O PENSAMENTO JURÍDICO DE GRÓCIO E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Ana Paula Magalhães Alves1

Marcela Bandeira Araújo Rodrigues2

Shakespeare Teixeira Andrade4

Tiago César da Silva Viana3

 

RESUMO

O Direito Natural sempre foi um tema intensamente discutido. Muito se tem como a base de todo o Direito, notadamente, o positivo. Segundo Grotius, o direito natural constitui princípio basilar, definidor da justiça e da ordem social. O homem, por ser dotado de razão, encontre-se numa posição privilegiada, uma vez que lhe é possível ascender até a compreensão de tais direitos. Diante disto, Grotius sintetiza a teoria da universalidade do direto natural e da igualdade entre os homens, abrindo um precedente no que viria a constituir os hodiernos Direitos Humanos. Através dos elementos conceituados por Grotius podemos fundamentar a própria existência dos direitos humanos, propor uma solução para o dilema entre o culturalismo e a universalidade de tal direito e justificar a prerrogativa da posição humana frente ao próprio estado.

Buscou-se analisar as filosofias de Hugo Grotius acerca dos Direitos Naturais e das Sociedades Internacionais, averiguando e vinculando a estes os Modernos Direitos Humanos, com o intuito de identificar as semelhanças que confirmam as contribuições de Grotius na constituição dos mesmos. Esperamos compreender como os direitos naturais afetam e fundamentam os direitos humanos; como foi possível sua conciliação com o culturalismo; e se os diretos naturais e inatos a humanidade, tal qual estabelece a Declaração Universal dos Direitos Humanos, são tão somente sucessores do Direito Natural ou se constituem conquistas históricas como vemos nas suas Gerações.

Trata-se de uma pesquisa de cunho bibliográfica, pois utilizou-se uma seleção de livros, artigos e Declarações Internacionais de direito, com o propósito de acessar, de modo mais amplo, a ideologia do jurista Grotius e os elementos de sua teoria. Quanto ao método de abordagem utilizou-se o dialético, buscando argumentos no pensamento do autor, que pudessem ser empregados para definir especificamente os conceitos mais fundamentais do tema e refutar a sua validade sócio-filosófica. O método de procedimento foi exploratório, pois buscamos construir hipóteses quanto a visão de Grotius para os direitos humanos; descritivo, pois é utilizado uma majoritária quantidade de citações e ideias definidas pelo jurista, assim como a descrição das características do seu pensamento, feito por filósofos; procedemos também com uma análise histórica, dado o lapso temporal desde as principais obras do filosofo até as primeiras declarações de direitos humanos modernas.

Constatamos que o direito das gentes, elemento da teoria grotiana, pode ser empregado para legitimar os estados na definição dos direitos humanos, sendo que as nações pactuam com intuito de proteger os direitos imprescindíveis a uma vida digna. Podemos inclusive conciliar estes com o culturalismo jurídico, visto que irrompem da amplitude continente nestes direitos e não em virtude da origem estritamente histórica ou cultural dos mesmos, sendo condicionados pela experiência humana, no emprego da razão.

Percebemos que, partir de Grotius, é assegurada ao homem a possibilidade de galgar à compreensão da realidade, e no exercício de sua racionalidade definir os parâmetros de sua própria existência, isto garantiu a segurança de tratar todos os homens igualmente, sem distinções superficiais e arbitrarias, baseadas no sexo, raça ou origem e a necessidade de estabelecimento destes princípios de modo vinculante e universal.

Verificou-se que os direitos naturais persistem e se reestruturão mesmo diante do positivismo e da diversidade de culturas; que a filosofia de Grotius reflete a essência de uma comunidade internacional que zela e prioriza o ser humano; que o princípio do solidarismo grotiano é cabível de empreendimento na sociedade internacional e concluímos finalmente que os direitos à vida, à liberdade e à segurança pessoal são conceitos remotos e que não devem ser ofuscados diante das conveniências ou oportunidades dos soberanos, pois renegá-los seria repudiar a própria índole humana.

Palavras-chave: Hugo Grotius. Direito Natural. Direitos Humanos.

 

 

A VIDA: DO PRINCÍPIO À GUERRA:

Hugo Grócio (Hugo Van Groot), nasceu em Delf, cidade Holandesa no dia 10 de abril de 1583 e morreu em 28 de agosto de 1645, foi educado em um ambiente religioso e eclético, visto que seu pai era protestante enquanto que a mãe era católica. Viveu em um meio urbano, no qual predominava uma intensa atividade comercial, caracterizado pela existência de um sistema judiciário-administrativo, apoiado por uma base coorporativo-comunitária, o qual permitia maior maleabilidade nas relações com outros órgãos de outras regiões da Europa.

