita”.
As normas sociais, por sua vez, sempre foram consideradas um problema para Parsons, o qual nunca admitiu que as mesmas fossem inteiramente aceitas ou acordadas pelos indivíduos sujeitos às mesmas. Assim, as normas sociais deveriam seguir algum tipo de lei universal. Se as normas eram aceitas ou não, tratava-se simplesmente de uma questão histórica e cultural.
Uma vez que os comportamentos se repetem durante as várias interações, e as expectativas estão “institucionalizadas”, é criado ao indivíduo um papel. Parsons define um papel como uma participação, normatizada e regulada, “de uma pessoa em um processo concreto de interação social com outras pessoas as quais executam outros papéis específicos e concretos” (PARSONS, 1951). Uma vez que qualquer indivíduo, em teoria, pode executar qualquer papel, a esta pessoa é esperada sua conformação às normas que governam a natureza do papel o qual executa.
Ainda, uma pessoa consegue e efetivamente pode desempenhar vários papéis ao mesmo tempo. Deste modo, um indivíduo pode ser visto como uma “composição” dos papéis os quais atua. Este fato pode ser verificado, certamente, na sociedade contemporânea onde a maioria das pessoas se descreve com referência nos papéis sociais os quais executa.
Em seguida, Parsons desenvolveu a idéia de que diferentes papéis se complementam no cumprimento das regras e funções de uma sociedade. Alguns papéis são moldados em instituições e estruturas sociais (como, por exemplo, as instituições econômicas, educacionais, legais e de gênero).  Tais papéis são funcionais no sentido de prestar assistência à sociedade e garantir que a mesma execute suas funções de modo normal e sem adversidades.
Parson, no entanto, nunca afirmou que existisse uma sociedade a qual estaria isenta de conflitos ou que estivesse, de algum modo, em um “perfeito equilíbrio”. De acordo com o autor, uma sociedade baseada em valores culturais era o típico caso de nunca estar completamente integrada e não se comportar de forma estática na maior parte do tempo. Inclusive exemplificava que a sociedade Americana era o maior exemplo desta afirmação, uma vez que na mesma ocorria um complexo estado de transformação desde sua criação (PARSONS, 1970). Alcançar um perfeito equilíbrio não era uma questão teórica de grande importância para Parsons. No entanto, afirmava que o estudo da dinâmica destas sociedades (ou seja, a falta de equilíbrio pleno) mostrava que havia várias tensões internas de grande importância para análise.
A socialização e o controle social² são, para Parsons, os processos-chave para a reprodução de um sistema social. A socialização é importante por ser o mecanismo de aceitação das normas e valores da sociedade para os indivíduos dentro de um sistema. Parsons nunca citou uma “perfeita socialização”, ou melhor, afirmava que em cada sociedade, a socialização se dava apenas de forma parcial e incompleta, de qualquer ponto de vista.
A socialização é apoiada pelas sanções positivas e negativas dos comportamentos de cada papel, os quais se enquadram ou não nas expectativas. Podem existir punições informais, como as “fofocas” ou “rumores maldosos”, ou outras mais formalizadas como o encarceramento penal ou internação em um hospital psiquiátrico. Se os processos de socialização fossem perfeitos, a sociedade se tornaria estática e sem mudanças, não ocorrendo mais as punições a partir de algum tempo. Parsons reconhece este fato quando afirma que a estrutura do sistema é problemática e sujeita às mudanças e que este conceito gera uma tendência em relação ao equilíbrio que não implica a dominância empírica da estabilidade sobre as mudanças. O autor acredita, no entanto, que tais mudanças ocorrem de maneira suave e equilibrada.
Indivíduos em interação, nas situações em constante mudança, se adaptam através de um processo de “barganha de papéis”. Uma vez que os papéis são estabelecidos, são criadas normas as quais guiam as ações subseqüentes e são, por sua vez, institucionalizadas, e criam assim a estabilidade nas interações sociais. Onde o processo de adaptação não consegue se ajustar, ocorre uma dissolução estrutural e são formadas novas estruturas (e um novo sistema). Caso contrário, a sociedade se desfaz (ou “morre”). Este modelo de mudança social é descrito como um “equilíbrio em movimento”, e enfatiza um desejo pela ordem social.
