A Gnosiologia Kantiana

 

 

        Kant foi um dos primeiros a reagir aos problemas proposto pela filosofia cética de Hume, declarando que por causa do escocês pôde despertar do "sono dogmático". Mas o que é esse despertar? Em que se constitui esse "sono dogmático" da metafísica? Para Kant, é precisamente quando a metafísica toma como ponto de partida a idéia de que existe uma realidade em si (alma, substância, Deus, forma, etc.), que pode ser conhecida por nossa razão, ou seja, aquele que aceita sem um exame, sem uma crítica as afirmações sobre as coisas e idéias é um autêntico dogmático. Hume destrona a metafísica forçando-a a indagar sobre sua própria validade e sua pretensão ao conhecimento verdadeiro. Kant viu a necessidade de elaborar uma Crítica da Razão Pura, uma análise sobre a estrutura e o poder da razão para determinar o que ela pode ou não pode conhecer de modo inquestionável.

        Para tanto, Kant propõe uma revolução na metafísica - seguindo o paradigma de Copérnico - exigindo que, antecedendo a qualquer ratificação de idéias, fosse efetivamente estudado a capacidade cognocente do sujeito, ou seja, da razão, pois é preciso demonstrar que a razão não depende das coisas e nem é regulada por elas e sim, contrariamente, as coisas que são dependentes da razão e são reguladas por ela. Inatistas e empiristas, diz Kant, assemelham aos astrônomos geocêntricos, criticados por Copérnico, que buscam um centro que não é verdadeiro, ou seja, acreditavam que o conhecimento se inicia com a realidade. Ora, diz Kant, "o ponto de partida da filosofia não pode ser a realidade, e sim o estudo da própria faculdade de conhecer ou o estudo da razão". De fato, a filosofia anterior, em lugar de procurar saber o que é conhecer, o que é pensar e o que é a verdade, preferia começar conceituando a realidade, ponderando sua racionalidade e como tal pode ser inteiramente conhecida pelas idéias da razão. Fizeram com que a realidade, ou os objetos do conhecimento, ficassem no centro e a razão - sujeito cognocente – girasse em torno dela.

        Kant propõe uma revolução copernicana em filosofia, pois até agora, julgava-se "que nosso conhecimento devia ser regulado pelos objetos, no entanto devemos admitir que são os objetos que devem regular-se por nosso conhecimento". Copérnico, dirá Kant, "não completou sua explicação, ela foi completada e corrigida por Kepler e Newton, que mostraram que o que ele julgava ser uma boa hipótese era, realmente, a verdadeira e necessária explicação astronômica". Similarmente a Copérnico, continua Kant, "demonstremos, também de maneira universal e necessária, que os objetos se adaptam ao conhecimento e não o conhecimento aos objetos". Nesse sentido, segundo Kant, devemos colocar no centro a própria razão. Devemos indagar: "O que é ela?", "O que ela pode conhecer?", "Quais são as condições para que haja conhecimento?", "Quais os limites que o ser humano não pode transpor?", "Como a razão e a experiência se relacionam?". Comecemos, pois, pela razão porque por meio de sua análise, compreenderemos o que são sujeito cognocente e objeto. Iniciemos pela "crítica da razão pura".

        Com a palavra "crítica" Kant quer deixa claro que não serão analisados os conhecimentos que a razão alcança, mas as condições nas quais o conhecimento racional é possível, ou seja, a análise das condições do conhecimento racional.  E por que pura? Ora, trata-se de um exame da razão antes e isento de qualquer dado fornecido pela a experiência. Segundo Kant, essa crítica não é similar a dos livros de sistemas filosóficos, mas da própria faculdade da razão em geral, considerada em todos os conhecimentos que pode alcançar sem os dados aposteriori. Essa ponderação já é claramente defendida no prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura:T