Foi jurista, exercendo a profissão na República dos Países Baixos, além disso, ainda atuou como dramaturgo e poeta. Considerado um garoto prodígio, entrou na Universidade de Leida aos 11 anos, onde cursou Direito. Doutorou-se em 1598 na Universidade de Orleans.

Iniciou a vida profissional como jurista na cidade de Haia, praticou direito com comerciantes durante as viagens da Companhia das Índias Ocidentais e em 1604 passa a acompanhar o próprio príncipe de Maurício de Nassau como seu conselheiro. Foi promovido a governador da cidade de Rotterdam em 1613; Integrou o Comitê de Conselheiros do Partido Arminiano; foi preso em 1618, após um golpe de estado contra Nassau, foi julgado e sentenciado a prisão perpétua, mas com o auxílio de sua esposa foge para Amsterdam e de lá para Paris.

Nomeado embaixador da Suécia em Paris, ai exerce esta profissão até ter que retornar a pedido da Rainha Cristina, Durante seu retorno acaba por morrer na Alemanha, após passar por intensas tempestades, vindo a falecer devido a exaustão.

Publicou Mare Liberum, o qual trata da internacionalidade das águas oceânicas e De Jure Praedae, tratando da lei do apresamento, mas sua mais afamada obra concerteza foi De Jure Belli Ac Pacis, na qual discorria sobre as modalidades de guerra e a sua possibilidade como  mecanismo de justiça.

DIREITO NATURAL EM GRÓCIO E DIREITOS HUMANOS

Os direitos naturais e humanos partilham entre si uma imensa semelhança, ambos cortejam a universalidade e a posição hierárquica como princípios gerais. Seriam na teoria hierarquicamente superiores ao direito civil, dada a sua existência anterior ao direito positivo e ao fato de constituírem condicionantes dos direitos mais fundamentais.

Ambos constituem o esboço ético inalterável, imposto e acessível a todas as culturas como forma eterna e sublime de fonte de direito, justiça e ordenamento social. Podemos até afirmar que o direito natural são os novos direitos humanos.

Em Grotio o direito natural é empregado na fundamentação de suas filosofias de modo central, o direito natural possui a característica de obrigar os homens, mesmo diante da multiplicidade de países e crenças, este direito encontra-se presente nas pessoas desde o momento do seu nascimento, permanecendo nele mesmo após as suas experiências com a realidade.

Grotius, de acordo com Gabriel Ribeiro Barnabé (2009, p. 30) dirá que o direito natural pode ser compreendido como um conjunto de regras morais que todos os seres racionais deveriam assimilar e por em prática, sendo que através dela os atos do estados poderiam ser refutados. Adverte ainda Luiz Felipe Neto (2009, p. 30), que o direito civil ou humano poderia regular a sociedade em observância com os direitos naturais mas jamais contrariá-los.

O justo foi concebido de um modo mais subjetivo e universal, para ele o direto natural e divino se sobrepõe ao terreno em uma ordem. Tal ordem, ou paradigma para o estabelecimento desta ordem, seria a própria consciência humana, sendo que a observância da mesma nos traria a felicidade (GRÓCIO, 1625).

Neste momento Grotio declara que o homem na utilização de sua razão poderia até derrubar a lei humana ou divina (empregada aqui como lei religiosa ou dogma) em função de sua consciência, uma vez que não ferisse o outro, pois a razão é o que garante a liberdade e a dignidade humana. Salienta ainda que o direito natural é universal e acessível a todos os homens das mais diversas populações, uma vez que o requisito para a sua análise é tão somente a capacidade de deter e usar a razão, abrindo assim um precedente quanto à isonomia e indistinção do acesso aos direitos, estes marcadamente presentes nos direitos humanos como vemos no artigo 2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,  religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Grotio afirma também, que a essência desses direitos reside nas normas e preceitos que podemos deduzir, através da utilização da razão, da natureza sociável e racional do homem.

Para tanto precisamos examinar a realidade humana, para somente depois criar o direito, evidenciando a imprescindibilidade da razão como forma de atingir o direito natural, neste momento o homem ganha uma visão mais central dentro da sociedade. O próprio direito é criado para o homem devido à inerente qualidade humana. O direito passa atuar em virtude do foro íntimo de modo subjetivo, deixando de lado a transcendentalidade marcante da época. O direito perde sua característica arbitrária quando fundado nas leis naturais, pois sua garantia é a própria autoridade da razão.