Norbert Elias e os processos civilizadores: o intelectual à frente de seu tempo
O enfoque sociológico da obra de Norbert Elias foi caracterizado como sociologia “figuracional”, ou “configuracional”. O autor, no entanto, preferia a utilização do termo “sociologia processual”. Elias ganhou reconhecimento científico por conta de sua teoria de “processos civilizadores”. De acordo com esta visão figuracional, os seres humanos nascem em redes de relações de interdependência entre indivíduos, e as estruturas sociais que eles formam entre si possuem uma dinâmica emergente a qual não pode ser reduzida a ações ou motivações individuais. Tal dinâmica emergente molda o crescimento, o desenvolvimento e a trajetória da vida dos indivíduos. As figurações estão em constante estado de fluxo e transformação e, ainda, as transformações de longo prazo nas figurações sociais humanas não são passíveis de planejamento prévio e previsão. Assim, Elias entende que, no âmbito de tais figurações, ocorre o desenvolvimento do conhecimento.
A busca de explicações para as relações entre indivíduo e sociedade tornou-se uma das grandes preocupações intelectuais na obra de Norbert Elias. Para tanto, acabou por mobilizar três campos do conhecimento: sociologia, psicologia e história. Deste modo, advogava uma condição de interdisciplinaridade dentro das ciências humanas:
As estruturas da psique humana, as estruturas da sociedade humana e as estruturas da história humana são indissociavelmente complementares, só podendo ser estudadas em conjunto. Elas não existem e se movem na realidade com o grau de isolamento presumido pelas pesquisas atuais. Formam, ao lado de outras estruturas, o objeto de uma única ciência humana. (ELIAS, 1994, p.38)
Seu primeiro livro, concluído na década de 1930, foi A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte, na qual examinava as pressões sociais as quais “a nobreza da corte” sofria durante o reinado de Luis XIV. Para Elias, a racionalidade de corte da nobreza, na qual a distinção, a posição social e prestígio determinavam os gastos, contrastava com a racionalidade econômica da burguesia, na qual o consumo estava subordinado à renda.
Em A sociedade de corte Elias demonstrou como as relações de interdependência forjadas pelos círculos de corte implicavam a criação de novos modelos de comportamento baseados no domínio dos impulsos, na dissimulação, no cálculo estratégico, na vigilância mútua dos envolvidos, na incorporação de cerimoniais de etiqueta, na exploração dos antagonismos dentro do círculo da corte. Até mesmo Luis XIV, aquele que supostamente teria maior liberdade de ação, estava envolto na trama das relações dentro da corte. No texto, Elias percorreu com minúcia o processo das relações entre indivíduos, desde o espaço no qual se realizavam as ações até os significados possíveis de cada trama que conferia a existência social e a identidade individual.
Nem todas as formas e unidades de integração social são ao mesmo tempo unidades de habitat e residência. Mas todas se podem reconhecer por determinado tipos de organização no espaço. Todas são unidades de seres humanos que mantém relações entre si, ligados uns aos outros por uma rede de interdependências. (...) Por este motivo, o reflexo de uma sociedade no espaço, o tipo de organização espacial que adota, representa uma maneira concreta, no sentido mais rigoroso do termo, as suas características particulares. (ELIAS, 2001)
A análise da sociedade de corte representou uma correção crucial à discussão weberiana da racionalidade instrumental e de valor, bem como qualificou o simplista contraste formulado por Marx entre feudalismo e capitalismo (SCOTT, 2009). Tais teóricos são o foco da obra O processo civilizador, a qual oferece uma investigação das transformações psicológicas e comportamentais entre as classes altas seculares do ocidente. Essas transformações, conforme mostrou Elias, estavam integralmente vinculadas aos processos de pacificação interna e a formação dos estados (SCOTT, 2009).
O Processo Civilizador conceitua-se como uma tentativa de estabelecimento dos matizes psicológicos, como os valores e os costumes, e do processo de formação de um quadro de interdependência civilizatória entre os indivíduos. Ainda, associa a tentativa de se buscar a sociogênese deste mesmo processo, ressaltando as instituições.  