"O propósito desta crítica da razão especulativa pura consiste na tentativa de reformular o procedimento habitual da metafísica, propondo-nos deste modo uma completa revolução em relação a esta segundo o exemplo dos geômetras e pesquisadores da natureza. Ela é um tratado do método e não um sistema da própria ciência; ainda assim desenha o contorno total da metafísica, tanto no que respeita seus limites quanto á estrutura interna total de seus membros. Pois a razão especulativa pura tem em si a peculiaridade de que pode e deve medir sua própria faculdade de acordo com a diversidade do modo como ela escolhe objetos para pensá-los, e de ainda enumerar completamente os diversos modos de apresentar seus problemas, assim desenhando todo o esboço para um sistema da metafísica... Mas para isso também a metafísica possui a rara sorte, que não pode ser concedida a nenhuma outra ciência da razão que tenha a ver meramente com princípio - Prinzipien - e as limitações de seu uso, as quais são determinadas por aqueles princípios. A essa completude ela está também obrigada como ciência fundamental, e dela tem que poder dizer-se: 'Nil actum reputans, si quid superesset agendum' - Nada reputando como feito, se algo restasse por fazer."

 

Crítica, prefácio, pag. 45.

                                                                                                                                               

        Nesse sentido, Kant intenciona superar a dicotomia entre racionalismo e empirismo examinando as condições e possibilidades da experiência humana do real e fundamentar nossas pretensões ao conhecimento, demarcando os casos legítimos em que se produz conhecimento dos casos em que nossa pretensão ao conhecimento é infundada. 

        Pois bem, estudando a faculdade de conhecer Kant admiti dois tipos de conhecimento: um empírico ou aposteriori, e o outro puro ou apriori. Ao lado dessas distinções, segundo Kant, impõe-se a classificação de três tipos de juízos ou proposições. Juízos Analíticos onde o predicado está contido no sujeito, de modo que o juízo em questão consiste apenas em um processo de análise, através do qual se extrai do sujeito aquilo que está contido nele, ou seja, são meramente tautológicos.  Esse tipo de juízos são caracteristicamente apriorísticos. Os juísos sintéticos, por seu turno, são opostos aos analíticos por unirem o conceito expresso pelo predicado ao conceito do sujeito, constituindo o único tipo de juízo que enriquece o conhecimento, porém, apesar de acrescentar um conhecimento não é universal por derivarem de dados empíricos. Fica tácito que os juízos analíticos não teriam maior interesse para a teoria da ciência por não acrescentar nada de novo ao conhecimento, já os juízos sintéticos são contingentes e particulares, referem-se à experiência que se esgota por si mesma. Portanto, o verdadeiro núcleo da teoria do conhecimento encontra-se no terreno dos juízos sintéticos apriori, os quais, ao mesmo tempo, são universais e necessários enriquecendo o conhecimento, ou seja, um juízo universal que não depende de experiência, mas é condição da experiência. Os juízos sintéticos apriori acrescentam algo de novo ao sujeito sem alterar seus conceitos. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que os juízos sintéticos são tomados como base do conhecimento científico, ao qual se baseiam na observação, eles se tornam leis que pretendem ser verdadeiro todo o tempo, e universais. Portanto, tais juízos teriam que ser conhecimento sintético a priori, porque, uma vez suas leis estabelecidas pela observação, passam a ser universais e independentes da experiência. Newton havia demonstrado, na Física, a possibilidade de reduzir a fórmulas matematicamente exatas as leis fundamentais da natureza. A ciência está, portanto, constituída por juízos a priori que são sintéticos, e não juízos analíticos.

         Kant percebeu que esse tipo de conhecimento se encontra na física e na matemática. Desse modo, podemos afirmar que a crítica kantiana parte de três importantes indagações, a saber: "como é possível conhecimentos sintéticos apriori na matemática?"; "como é possível conhecimento sintético apriori na física?"; "é possível conhecimento sintéticos apriori na metafísica?". As respostas a essas perguntas serão dadas na obra já citada crítica da razão pura. Referente às condições necessárias e universais de todo conhecimento possível antes da experiência, ou seja, de modo apriorísticos, tal estudo é transcendental. Segundo Kant, transcendental é "todo conhecimento que, em geral, se ocupa menos dos objetos e mais de nosso modo de conhecer, na medida em que este deve ser a priori". Para Kant, a razão é uma estrutura vazia, uma forma pura isenta de conteúdos. Essa estrutura é que é universal - e não os conteúdos - a mesma para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares. Ela é inata e como tal a priori.