O gênero humano passa a ser considerado uma pura medida, o parâmetro mestre para a criação do direito. O indivíduo e aceito com primazia frente à sociedade. A própria declaração faz referência obvia a este pensamento quando no seu preâmbulo proclama: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.”

Tal doutrina, arguida em meio ao século XVII, constituiu uma vanguarda que contribuiu para a aceitação das minorias como seres humanos totalmente livres de razão e aptos a serem sujeitos de direito.

No pensamento grotiano o direito das gentes é considerado como todos os direitos imprescindíveis e necessários à vida humana digna. Vindo a ser um mecanismo para se determinar o exercício e o modo mais conveniente para a efetivação desses direitos. Posteriormente seria reconhecido como o nosso atual pensamento sobre soberania e autonomia jurídica, apartir daí o estado teria a vantagem de combinar os princípios do direito natural com a sua condição histórico-cultural, afirmando e ressaltando primordialmente os direitos mais necessários.

Seria uma aceitação de um culturalismo jurídico, mesmo diante do imutável e universal código natural, pois os princípios seriam os mesmos, mas devido a sua amplitude de temas, somente os mais básicos e fundamentais teriam uma maior prioridade, seria então uma seleção dos direitos evidentemente mais densos.

Esta característica evidencia-se no fato de a Declaração possuir somente 30 artigos, sendo que várias outras declarações emitidas por organizações governamentais mais regionais salientam mais o aspecto cultural de tais direitos, visando primordialmente aspirações locais e temporais, através de um panorama histórico. O cúmulo desta possibilidade viria a ser a Carta Africana de Direitos Humanos e de Povos, proclamada em 1981, que recepciona os direitos humanos da  Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, mas adiciona outros que não teriam sido concedidos ao continente africano, como o direito de livre determinação a necessidade de programas estatais visando a quebra das dependências econômicas com os países capitalistas ocidentais.

RELAÇÕES INTERNACIONAIS DE GROTIUS E OS DIREITOS HUMANOS

Hugo Grócio prestigiou-nos com estudos amplos, estes variam desde a compreensão da guerra e da paz, até questões relativas aos direitos naturais e ponderações sobre a sociedade internacional. Assim sendo, muitos dos pensamentos e definições das obras de Grotios são atualmente empregados na discussão de dilemas internacionais, principalmente no que tange os direitos humanos, para tanto precisamos lembrar que a sociedade internacional que Grotius propunha era solidarista.

Diz-se de uma sociedade em que os estados membros compartilham entre si a responsabilidade de combater os desafios que venham a ferir os interesses comuns celebrados entre eles. Não encontramos este termo literalmente inscrito na obra de Grotius, mas podemos discerní-lo em função da sua teoria da sociabilidade, na qual os homens criam e mantém a justiça em função da sua condição interpessoal e social, e não simplesmente em razão da utilidade ou auto-interesse.

Tal sociedade não surge da arbitrariedade e conveniência dos soberanos, mas antes graças a princípios e critérios estabelecidos pelo direito natural, estes se encontrando no âmago de todos os integrantes do gênero humano, gozavam da qualidade de compreensão, ou seja, eram cabíveis de depreendimento (GRÓCIO, 1625).

Exemplo contemporâneo de tal compreensão ocorreu após a primeira e segunda guerras mundiais, quando o homem inferiu que as atrocidades cometidas neste lapso rebaixavam a condição humana, iam contra a própria natureza da razão, ferindo assim a dignidade inerente ao ser humano. Não feria somente a integridade de judeus, Ciganos, Negros e Homossexuais, não desdenhava somente o decoro de deficientes ou meliantes. Atingia antes de tudo a própria humanidade. As bombas, testes eugênicos, torturas e tantas outras práticas bárbaras maculavam o espírito dos direitos naturais do homem.

Este foi o estopim, apartir desta data houve uma reunião de várias nações para a Declaração Universal dos Direitos Humanos  após a constituição da Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Nela países como Estados Unidos, França, China, Líbano entre outros, definem os direitos humanos básicos para uma vivência digna.