Norbert Elias colocou, no centro da evolução humana, a passagem de mecanismos de coação externa para mecanismos de autocontrole. Procurava, deste modo, identificar as raízes sociais do domínio crescente dos sentimentos e das emoções no processo de curialização dos guerreiros medievais, e a formação distinta dos modos de se encarar e interpretar o mundo, como nos casos da França e da Alemanha na entrada para a modernidade. Nestes termos, os conceitos de civilização e cultura são cunhados para que sejam ressaltadas as peculiaridades dos mecanismos de autocontrole nas sociedades francesa e alemã. Por outro lado, tais conceitos servem para a reflexão sobre os modos de como determinados agrupamentos sociais compreendiam e procuravam exercer a “racionalização” do mundo. Elias indagava de que maneira certas classes nos estados-nações incipientes começaram a pensar em si próprias como “civilizadas”, e como isso se generalizou como emblema distintivo da superioridade ocidental sobre as demais culturas.       
Um dos aspectos mais importantes de toda a obra de Elias está relacionado a problemas que sociólogos de mentalidade e preocupação filosóficas se referem como epistemologia, mas que Elias preferia conceitualizar como teoria sociológica do conhecimento (SCOTT, 2009). Uma análise histórica dos processos do conhecimento mostra que os primeiros estágios do desenvolvimento humano foram caracterizados por idéias animísticas e mágico-místicas, e sentimentos com alto grau de fantasia e envolvimento. Um estudo mais detalhado sobre este assunto pode ser visto nas obras Sobre o tempo e Teoria simbólica. O conhecimento dos processos sociais, no entanto, continuou a ser relativamente menos autônomo, e os indivíduos ainda estão à mercê de “forças sociais”. Deste modo, de acordo com o autor, os sociólogos precisam criar procedimentos e convenções profissionais, como as quais estão são inerentes às ciências naturais, pois estas irão isolar os processos de conhecimento, separando-os dos processos sociais mais amplos e permitindo aos pesquisadores o armazenamento de estoques de conhecimento com aplicação prática.
Norbert Elias conseguiu obter a habilidade na combinação de enfoques macro e micro dos processos sociais, de transcender a dicotomia entre indivíduo e sociedade, de conciliar discernimentos teóricos com uma surpreendente abrangência no trato de evidências empíricas e de produzir uma análise social e histórica consistente e rigorosa no corpo de seu trabalho intelectual. Mesmo assim, o reconhecimento internacional de sua obra intelectual se deu tardiamente, três décadas após a publicação de seus trabalhos. De todo modo, ficou assegurado a Elias um ligar no panteão dos grandes pensadores das ciências sociais.
A microssociologia de Erving Goffman
Goffman citava o termo microssociologia³ para descrever seu interesse na interação social e seus efeitos sobre a identidade individual, e é um dos mais conhecidos proponentes desta proposição. O autor é invariavelmente citado como figura à frente da tradição do interacionismo simbólico, embora ele mesmo preferisse definir-se como um mero observador da vida cotidiana (um “etnógrafo urbano” ou “etologista humano”, conforme o autor). A obra de Goffman possui um grande apelo popular, o qual transcende os limites da sociologia, explicado pelo estilo de sua prosa caracterizada por uma combinação de meticulosas e inspiradas reflexões teóricas e um senso de humor seco e espirituoso, o qual faz os leitores sentirem uma sensação incomum de choque de reconhecimento diante do retrato que Goffman faz das idiossincracias do comportamento humano, o qual ele identifica e aplica ao longo de seus livros e artigos (SCOTT, 2009).
Em sua obra, Goffman empregou a metáfora da vida social como um palco teatral e forjou, a partir deste ponto de vista, o que denominou como “perspectiva dramatúrgica”. Isso lhe permitiu analisar como os indivíduos assumem diferentes “personagens” e atuam em grupos de “atores” no cotidiano.