        No entanto, os conteúdos que a razão conhece e nos quais ela pensa esse sim é dependente da experiência. Em síntese, a experiência fornece os dados aposteriori - a matéria - do conhecimento para a razão e esta, por sua vez, fornece a forma apriorística - universais e necessárias - do conhecimento. Nesse sentido, o conhecimento racional, sem o qual não é impossível fazer filosofia nem ciência, é o processamento de um conteúdo particular oriundo da experiência pela razão como forma universal e necessária. 

        Kant afirma que a estrutura da razão é constituída por três formas distintas: uma forma da sensibilidade, ou seja, uma estrutura da percepção sensível; uma forma do entendimento, ou seja, do intelecto; uma forma da razão propriamente dita, sem relação com os conteúdos do entendimento nem da sensibilidade, mas apenas consigo mesma. Segundo Kant, só há conhecimento quando a experiência fornece os dados à sensibilidade e ao entendimento. Nesse sentido, a razão não conhece coisa alguma e não é sua função conhecer. Atribui-se a razão a qualidade de regular e controlar a sensibilidade e o entendimento, ou seja, como condição de conhecimento a razão é a função reguladora da atividade do sujeito cognocente. Essa organização converte percepções em conhecimento intelectuais ou conceitos. Para tanto, o entendimento possui, aprioristicamente, um conjunto de elementos que organizam os dados empíricos denominados por Kant de intuições puras e as categorias do entendimento. Sem as categorias, segundo Kant, não pode haver conhecimento intelectual, pois são as condições para tal conhecimento. 

        A arrojada tese de Kant na "Crítica da Razão Pura" é que é possível fazer juízos sintéticos a priori. Essa posição filosófica é usualmente denominada por transcendentalismo. Mas para isso ele introduz um conceito novo na metafísica que é fundamentado pela intuição pura: o de intuição sensível. A intuição sensível é a condição primordial para que o ato gnosiológico se faça segundo juízos sintéticos que são também a priori, ainda que obtidos fora da análise conceitual própria da razão pura, uma vez que resultam da intuição exercida sobre a observação e a experiência, e somente poderiam ser particulares e momentâneos. Mas, abrindo na razão esse comportamento da intuição sensível, Kant podia agora fazer importantes afirmações e corrigir alguns equívocos.

        Na metafísica era necessário retificar a posição da intuição de racionalidade apenas como a intuição de causa e efeito, de causa suficiente, para validar as verdades de razão, quando existiam outras formas de intuição que podiam possibilitar, também, verdades de razão. A correção indispensável é que era preciso admitir todas as formas de intuição racionais, não apenas a de relação de causa e efeito, mas também a de quantidade, a de qualidade, e a de modalidade, e por meio de todas elas, é claro, o espírito intuía verdades de razão.

         Em geral, Kant acredita que a tarefa de mostrar como juízos sintéticos podem ser feitos a priori é a primeira tarefa da Metafísica. Ele sustentou que os grandes metafísicos do passado falharam em fazer isto. A Intuição intelectual é uma ficção. Nenhuma inferência, salvo o da experiência, se justifica na intuição intelectual. Análises de conceitos não irão produzir verdades além de puras tautologias, quando o que, de fato, conduz a um conhecimento novo são as verdades sintéticas, por via da intuição sensível.

        Recordemos que Kant, na faze pré-crítica, seguia o perfil cartesiano encontrados nas teses remanescentes de Leibniz e que foram reformuladas por Wolff. Logo a pós as leituras da obra de Hume esse pensamento de Kant sofre uma mutação. Ao analisar essas teses Kant vê que tanto Leibniz quanto Hume tinham razão em alguns pontos relevantes, mas que se equivocaram em outros pontos de extrema gravidade. 