Ainda com relação às características de uma sociedade internacional na visão de Grotius, faz-se imprescindível a menção ao fato de que o homem é um dos pilares das relações internacionais, não são somente os estados que devem ser resguardados e afirmados na órbita exterior, o homem possui a preferência nestas situações. Essa primazia é fruto da deliberação dos estados que celebram pactos, centrados na intenção de que seus valores mais caros sejam protegidos, visto que são compartilhados por todos os integrantes, somente é necessário, então, reafirmá-los.

Para Dagios (2011, p. 75), assevera que,

A concepção de Grotius sobre a sociedade internacional é vista como tendo por base a concepção de indivíduos em sua natureza pré-social e pré-racional, e a formação das sociedades como fruto da deliberação daqueles que são seus membros. Com isso, a ideia de Grotius era de que a sociedade governada pelo direito era para prevenir as interferências lesivas para com os direitos naturais dos indivíduos. [...].

No artigo II da Declaração Universal dos Direitos Humanos, temos a liberdade de religião como garantia básica a boa convivência e manutenção da dignidade, contudo tal princípio nem sempre foi celebrado entre os povos, muito menos na Europa antes e durante a reforma protestante.

O pensamento grotiano vislumbra em seus escritos a aceitação das liberdades religiosas, pois segundo sua doutrina era permitida, na sociedade internacional, uma ampla diversidade de comunidades domésticas e culturas, consequentemente essa liberdade se estendia até a tolerância religiosa. Apesar de ser bastante religioso, Grotius não confundia sua crença com a certeza que guerras religiosas eram travadas em virtude de interesses particulares e como tal, todo tipo de preconceito ou atentado contra outros sistemas religiosos eram fruto de afeições e não da razão.

Após o constitucionalismo e devido à fase de valoração dos direitos humanos, nos encontramos em um período da história jurídica em que reaparece o direito natural, principalmente diante da imprevisibilidade e não adequação das leis em certos casos, onde refugia-se na universalidade dos princípios naturais como forma cabível de solução para caos concretos.

Ainda sobre a universalidade dos direitos, Grócio já fazia uma previsão de sua necessidade e legitimidade, quando ao tratar das relações de exploração econômica dos mercados europeus sobre outros continentes, disse que eles não poderiam ser privados desses direitos fundamentais, devido ao fato de não serem cristãos e não estarem sob a tutela da igreja.

Na visão de Grotio, a sociedade internacional de direito fundava sua legitimidade no princípio do solidarismo, anteriormente explanado neste artigo, tal solidarismo não atua no âmbito restrito dos estados, mas permite e interferência de indivíduos coletivamente associados que intentem uma manifestação positiva na consecução de direitos, como ocorreu no século XX, após a DUDH em 1948 e a Convenção, de 1966, quando indivíduos e ONGs iniciam movimentos de dignidade e liberdade religiosa e política.

 

CONCLUSÃO

Constatamos que o direito natural é concebido como um fundamento de validade das leis humanas e que deve ser observado devido a sua natureza imutável e universal, vinculando todos os homens e nações segundo os seus preceitos.

O fato dos direitos naturais possuírem tais qualidades permite a criação de organismos internacionais que empreendem legitimamente na construção e definição dos direitos humanos, com expectativa de garantir dignidade e liberdade entre os homens, fundando esta atividade numa ação cosmopolita e solidária entre nações.

Concluímos que é possível conciliar a teoria do direito natural com a tendência culturalista do direito, uma vez que a amplitude daquele sistema permite uma mobilidade na eleição dos princípios que regem cada estado, justificando, assim, a existência das Gerações de Direitos Humanos, que antes possuem caráter acumulativo que comutativo.

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NOTAS

1 Aluna de 2º semestre do Curso de Direito da Faculdade Paraíso do Ceará  -  FAP. E-mail: [email protected]

2 Aluna de 2º semestre do Curso de Direito da Faculdade Paraíso do Ceará  -  FAP. E-mail: [email protected]

3 Aluno de 2º semestre do Curso de Direito da Faculdade Paraíso do Ceará  -  FAP. E-mail: [email protected]

4 Prof. Espc. Orientador do Curso de Direito da Faculdade Paraíso do Ceará  -  FAP. E-mail: [email protected]

REFERÊNCIAS

ANDRADE E SILVA SAHD, Luiz Felipe Netto de. Hugo Grotius: direito natural e dignidade. Universidade Federal de Uberlândia, 2009.

Dagios, Magnus. Grotius e as relações internacionais. PUCRS – Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul, 2011.

RIBEIRO BARNABÉ, Gabriel. Hugo Grotius e as relações internacionais: entre o direito e a guerra. Unicamp - Universidade Estadual de Campinas, 2009.