Publicada pela primeira vez em 1959, sua obra A representação do eu na vida cotidiana estabeleceu a reputação de Goffman como sociólogo dramaturgo. Seu argumento é que a vida social é realizada por meio de ações, rituais e cotidianos análogos ao desempenho teatral. Quando se encontram em situações sociais, as pessoas cooperam entre si como grupos de atores, de modo a garantir a “continuidade do espetáculo” e ainda manter certa definição da realidade. Enquanto isso, os indivíduos estão preocupados com a atuação de personagens particulares ou versões de si mesmos diante das platéias com as quais se deparam. Para isso, são utilizadas técnicas de “auto-representação” e de “gerenciamento de impressões” (SCOTT, 2009). Contudo, o sucesso de cada atuação depende também da percepção das platéias. Goffman considerava importante estudar não apenas as impressões que as pessoas passam a ter deliberadamente, mas também aquelas as quais são transmitidas involuntariamente. Assim um ator ou atriz, que não acredita de fato no papel o qual está representando, pode ser detectado. Deste modo, pode ser determinado se o desempenho de cada ator está sendo realizado de forma “cínica” ou “sincera” (BURNS, 1992).
seja o que for que crie o desejo humano de contato e companheirismo social, o efeito parece tomar duas formas: a necessidade de um público diante do qual pôr a prova a própria personalidade jactanciosa e a necessidade de companheiros de equipe, com os quais se possa entrar em intimidades coniventes e praticar o descontraimento dos bastidores. (GOFFMAN, 1995, p. 189)
Nestes termos, o diferencial de Goffman ancora-se na vida cotidiana das pessoas, para definir que a sua experiência social não deriva necessariamente de uma tipologia das identidades ou posições particulares. Interessam, na verdade, os repertórios de situações as quais possuem suas especificidades próprias, seu espaço cognitivo de restrições e negociações (JOSEPH, 2000). “Pois se a atividade do indivíduo tem de tornar-se significativa para os outros, ele precisa mobilizá-la de modo tal que expresse, durante a interação, o que ele precisa transmitir.” (GOFFMAN, 1995, p.36)
O contexto físico no qual se dão os desempenhos individuais e coletivos é também muito importante, e Goffman sugeriu que este contexto é dividido em duas partes principais, as quais correspondem às áreas de um teatro. A região “à frente do palco” é aquela onde são apresentadas as identidades públicas para uma platéia. A parte “frontal” consiste de seu cenário (a localização, arredores e decoração) tipicamente fixado em um determinado lugar. Já a região dos “bastidores”, por outro lado, é onde os atores relaxam do papel que representam e podem, intencionalmente, contradizer suas identidades públicas. A utilização desse contexto também pode ser vista na obra Comportamento em lugares públicos.

Sua obra seguinte, Manicômios, prisões e conventos, deriva de uma pesquisa realizada na década de 1950 em um hospital psiquiátrico nos Estados Unidos. Goffman identificou o hospital psiquiátrico como uma “instituição total”, termo utilizado para a descrição de lugares nos quais um grande número de indivíduos são confinados durante todo o dia, e controlados por atividades reguladas. Para o autor, aparentemente a estrutura do hospital, expressa por meio de regras, procedimentos e rotinas, alterava profundamente as identidades individuais dos internos. Com o tempo, os indivíduos confinados na instituição são gradualmente privados de todas as suas posses, relacionamentos e direitos os quais possuíam anteriormente, em um processo o qual denominou “mortificação da identidade individual”. Depois da perda de suas identidades que possuíam no mundo exterior, são forçados a sujeitar-se às exigências do regime da instituição.

A obra subseqüente, Comportamento em lugares públicos, catalogou as estratégias mais gerais de auto-representação utilizadas nas interações sociais da vida cotidiana. Existem, para o autor, dois tipos de interação social: um encontro social é um exemplo de interação focada, e ocorre entre as pessoas que se reúnem com um propósito comum. A interação não-focada ocorre quando as pessoas simplesmente se vêem, por acaso, na presença de outras pessoas. No livro, Goffman examina os dois tipos de interação, e enfatiza em particular o papel do corpo no que tange à transmissão deliberada ou involuntária de um gesto de comunicação. Um indivíduo caminhando na rua, por exemplo, se emprenha em demonstrar “distração civil”, a qual envolve olhar de relance outros indivíduos para o reconhecimento de sua presença e em seguida desviar o olhar, para não ser considerado rude. Em contraste, a maneira adequada de tomar parte de um encontro focado envolve uma demonstração da acessibilidade do indivíduo aos demais: em uma festa, por exemplo, os convidados usam o contato visual e se posicionam próximos daqueles com quem desejam interagir (GOFFMAN, 2010).