        Se referindo a Leibniz, Kant afirma que ele estava certo em desenvolver o princípio da "causa suficiente" como a priori, mas se equivocou em classificá-la como analítico. Ora, se estava numa relação causal o juízo, necessariamente, teria que ser sintético. Mas, mesmo sendo sintético, permanece apriori como desejava Leibniz, pois o princípio de "causa suficiente" referia-se a uma forma de intuição e toda intuição é um conhecimento a priori. Kant também iria corrigir Hume ponderando que o escocês estava correto ao afirmar que o juízo causal é sintético, mas foi impreciso ao concluir que, por isso, era exclusivamente empírico, ou seja, não correspondia à verdade de razão como queria Leibniz. Ora, corrigindo a idéia de que o juízo causal não era analítico, como havia ponderado Leibniz, mas sintético, intuído da experiência, era também verdade de razão, era intuição, por isso gerava conhecimento a priori, necessário, do mesmo modo que os conhecimentos a priori intuídos das proposições analíticas.

O Espaço, o Tempo e as Categorias

        Ao refletir a questão das intuições Kant foi descobrindo mais coisas. O espaço e o tempo – as intuições puras - são duas formas fundamentais de sensibilidade, formas fundamentais para a intuição sensível. E afirmou o que deixaria muita gente abismada se não fosse exposto por ele, Kant, que as proposições ou juízos matemáticos eram sintéticos apriori, porque dependiam dessas formas indispensáveis, e, no entanto, estava convicto de que eram verdades necessárias.

         Kant dará a seguinte resposta a esse problema: que o conhecimento sintético depende de formas de sensibilidade e intelecção previamente existentes – apriori - na qual as impressões são colocadas. É porque possui o espaço como uma estrutura inerente à sua sensibilidade que o sujeito cognocente pode perceber os objetos como relacionados espacialmente. Pode-se pensar o espaço sem coisas, mas não as coisas sem o espaço:

“[...] O tempo não poder ser intuído externamente, tampouco quanto o espaço como algo em nós. Que são, porém, espaço e tempo? São entes reais? São apenas determinações ou também relações das coisas, tais, porém, que dissessem respeito às coisas em si, mesmo que não fossem intuídas? Ou são determinações ou relações inerentes apenas a forma da intuição e, por conseguinte, à natureza subjetiva da nossa mente, sem a qual tais predicados não podem ser atribuídos a coisa alguma? Para nos instruirmos sobre isso, queremos em primeiro lugar expor o conceito de espaço. Por exposição (expositio) entendo a representação clara, ainda que não detalhada, daquilo que pertence a um conceito; essa exposição é, porém, metafísica, quando contém aquilo que representa o conceito enquanto dado a priori.”

   Crítica, 1980, pag. 41.    

        O espaço puro é o primeiro suposto para a geometria, ou seja, é o seu fundamento. A geometria toma o espaço sob os seus conceitos de polígonos. Ex: "A linha reta é a distância mais curta entre dois pontos" (qualquer linha reta = universalidade; em quaisquer condições = necessidade). Ainda que não tenha em sua essência o princípio de não contradição, e dependa da intuição de espaço, o que lhe torna sintética, essa afirmação é conhecimento puro - ou a priori - porque a intuição do espaço está na mente. Ao concebermos essa intuição, não dependemos mais da experiência sensível. E adquirimos verdade de razão, distinguindo-se do empírico pela universalidade e necessidade.

         O que foi esquecido - contesta Kant em um rodapé no apêndice de seu "Prolegomenos” é que há um tipo de conhecimento a priori associado com os sentidos. E sustenta que as verdades matemáticas são conhecidas porque espaço e tempo são "formas de intuição sensível". Em outras palavras, o espaço e tempo são pré-requisitos absolutos para a representação de objetos sensíveis; qualquer objeto da experiência precisa ser representado em espaço e tempo. A geometria é a ciência do espaço e a aritmética a ciência do tempo, e suas proposições são verdades necessárias relativas aos objetos no espaço e no tempo. Em fim, nós raciocinamos sobre as condições de representação, e a intuição intelectual torna-se dispensável.

