O PARADOXO DE TSCHIRNHAUS: PADRÃO DE FORMULAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO

 

Por Walter Aguiar Valadão

As coisas devem ser verdadeiras antes que possam pretender outros méritos significativos. Sem verdade tudo o mais não tem valor.

E. Gellner, “Postemodernism, Reason and religion

PRIMEIRAS PALAVRAS

ALGO ESTRANHO ACONTECE NO BRASIL! Algo quer dizer algo novo é melhor está surgindo, ou, algo muito velho e de grande poder de recuperação está tomando nova forma? Invenção ou Ressurreição? Difícil dizer!... Mas, será que enfim terminou, na expressão de Baudrillard, “a ilusão do fim”? (BAUDRILLARD, 2001), ou o que se pronuncia acontecer agora é novamente o eterno retorno do não acontecer, isto é, o movimento jurídico que se verifica atualmente seria apenas mais uma manifestação da velha tradição brasileira de solicitar soluções, (“ouvir o povo, para que o povo faça, exatamente, aquilo que queremos que ele faça”, como ironicamente disse alguém), traçar perspectivas, anunciar mudanças significativas, alimentar esperanças, prometer “mundos e fundos” etc., para tudo permanecer o Mesmo: “A casa está sempre e a cada momento no estado que lhe convém” (Apud, FOUCAULT, 1990)? E eis que, de repente, essa inquietude angustiada e intuitiva de que, parece-me, estamos mais uma vez presos dentro de um circulo vicioso: o do tema da Crise do Judiciário, cuja solução tem sido, justa e inutilmente descomprimi-la, ou seja, estrategicamente incluir na ordem a exceção que beneficie interesses perversos. A “crise” tem se constituído, ela própria, o tempo da reivindicação, da organização, do acontecimento que aciona as “máquinas desejantes” (Deleuze-Guatari). Fenômeno que observamos muito e em todas as esferas e, paradoxalmente, com dificuldades de entendimento! Na descrição genérica de Henri Lefebvre de seu modus operandi, temos:

“Um tema é lançado; faz sucesso; tem sucesso. Cada autor ou produtor se precipita sobre esse tema. O público se atira sobre (as notícias, os seminários, os debates), os filmes, as peças de teatro, as emissões de rádio ou de TV que tratam desse tema. Então, dos lados dos produtores, ele se esgota. Do lado do público, ele satura”. E de forma geral, “o interesse diminui; o tema torna-se desinteressante. É abandonado” (LEFEBVRE, 1969).

Mas não sem antes ter gerado artigos, ensaios, monografias, dissertações, teses. Produzido “discípulos”; dobrado a Ordem Social etc. Uma loucura! Como se preparasse a historiografia para o retorno... E a tentação cresce! Neste sentido, disse o bom e velho Karl Marx: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” (MARX, 1978). Ora, não seria a Crise do Judiciário apenas um velho tema sempre recorrente e apenas o ciclo vicioso para a produção das genealogias? Ou então, se atual, não corre o risco de ser apenas mais um tema, uma farsa sensacionalista criado para consumo ligeiro de uma ciência do medo promovida por uma mass media ávida por alardes inúteis porem “apocalípticos”? E então veremos que:

“O tempo passa; tempo durante o qual esse tema não é senão passado. O esquecimento vem e apaga-o; por outro lado, novos vindos chegam: pessoas jovens, novos ouvintes, novos espectadores” (ou novos objetos, novos métodos, novas abordagens). “Um momento vem em que o tema poderá renascer. Toma-se-o de volta. Ele parece novo. E o processo recomeça. Apenas uns detalhes inéditos, ou uma técnica inesperada junta-se ao tema retomado, e está-se seguro de um interesse revigorado” (LEFEBVRE, 1969).

E o ciclo vicioso restabelece o eterno retorno! E a verdade jurídica-política desesperadamente buscada consistiria em sua essência, em seu fundamento, de apenas simulação e/ou dissimulação de uma “maquina política” de Três Poderes numa luta inglória entre si ainda a procura de acomodações? E, talvez, o grande problema seja que nós, eleitores, jamais escolhemos decisões ou políticas, só pessoas e partidos; pessoas indicadas por partidos; partidos que são “máquinas políticas”... Grande erro! Estabelece-se a prática do favor na esfera política. “A verdade, porém é uma só”, diz-nos Carlos Estevam Martins, em “Prefácio” ao livro “Voto e máquina política” de Eli Diniz: “onde a sobrevivência de indivíduos ou grupos depende da concessão de favores, o que existe é uma forma inferior de relação social, que nega a emancipação da pessoa humana” (MARTINS, 1982, in, DINIZ, 1982), e estabelece a corrupção na vida política do Estado, degradando a dignidade de um povo, destruindo as instituições no conteúdo e preservando-as apenas na forma. E assim:

De direito a ser livremente exercido, o voto (instituição central na democracia representativa) se transforma em meio de pagamento, de tal modo que, ao entregar sua contraprestação, o pseudo cidadão não faz mais do que cumprir com seu dever incutido pela relação clientelista. Em seguida, temos a desnaturação do partido político” (MARTINS, 1982, in DINIZ, 1982).