Ao examinar os processos ritualizados pelos quais as pessoas representam diferentes identidades e lidam com os encontros sociais, Goffman revelou como todos os aspectos de nossa vida, até mesmo os mais privados, são socialmente organizados. A esse respeito, seu enfoque dramatúrgico constrói uma ponte sobre o abismo entre as análises macro e micro, sugerindo possíveis elos de ligação entre o interacionismo e teorias estruturais como o funcionalismo. As idéias de Goffman tiveram enorme influência na modelagem da obra de sociólogos do mundo todo, e se destaca como uma das figuras mais criativas, interessantes e perspicazes da sociologia moderna (BURNS, 1992).
Considerações finais
O funcionalismo estrutural de Talcott Parsons, na interpretação dada pelos demais autores analisados neste trabalho, estaria na contramão explicativa dos processos de relação face a face dos indivíduos. O indivíduo parsoniano tornara-se impotente contra a estrutura que supostamente regia, comandava e restringia seu comportamento e suas relações sociais (MALERBA, 1996).
O discurso ficcional parsoniano admitia três estruturas as quais definiriam e restringiriam o indivíduo num processo coercitivo: a estrutura econômica, a biológica e a cibernética (esta relacionada à riqueza de informações de cada sistema social). O aspecto estrutural refere-se aos aspectos consolidados do sistema social, as invariáveis, enquanto o aspecto funcional diz respeito às variáveis, a efervescência e dinâmica do sistema social. O padrão de mudança associa-se à perspectiva evolucionista de complexificação social tendo como preocupação central a ordem social. O sistema social idealizado por Parsons tende ao equilíbrio, as tensões dentro do sistema são caracterizadas como anomalias.
Para Parsons, os componentes estruturais fornecem à análise do sistema social um alicerce de elementos constantes, mas o conceito de ação social encerra uma perspectiva dinâmica. Assim, o sistema social é aberto, estando em constante relação com o meio ambiente, quer físico, quer relativo ao organismo biológico, à personalidade e / ou cultura de seus componentes. No caso de ocorrerem mudanças, há necessidade de modos funcionais de ajustamento.
Erving Goffman, herdeiro da tradição sociológica americana do interacionismo e da microssociologia, procurou estabelecer as bases para uma interpretação sociológica ancorado na idéia de uma “dramaturgia social”. Tornou-se conhecido, principalmente, por sua “perspectiva teatral” da sociedade e do indivíduo. Suas cuidadosas e detalhadas observações das interações entre os indivíduos formam um conteúdo de trabalho fascinante e esclarecedor.
 O eixo central da obra de Goffman está na abordagem do processo de interação entre os indivíduos em sua vida cotidiana, na representação de papéis e personagens em determinadas circunstâncias de tempo e espaço. Assim sendo, a natureza humana caracteriza-se pela possibilidade (necessidade) da interação dramatúrgica em tempo e espaço distintos. Os atores criam impressões de si mesmos e representam para platéias enquanto, simultaneamente, servem de audiência para outros atores.
Finalmente, Norbert Elias ganhou reconhecimento como sociólogo por conta de seu trabalho sobre a natureza da vida social. No que denominou de análise figuracional, desenvolveu a idéia de que a vida social não se baseia nem no ator individual isolado, nem em sistemas sociais, os quais existem como externos ao indivíduo. Em vez disso, argumentava que o então identificado como “vida social” consiste de padrões (figuras) as quais surgem de interações entre indivíduos interdependentes. Esta centralização nas relações entre indivíduo e sociedade serviu ao autor para construir o que denominou sociologia da interdependência.