         Contudo, fora do espaço e do tempo elas são relativas. Para que fossem, seu oposto precisava implicar a contradição. Mas Kant reconhece a possibilidade de geometrias alternativas, que podem implicar proposições contrárias. Assim, uma proposição pode ter fundamento em uma e não em outra (por exemplo, a soma dos ângulos de um triângulo é 180° graus, o que é verdade na geometria euclidiana, mas falsa nas geometrias não euclidianas).

         Kant reconheceu, também, o princípio da razão suficiente (para coisas no tempo: cada alteração de uma coisa tem uma causa) como uma verdade absoluta. Nosso pensador alegou que os princípios da matemática são necessários enquanto forem condições da representação sensível. Podemos agora afirmar que eles são sintéticos, quanto a que seu oposto não implica uma contradição. Princípios de "ciência natural pura" tal como o princípio causal acabado de ser mencionado, são também sintéticos e conhecidos a priori. Eles são condições para a coerência ou "unidade" da experiência. São necessários para que nós sejamos capazes de representar um mundo de objetos como pertencentes a uma única experiência.

        O espaço é intuição pura, a priori. É um subposto que o homem coloca à sua experiência com os objetos, mas é absolutamente independente da experiência; não podemos ter experiência de nada senão no espaço. O espaço não deriva da experiência e também não é um conceito. O conceito compreende uma multiplicidade. O conceito de homem, por exemplo, é a unidade mental sintética daqueles caracteres que definem todos os homens. Ao contrário do conceito, a intuição toma conhecimento diretamente de uma individualidade: o espaço é único; é intuição pura:

“O espaço não é um conceito empírico abstraído de experiência externas. Pois a representação de espaço já tem que estar subjacente para certas sensações se referirem a algo fora de mim (isto é, a algo num lugar do espaço diverso daquele em que me encontro), e igualmente para eu poder apresentá-las como fora de mim e uma ao lado da outra e, por conseguinte não simplesmente como diferentes, mas como situadas em lugares diferentes. Logo, a representação do espaço não pode ser tomada emprestada, mediante a experiência, das relações do fenômeno externo, mas esta própria experiência externa é primeiramente possível só mediante referida representação. O espaço é uma representação a priori necessária que subjaz a toda as intuições externas. Jamais é possível fazer-se uma representação de que não há espaço algum, embora se possa muito bem pensar que não se encontre objeto algum nele. Ele é, portanto, considerado a condição da possibilidade dos fenômenos e não uma determinação dependente deste; é uma representação a priori que subjaz necessariamente aos fenômenos externos.”

Crítica, 1980, pag. 40.  

 

        Igualmente, é porque a representação do tempo lhes serve de fundamento que a simultaneidade ou sucessão das coisas pode ser percebida; as coisas e os fatos não existem sem o tempo, mas o tempo existe sem as coisas. Também o tempo é uma faculdade aprioriorística, ou seja, independente e anterior a experiência. Algo acontece porque no decurso do tempo esse algo vem a ser. Podemos conceber o tempo sem acontecimentos, mas não um acontecimento sem o tempo. O tempo também não é conceito, porque não existem muitos tempos: o tempo, bem como o espaço, é intuição pura.

        Em sua tese, Kant revoluciona o racionalismo, ao demonstrar que o conhecimento a priori, próprio da razão pura, pode originar-se também da experiência, e isto porque a experiência envolve elementos que são intuições puras, a priori, e estas são principalmente as intuições de espaço e tempo. Dá um golpe letal no realismo ao olhar o mundo material como fruto da intuição sensível. Os objetos do mundo material são fundamentalmente incognoscíveis: do ponto de vista da razão eles servem meramente como a matéria prima da qual as sensações são formadas. Os objetos eles mesmos não tem existência, e o espaço e o tempo existem somente como partes da mente, como "intuições" pelas quais as percepções são medidas e julgadas.