O partido transforma-se em máquina-política! E pior ainda, a desnaturação da representação política. E a gente sofre todas as indignidades, todas as promessas não cumpridas, todos os projetos falidos, todas as políticas insensatas, todas as más intenções, todas as manipulações, todas as corrupções... Na carne, na alma! Isto é a “política”? É de doer! É de matar! Mas, sem dúvida, algo estranho acontece no Brasil! Mais precisamente na busca aparentemente sincera (e que creio sincera apesar de tateante) dos Juristas e dos Tribunais por realização efetiva dos Processos na esfera da Justiça. Difícil medir! Não há metro, litro, balança, altímetro, barômetro para isso. Como precisar? Estabelecer o limite? O Equilíbrio da balança? A afiação do gume da espada da Justiça? Oferecer o justo?... Algo, (leio no regulamento do concurso de monografia), para a 10ª Edição do Prêmio Innovare, quer dizer:

(1), “alguma coisa, qualquer coisa”, que importe em “soluções para dificuldades ou problemas enfrentados pela Justiça”, ou que apresente “sugestões para seu desenvolvimento”;

(2) “um tanto, um pouco”, não importa se “grande (ou numerosa)” ou se “pequena (ou reduzida)” sejam as contribuições advindas de outras áreas do conhecimento humano.

 Algo acontece! Silenciosamente! Como a força ignorada de um pequeno córrego que a chuva avoluma; quem pode deter? Mas, de que força perigosa pecamos por ignorar?... Há problemas ai! Complexas aporias sobre a questão da prestação jurisdicional, e ainda não enfrentadas. E aí está, por exemplo, um perigo! Mas o Fato é que algo de inovador, insinuante e provocador escondem-se já estão na proposta da 10ª Edição do Premio Innovare e no convite que recebemos, portanto, cabe a todos nós, “profissionais e graduados de qualquer área”, dizer o quê? Interessante isso! O que, por exemplo, impede e o que pode ser oferecido como direito ã adequada tutela jurisdicional, ou seja, nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni, “a tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva” (MARINONI, 1994)? Mas não só, mas não só...! O edital do Concurso de Monografias jurídicas da 10ª Edição do Premio innovare convoca todos os profissionais de curso superior de qualquer área para participar; e nunca é demasiado insistir nisso... Não temos aqui um grande exemplo de humildade? Mas teríamos, finalmente, o reconhecimento de que existe uma quantidade incalculável de questões que a Advocacia não alcança e que contribui para a falta de qualidade no corpo funcional dos Fóruns e Tribunais de Justiça e na oferta da devida tutela jurisdicional? Abre-se, assim, a possibilidade (diante da complexidade crescente das ciências da sociedade e da natureza e de seus “efeitos indutores”) de uma convivência técnico-científica e doutrinária multi e interdisciplinar salutar de trabalho no Poder Judiciário em prol da Justiça “face ao milagre do Fato”? (LÉVINAS, 2010). Será composta assim a operacionalidade dos Fóruns e Tribunais de Justiça no Século XXI? Encontraremos ainda, nos Editais de Concurso de ingresso para a carreira inicial da Magistratura e exigência exclusiva, apesar de inconstitucional e ilegal, do título de Bacharel em Direito? Palavras! Palavras! Palavras!... E a prudência aconselha-nos acreditar que sim! Mesmo assim, de forma ainda tímida, diante da inexperiência democrática dos Fóruns e Tribunais de Justiça, o Instituto Innovare, reconhecendo a necessidade e “a importância de buscar auxílio em outras áreas”, lança um novo Concurso de Monografias, a 10ª Edição, “buscando idéias para uma justiça melhor”, e, pela primeira vez, repito, admitindo trabalhos “de profissionais e graduados de qualquer área de atuação na Categoria Especial” que tem o tema “A Justiça do Século XXI”. “Categoria Especial”? Que dizer? Exceção e não Norma? Generosidade (ou mesmo desespero) e não reconhecimento da importância do Outro? Que coisa! Como observou Giovanni Sartori: “O pêndulo da história vai para trás e para frente” (SARTORI, 1994), é quem sabe o tempo dessa oscilação? Então, como contribuir? O que motivou o Prêmio Innovare? Seria o reconhecimento da necessidade de uma reconstrução que é segundo Jürgen Habermas: “o modo normal de se comportar diante de uma teoria (ou uma prática) que, sob diversos aspectos, carece de revisão, mas cujo potencial de estímulo não chegou ainda a se esgotar” (HABERMAS, 1983)? Se sim, temos a proposição de duas vias reflexivas distintas que, simplesmente, engrandece a iniciativa do Instituto Innovare: (1ª) suprir as carências revisionistas da Organização e da Administração do sistema formal de Justiça, (2ª) buscar atualizar de forma crítica as perspectivas históricas de construção de um Estado Democrático de Direito que torne possível pensar “A Justiça do Século XXI”. Mas, gostaria de acrescentar uma terceira via, a saber: (3ª) CONCLUSÃO: o Paradoxo de Tschirnhaus como explicativo “das causas” da crise do Poder Judiciário, ou seja, crise de razão judicante. Precisamos olhar isso com cuidado! Trata-se, aqui, portanto, como Historiador, fundamentalmente, de olhar com “olhos de madeira”, (Ginzburg), mesmo porque, as carências só poderão ser supridas com o longo conhecimento crítico da História de suas rupturas e/ou continuidades epistemológicas. E assim, o que, de imediato, impõe-se é um esclarecimento da expressão composta, “conhecimento crítico”. Neste sentido, concordo com Paul Hirst e Phill Jones que, em “Os recursos críticos da jurisprudência firmada”, observaram com precisão:

“(...) a noção de crítica envolve um perigo real. O perigo é a rejeição, em nome do radicalismo, dos benefícios genuínos legados pelos sistemas jurídicos liberais do Ocidente e pelas formas de conhecimento desenvolvidas por teóricos do direito na elaboração crítica e na defesa do liberalismo ocidental” (HIRST; JONES,1992).

O que significa dizer, primeiro, que não se trata, aqui, simplesmente de uma rejeição do criticado, ou seja, de uma nova teoria, “não contaminada pela jurisprudência firmada, que facilitará uma nova prática em relação ao direito”, mas apenas de algumas observações contributivas feitas a margem. E, segundo, que não se apresenta, aqui, “uma rejeição das leis ou das formas jurídicas existentes”, nem “a emergência final de um projeto alternativo de instituições”, mas a possibilidade conformada de reconstrução, isto é, de dizer algo com crueldade amorosa. – O que não se faz por Dever, faz-se por Necessidade, Amor, Liberdade, Medo...

  1. 1.      DA NECESSIDADE DE SUPRIR AS CARÊNCIAS REVISIONISTAS.

(...) a crise da Justiça está na ordem do dia: dissemina-se e serpenteia pelo corpo social, como insatisfação dos consumidores de Justiça, assumindo as vestes do descrédito nas instituições; atinge os operadores do direito e os próprios magistrados, como que impotentes perante a complexidade dos problemas que afligem o exercício da função jurisdicional; desdobra-se em greves e protestos de seus servidores; ricocheteia, enfim, pelas páginas da imprensa e ressoa pelos canais de comunicação de massa, assumindo dimensões alarmantes e estimulando a litigiosidade latente (...).

(GRINOVER, 1990).

 