Muitos comentadores da obra de Elias apontam para o fato do adormecimento de sua obra, ou para a relativa publicação e difusão tardia de suas obras capitais, lançadas ao público quase trinta anos após o término de suas investigações. De fato, “quase ignorado quando inicialmente publicado, seu trabalho atraiu atenção crescente na Alemanha, Holanda e Grã-Bretanha desde fins da década de 1970, quando seus textos foram traduzidos para a língua inglesa” (JOHNSON, 1997, p. 265).
Por mais diferenças que saltem aos olhos na comparação entre estes três autores tão distintos, um ponto capital os aproxima: seus objetos de estudo nascem da preocupação em se refletir sobre os seres humanos em relação com outros seres humanos, e por fornecerem ficções discursivas sobre as formas desta sociabilidade, as quais procuram balizar o indivíduo nos entremeios de uma situação em que ele não é nem um “protagonista-herói”, e nem é esmagado pelo peso das estruturas sociais. Este trabalho tem por objetivo estabelecer uma análise mais geral sobre as teorias propostas pelos três autores do que examinar com acuidade detalhista os conceitos elaborados. Desta forma, pode-se entender em conjunto as construções propostas, em vez de se de estabelecer uma discussão centralizada nas minúcias.
Cabe, deste modo, uma reflexão geral sobre a armação teórica implementada por Parsons, Goffman e Elias em suas análises sobre o indivíduo e a sociedade. Talvez o ponto mais evidente de convergência seja a concepção de um indivíduo que ao mesmo tempo não é nem prometéico nem esmagado pelo peso das estruturas. O que diverge em suas teorias, por sua vez, é a idéia de tempo para cada autor. Para Goffman a idéia de tempo refere-se ao tempo das interações, uma vez que não se preocupava com a constituição de um devir humano baseado nas interações. Elias advogava a idéia de um continuum do tempo histórico, de um devir dos homens no tempo que não podia ser negligenciado. Para Talcott Parsons os sistemas sociais, existindo independentemente (e como Durkheim argumentara antes dele), possuíam necessidades próprias as quais deveriam ser atendidas para que tais sistemas funcionassem. A natureza dos sistemas sociais e seus padrões de interação eram independentes do tempo histórico, porém a perpetuação de sua existência dependia da internalização de seus valores e normas, fato que demanda uma fração do tempo cronológico.
Nestes termos, os personagens em cada concepção intelectual estão em uma intersecção entre o plano das ações individuais e as ações completamente ditadas por estruturas extra-individuais. Por um lado, os indivíduos não estão isentos de um código de regras ou conjuntos morais, constituídos sócio-historicamente, e assim não procedem com suas ações deliberadamente nos rumos de seu destino e da sociedade em que vivem. Na verdade, o sistema social faz parte do indivíduo, não lhe é exterior. Por outro aspecto, os indivíduos não são compelidos a agir sempre de uma mesma forma, ou de uma forma unívoca. Existe a possibilidade de rupturas e de mobilidade dentro da sociedade da qual fazem parte. Ocorre, portanto, certo grau de imprevisibilidade das ações humanas, mesmo que estas possam ser indesejáveis para o processo de sócio-interação, para Goffman, para o funcionalismo estrutural de Parsons, ou para a rede de interdependência de Norbert Elias.
Notas

¹ De uma perspectiva sociológica, o self é um conjunto relativamente estável de percepções sobre quem somos em relação a nós mesmos, aos outros e aos sistemas sociais (ROSENBERG, 1979).

² Controle social é um conceito o qual se refere às maneiras como os pensamentos, sentimentos, aparência e comportamento das pessoas são regulados nos sistemas sociais.

³ Sociólogos frequentemente estabelecem uma distinção entre a macrossociologia, que trata da vida social na escala mais ampla de organizações, comunidades e sociedades inteiras; e a microssociologia, que focaliza o mundo face a face da interação social. Há, contudo, aqueles que argumentam que essa distinção é obscura, se não falsa, porque aquilo que se identifica como macroelementos da vida social é construído através do que ocorreu no micronível. A entidade conhecida como Estado, por exemplo, resulta em última análise de padrões de interações entre indivíduos (HILBERT, 1990).

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