         O Espaço e tempo são "subpostos" como condições de conhecimento, condições que, partindo do sujeito, precisam realizar-se para que o objeto seja efetivamente objeto do conhecimento. Esses subpostos serão denominados por Kant de "condições transcendentais da objetividade". Espaço e tempo seriam, assim, duas condições sem as quais é impossível conhecer, mas são formas de sensibilidade, por isso Kant os trata na Estética Transcendental.

        O espaço é a forma da experiência ou percepções externas; o tempo é a forma das vivências ou percepções internas. Porém, ao mesmo tempo em que eu percebo a coisa sensível, tenho simultaneamente, além de sua percepção como coisa externa, a sua "apercepção" interna, dando-me conta de que a percebo. Por conseguinte, o tempo tem uma posição privilegiada em relação ao espaço, porque é forma da sensibilidade externa e interna, com referência a objetos exteriores. Após elucidar exaustivamente essas intuições básicas, fundamentais, de espaço e tempo, aquilo que o sujeito põe para a cognoscibilidade das coisas, dos fenômenos, Kant busca elucidar também as leis efetivas que regem os fenômenos. As coisas têm seu ser, sua essência, sua natureza; existem e se relacionam segundo leis fixas de efeito e causa ou ação e reação, e estas leis são universais. Assim, além das duas formas fundamentais da sensibilidade, espaço e tempo, existem outros elementos apriorísticos próprios do entendimento, da razão. Estes pertencem à lógica tradicional, desde Aristóteles (384- 322 a.C.). Kant trata deles na "Analítica Transcendental". Esses a priori da lógica Kant diz que correspondem, na verdade, às formas pelas quais a mente está limitada no seu conhecimento das coisas, ou seja, não pode conhecer nada senão desse modo.

        Aquilo que a lógica dizia que a realidade tem que conter é o que, segundo Kant, nós temos capacidade para ver na realidade. A realidade mesma nós desconhecemos. A realidade é o noumenon, a coisa em si mesma. O que nós podemos conhecer dela, dentro de nossas formas possíveis de conhecimento, é o fenômeno. No entanto, o simples fato de não podermos conhecer as coisas em si, ou seja, como elas são realmente - e sim como se apresentam a nós - não significa que o conhecimento adquirido seja uma ilusão proporcionada pela impossibilidade de alcançarmos o noumenon. Segundo o nosso idealista crítico trata-se da condição humana para obtenção de conhecimento.   

       Fica constatado que este conhecimento a respeito das coisas é a priori, não se constitui de impressões. Nenhuma coisa nos envia "a causa" como impressão. Extraímos o conhecimento de causa não do real, mas de nosso próprio pensamento. Fazemos um "juízo" a respeito da causa. Algo é real quando é objeto possível de juízos, de afirmações ou de negações. Nesse sentido, não basta colocar as intuições espaço e tempo a determinado algo para que seja real, mas é necessário que possamos fazer dele juízos, dizer que "é" isto ou "é" aquilo. Se a realidade se apresenta nos juízos, então às diferentes formas dos juízos corresponderão diferentes variedades em que se pode apresentar a realidade. O homem formou, assim, um conjunto de juízos ou teses, que expressam aquilo que as coisas reais são.