GOSTARIA DE SUGERIR o seguinte: o busílis da questão da “Crise do Judiciário” (se há uma crise?) é que existe entre a superfície (Forma) e a profundidade (Conteúdo) de um Processo, ou melhor, entre a Relação Processual e a Relação Material que dão ensejo a uma realização judiciária do Direito, um “antagonismo contraditório”, digamos assim, que procura conciliação, nas palavras do ministro Domingos Franciulli Netto, “assentado numa acendrada volúpia de intensa e incansável busca do ideal idealíssimo de Justiça” (FRANCIULLI NETO, 2004), mas que, mutatis mutandis, é a causa do que se denomina a CRISE DO JUDICIÁRIO, (que se expressa superficialmente no excessivo formalismo processual; crescente número de demandas para a mesma causa petendi; lentidão do trâmite processual, intempestividade; acúmulo de processos nos fóruns e tribunais etc.), que se transparece do que proponho chamar de Paradoxo de Tschirnhaus, e que concretiza sua atualização nas dificuldades e deficiências criadas por uma cegueira culta formal e responsável perante as realizações e insuficiências da Prestação Jurisdicional. Dificuldades que, protesta José Rogério da Cruz e Tucci: “perpetua a angústia e produz enorme prejuízo material e moral, àqueles que protagonizam o combate judiciário” (CRUZ E TUCCI, 1997). E não só! Em “Preço da ação”, título da reportagem de revista VEJA, (Ano 31, nº 8, 25/02/98, p.23), somos informados que as deficiências do judiciário inibem investimentos que poderiam fazer o PIB crescer cerca de 13,7%. O presidente da OAB, Reginaldo de Castro, fala em 10% do PIB. “São nada menos de R$85 bilhões”, diz. (CASTRO, 1998). De qualquer forma, não é pouca coisa! Mas isso já é outra questão! A nossa é o que entender por Paradoxo de Tschirnhaus e como ele se espraia nos domínios da Justiça no Brasil, corrompendo e anulando (por carência de reflexões mais-consistentes e não-contraditórias), inclusive, as soluções inventadas e propostas para a superação da “crise”, tornando-a mais problemática. E elas continuam a proliferar como vírus em uma infecção, e as mais pretensiosas (e já falidas, segundo J.J. Calmon de Passos), foram às relativas à, enumeremos algumas: (1) à antecipação da tutela; (2) à execução específica das obrigações de fazer e não fazer; (3) à nova roupagem do Agravo de Instrumento; (4) à previsão da audiência preliminar, e, (5) à criação dos Juizados Especiais... etc. E em cada uma delas movimenta-se, mais uma vez, o Paradoxo de Tschirnhaus na assimetria existente entre Teorias e/ou Práticas, ou seja, nas palavras de Calmon:

Todas as inovações seriam extremamente louváveis e dariam resultados excelentes se os pressupostos para a sua legitimação e operacionalidade em termos democráticos tivessem sido atendidos. Sem esquecer que, no mínimo, sua introdução reclamaria ajustamentos no CPC (ou mesmo CPP), de modo a preservar-lhe a sistematicidade, indispensável para a sua mínima racionalidade (PASSOS, 1999).

Em outras palavras, os estudos e projetos em curso nos Tribunais nada contêm de democráticos (não o são na origem, não o são ao termo), e, reproduzem, por exemplo, com o nome de Juizados Especiais, o mesmo velho, cansado e ineficiente aparelho judicial em que os Processos são armados e costurados burocraticamente como no Séc. XVI, longe das vidas e da realidade de quase totalidade dos cidadãos, apesar de os Art. 24, X, e o 98, I, da CF/1988, terem visado possibilitar a qualquer cidadão o acesso imediato a um órgão do “Poder Judiciário”... A questão é saber por que o Direito não se desenvolve sem antinomias que podem transformar o Acesso a Justiça em letra morta? Ou seja, necessariamente, tem que reproduzir o Paradoxo de Tschirnhaus? Explico-me! Na revista DISCURSO, nº 31, Ano 2000, do Departamento de Filosofia da USP, encontra-se um texto da professora Marilena Chauí, “Sobre a correspondência de Espinosa com Tschirnhaus”, em que, entre outras, cita a “Carta 57”, a primeira troca epistolar de Tschirnhaus para Espinosa, quando, em 1674, propôs a Espinosa a questão do livre-arbítrio. Informa-nos Marilena Chauí que a carta desdobra-se em três movimentos articulados internamente: “no primeiro Tschirnhaus apresenta um paradoxo; no segundo, propõe resolvê-lo apelando para a experiência, da qual se poderia extrair uma regra geral; e, no terceiro, entra na questão propriamente dita, a existência ou inexistência do livre-arbítrio” (CHAUÍ, 2000). O que articula os três movimentos da carta continua Marilena, “é o pressuposto de que Descartes e Espinosa, aparentemente contraditórios, estão dizendo o mesmo, desde que se possa perceber de onde cada um deles fala ou o ponto a partir do qual suas perspectivas são traçadas”. Enfim, “qual é o paradoxo?”, pergunta e responde:

Que dois filósofos usando o mesmo argumento (eadem ration), um demonstre algo ser falso, e, o outro, verdadeiro (CHAUÍ, 2000).