         As diferentes formas de juízo, na lógica formal, são: juízos de quantidade, de qualidade, de relação e de modalidade. Assim, aquelas diferentes variedades em que se pode apresentar a realidade em correspondência aos juízos Kant chama categorias. É mister ponderar a conversão feita por Kant em relação a forma original que era concebida às categorias desde Aristóteles, a saber: enquanto os antigos admitiam essas formas como inerente aos objetos, ou seja, era uma coisa intrínseca dos objetos que lhe davam a possibilidade de ser conhecida pelo sujeito cognocente, Kant demonstrou que era uma forma apriori  do entendimento que tem o atributo de condicionar o sujeito cognocente a fazer juízos dos dados empíricos. Como o espaço e o tempo são as condições da possibilidade dos juízos sintéticos a priori na matemática, as categorias são as condições da possibilidade dos juízos sintéticos a priori na Física. São categorias de sinterização dos dados da experiência, são também formas de intuição:

“O essencial neste sistema de categorias, pelo qual se distingue daquela velha rapsódia, que continuava sem nenhum princípio, e o motivo pelo qual deve ser acrescentado à filosofia constituem no seguinte: por meio destas categorias, puderam ser determinados com exatidão o verdadeiro significado dos conceitos de entendimento puro e a condição de seu uso. Pois aí se verificou que elas, por si, nada mais são que funções lógicas, como tais não constituem o mínimo conceito de um objeto em si mesmo, mas precisam da intuição sensível como fundamento, servindo, então, para determinar juízos empíricos, que em relação a todas as outras funções de juízos são indeterminadas e indiferentes, tornando-os, assim, universalmente válidos e possíveis por meio de seus juízos de experiência em geral.”  

                                                              Prolegômenos, 1974, pag. 150

 

         Em sua tese Kant dividiu as categorias em quatro grupos: aqueles referentes aos juízos lógicos, segundo a quantidade, qualidade, relação e modalidade:

  • Quantidade: juízos singulares, particulares e universais - são juízos individuais ou singulares: Alfredo é alagoano; particulares: alguns homens são negros; universais: todo homem é mortal. Desta maneira, quanto à quantidade, os juízos individuais (Este A é B) que afirmam de uma coisa única, contêm no seu seio a unidade; os juízos particulares (Alguns A são B), que afirmam de várias coisas algo, contêm implícita a pluralidade; os juízos universais (Todo A é B) contêm a totalidade. De modo que as três formas de juízos, segundo a quantidade, dão lugar a estas três categorias: unidade, pluralidade e totalidade.
  • Qualidade: juízos afirmativos, negativos e infinitos - são juízos afirmativos: Pedro é carioca; negativos: o átomo não é divisível; infinitos: os pássaros não são vivíparos (podem ser infinitas coisas). Do ponto de vista da qualidade, os juízos são: afirmativos (A é B), negativos (Entre B e C, A não é B), e infinitos (A não é B). Deles Kant extrai as três categorias de essência (que ele chama realidade), de negação e de limitação (o juízo infinito contém limitações, diz aquilo que algo não é, mas deixa aberto um campo infinito para o que possa ser). As categorias desse grupo são as de essência, negação e limitação.
  • Relação: juízos categóricos, hipotéticos e disjuntivos - são juízos categóricos: o ar é denso; hipotético: se é alagoano, então é brasileiro; disjuntivo: Sato é japonês, ou coreano, ou chinês. Assim, os juízos segundo a relação são categóricos (A é B), hipotéticos (Se A é B, é também C) e disjuntivos (A é B, ou C, ou D). Resultam as três categorias seguintes: dos juízos categóricos (A é B), a categoria de substância com o seu complemento natural de "propriedade' porque quando afirmo categoricamente que uma coisa "é isto", considero esta coisa como uma substância; "é isto" que dela afirmo como uma propriedade dessa substância. Dos juízos hipotéticos resultam a categoria de causalidade (de causa e efeito), porque, quando formulamos um juízo como "Se A é B, é também C", já assentamos o esquema lógico da causalidade (Se faz calor, se dilatam os corpos). Dos juízos disjuntivos extrai Kant a categoria de ação recíproca. Neste grupo estão as categorias de propriedade, causalidade, e ação recíproca.
  • Modalidade: juízos problemáticos, assertórios e apodíticos - são juízos problemáticos: A pode ser B; assertórios: A é B (mas não haveria contradição se A fosse C como "O calor dilata os corpos", pois é assim, mas poderia ser diferente; apodíticos: A é necessariamente B como a soma dos ângulos de um triângulo tem que ser dois retos". Desta quarta maneira de dividir os juízos procedem então às seguintes categorias: dos juízos problemáticos (A pode ser B) Kant extrai a categoria de possibilidade; dos juízos assertórios (A é efetivamente B), faz derivar a categoria de existência; dos juízos apodíticos (A tem que ser B), tira a categoria de necessidade. Aqui são as categorias de possibilidade, existência e necessidade. Temos então completa a tabela das categorias. São doze as categorias de Kant.

   

        Se tudo aquilo que há na ciência, se todas as condições do conhecimento tivessem que nos ser proporcionadas pelas impressões sensíveis que as coisas nos enviam, então Hume estaria correto, ou seja, esperaríamos que o sol saísse amanhã pelo simples costume de tê-lo visto sair até agora, mas não por um fundamento real. Não teríamos intuição de nenhuma ilação, nenhuma vinculação entre as impressões. Tudo aquilo que as categorias nos dizem (que os objetos são únicos, múltiplos, que pode agrupar-se em totalidades, que os objetos são substâncias com propriedades, causas com efeitos, efeitos com causas, que têm entre si ações e reações) todas essas categorias são condições sem as quais não haveria conhecimento. É nossa possibilidade de raciocínio lógico conforme a essas formas categóricas a priori que procedem de nós que possibilita para nós o conhecimento e a certeza. As condições do conhecimento, as categorias, são, por conseguinte, conceitos puros, a priori, que o sujeito cognocente dá ao objeto. São faculdades do entendimento.

        Falamos de coisas extensas no espaço e sucessivas no tempo: o espaço e o tempo não são propriedades absolutas das coisas; o sujeito cognocente as coloca nas coisas como ele as conhece. Infere-se que não faz sentido, então, falar de conhecer as coisas "em si mesmas". Kant chama "fenômenos" às coisas providas das formas de espaço e tempo, vistas na correlação objeto-sujeito, por via da intuição de tempo e espaço.

        A sua concepção ou posição do processo de conhecimento Kant chama "estética transcendental". A palavra estética não tem na crítica kantiana o sentido de teoria do belo, mas sim o seu sentido etimológico, oriundo do grego, que é sensação, percepção. A palavra transcendental é usada por Kant no sentido de condição para que algo seja objeto do conhecimento.

       Kant recusou ser rotulado do tipo de idealista denominado por ele mesmo de fantasioso, ou seja, a associação de sua filosofia com a de George Berkeley. É importante apontar aqui qual parece ser a diferença. Nos "Prolegomenos a qualquer futura Metafísica" Kant argumenta que todos aceitavam o ponto de vista antigo de que as cores, sons, etc., eram qualidades que não estão nos corpos, mas são apenas os modos como os representamos através dos sentidos. Se essa consideração com respeito às qualidades secundárias não impugna a existência dos corpos, porque deveria fazê-lo um tratamento semelhante das qualidades primárias? Em outras palavras, mesmo que também as qualidades primárias sejam irreais com respeito aos corpos, os corpos existem. Realmente, Kant nunca negou a existência dos corpos, como Berkeley. Apenas nega que eles tenham, neles mesmos, à parte de toda representação humana, propriedades espaciais e temporais.

         Berkeley nega que fique alguma coisa se tirarmos do objeto todas as suas qualidades, tanto as primárias como as secundárias, considerando-as produto de nossos sentidos. Para Berkeley, se também as qualidades primárias dependem da mente, então não podemos atribuir aos corpos mesmos a atividade de causar sensações em nós. Então, para Berkeley, é Deus que causa em nós as impressões.

         Mas Kant afirma categoricamente que algum material é causa da intuição sensível. Tem uma crença segundo a qual os corpos existem sem nós, ou seja, existem coisas as quais, apesar de inteiramente incognoscíveis para nós quanto ao que sejam em si mesmas, sabemos, no entanto, que existem, pela representação que sua influencia desperta em nossa sensibilidade, e às quais chamamos corpos.