A seguir vem a questão: “Como resolver o paradoxo?”. Resposta: “Invocando a experiência”, diz Marilena. E, continuando, esclarece:

Se dois homens, um afirma o que o outro nega, e ambos estão plenamente cônscios do que estão dizendo, embora pareçam verbalmente contradizer-se, desde que se considerem seus conceitos, ambos dizem a verdade, cada qual em conformidade com seu conceito (CHAUÍ, 2000).

O paradoxo mais próximo (mas apenas aparente), vizinho, e extremamente comum em Direito, cotidiano mesmo, seria pessoas internolentes que se tornam (ou são também) intervolentes! Mas, dado a presença de tal proximidade em formulação menos aporica, é que o Paradoxo de Tschirnhaus começa e deslanchar-se em um padrão aceitável de respostas jurídicas contraditórias, mas não excludentes (apesar de parciais e relativas) dado “(1) a imprecisão da linguagem do Direito, (2) a possibilidade de conflito entre normas, (3) o fato da possibilidade de haver casos que requeiram uma regulamentação jurídica, que não cabem sob nenhuma Norma válida existente, (4) a possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contraria textualmente um Estatuto” etc., etc.. (Cf. ALEXIS, 2001). Em outras palavras, preleciona Marilena: “Tschirnhaus julga que a experiência, como regra universal, (da certeza do intelecto), confirma a teoria cartesiana de que um modo de pensar, não possui nenhuma falsidade e que, se conhecermos as condições ou razões de uma afirmação ou negação veremos que, em si mesma, corresponde e uma experiência real, ainda que não corresponda à verdade absoluta das coisas”... Em sua resposta, portanto, referindo-se aos dois homens que se contradizem e entram em controvérsias, Espinosa propõe uma correção que anula a Paradoxo de Tschirnhaus, ao afirmar que ele

terá razão se dois homens, enquanto usam as mesmas palavras, pensam coisas diversas, ou enquanto pensam o mesmo usam palavras opostas (CHAUÍ, 2000).

E de fato, conclui Marilena, Espinosa e Descartes “não estão pensando o mesmo e por isso não estão dizendo o mesmo” (CHAUÍ, 2000). Para nós, que buscamos as causas da Crise do Judiciário, (considerando a proposição do Paradoxo de Tschirnhaus), a questão que fica e intriga é: se dois jurisconsultos diante dos mesmos Fatos estivessem pensando a mesma coisa e dizendo coisas diferentes, (um que algo é “verdadeiro”, o outro, que é “falso”), em que condições heurística e metodológica, ambos teriam razão? A resposta seria simples se disséssemos: “Elementar meu caro Watson! Que os dois sejam brasileiros” (quer dizer, falta-lhes a impregnação do pensamento filosófico), ou, então, mais precisamente: “Elementar meu caro Watson! Um sendo Processualista, e, o outro, Civilista ou Penalista”. Mas a coisa é mais complexa, e vai além da simples ironia! O fato é que (situado a pouca distância do Paradoxo de Tschirnhaus), duas pessoas internolentes podem ser também intervolentes! Considerando que, por exemplo, uma mesma Petição inicial (CPC: Art. 2º, Art. 3º e Art. 262), obriga dois contentores (CPC: por Contestação, Art. 300 e segs., ou Reconvenção, Art. 315 e segs.) a pensar o mesmo: o Direito a determinado Objeto, ou, qualquer interesse primário [“secundário”, “terciário” (Sic!?)] em abstrato tutelado pelo Direito. Evidentemente, são pretensões opostas, e, geralmente, o Direito, Lacto Senso, diz respeito apenas uma das partes em oposição, mesmo a Revelia, quando o réu não contesta a ação (CPC: Art. 319), ou, por Contumácia, quando o próprio autor abandona a ação (CPC: Art. 267, III), ou, ainda, quando o sujeito passivo Excepciona (CPC: Arts. 304 a 314), ou arguindo incompetência, impedimento ou suspeição do Juiz (CPC: Art. 304), etc. etc. E como se não bastasse, o CPC vislumbra as hipóteses do indeferimento liminar da inicial pela inexistência de causa a pedir ou pedido, por inépcia (CPC: Art. 295, I e c./c. §1º I), ou alegação dessa matéria preliminar de mérito pelo réu citado (CPC: Art. 301, III) etc., caso não haja referência a qualquer situação material concreta de direito. Em outras palavras, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), diria, em “Des conditions”:

89. Prescreve o direito que se torna nulo.

90. Enferma-se o ato que se torna inválido.

91. Suprime-se o que se torna inútil.

92. Restabelece-se o que deixa de ser nulo ou inválido (LEIBNIZ, 2003).

Sendo assim, a “Crise do Judiciário” apresenta-se com um diagnóstico ambíguo: as causas da “saudável doença” ou, na expressão (título de uma de suas obras) de Hans-Georg Gadamer, “O caráter oculto da saúde” do Judiciário seria, segundo o presidente nacional da OAB, Reginaldo Oscar de Castro, “não financeira, mas de gestão administrativa”. Neste sentido, o presidente da OAB em Goiás, Felicíssimo José de Sena, segundo o Jornal “O Popular” (de 4 de outubro de 1988), disse que “os Tribunais criam regras regimentais restritivas para resolver o problema de seus integrantes sem atender aos jurisdicionados”, Para o ministro Franciulli Neto o diagnóstico é apresentado sob a forma de uma dúvida metódica (Descartes), diz ele: “Seriam o Código de Processo Civil (CPC) e as demais lei processuais extravagantes os grandes responsável pela excessiva demora na solução dos feitos? (FRANCIULLI NETO, 2004). Que dizer do Código de Processo Penal (CPP)? Em última instância, sem dúvida, o principal da causa, o Direito Material, reside no Processo, e é justamente o que coloca em evidência a diferença entre a Relação Material e a Relação Processual que a formaliza. É necessário, então, considerar que:

PROPOSIÇÃO I

A Relação Processual é a subjetividade do Processo em sua exterioridade, e se ela exprime a verdade processual, quer dizer, implicitamente, que a Verdade tem sua essência na Relação Material, pois que esta não visa à determinação da subjetividade, e sim a ontologia do Direito.

PROPOSIÇÃO II

Frente ao movimento do pensar jurídico, a Relação Processual é a transcendência que exclui qualquer procedimento sólido da passagem do Direito Processual ao Direito Material, por carência do Salto Qualitativo tanto em sua adequação metodológica quanto em sua construção epistemológica.

PROPOSIÇÃO III

O Direito Material tem (desde o início das confrontações arroladas na Petição Inicial) de defrontar-se com o Direito Processual que se apresenta como algo externo, autônomo, separado e burocrático; o que pode levar (por sublimações sucessivas) ao vácuo jurídico o andamento conclusivo do Processo (por Preclusão, Prescrição etc., inclusive, por Derrogação etc.).

Dizem (processualistas de um lado, e civilista ou penalista de outro) coisas “diferentes” sobre a mesma lide, (seja esta pendente ou temerária etc.) e ambas exigem atendimento a suas pretensões de Direito do Direito (em sua positividade ou em sua negatividade). Mas, como cego em tiroteio, a Relação Processual tende a reduzir a Relação Material a um caso particular, menor, da posição processualista; por esta razão na prática acontece que, parafraseando Dínio de Santis Garcia, “das decisões proferidas no processo em Primeira Instância (CPC: Art. 522) cabem Agravos de Instrumentos; da Sentença (CPC: Art. 464) cabem Embargos de Declaração para o próprio Juiz; julgados os Embargos de Declaração, se interpostos, (CPC: 513) da Sentença cabe apelação para a instância superior; a parte que não apelou (CPC: Art. 500) pode oferecer Recurso Adesivo” (GARCIA, 1996); e assim por diante, ad nauseam, em “segunda”, “terceira”, “quarta” instâncias, e, durante décadas a prestação jurisdicional devida pode ser negada, não se realizar, ou ficar ao “Deus dará”. E assim, no Brasil, o Direito destina-se, como diria James Joyce, a ser “um bom sistema para criminosos”. Em outras palavras, verifica-se a realização de uma desvalorização da razão judicante através de um enxurrada de recursos simplesmente protelatórios que, inexoravelmente, cheira a impunidade. Neste sentido, encontramos na CF: Art. 5º, XXXVI: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, no entanto, não importa se em Primeira Instância o direito tenha sido adquirido de forma justa, o ato jurídico tenha sido perfeito, e a coisa tenha sido julgada com competência e segundo a lei, o que se verifica, de fato, é o desprestígio do Juiz de Primeiro Grau (e dos Tribunais locais) diante do despótico império do Direito de Defesa etc. etc., e o Processo sofre uma tremenda mutação que minimiza ou, pior, anula e nega qualquer pretensão de Justiça. Mutação que transforma (como a Gregor Samsa, personagem de “A metamorfose”, de Franz Kafka) o Juiz em “barata”, ou seja, em uma figura triste, exangue, pálida, navegando embarcado de carona na legitimidade e na efetivação de um Processo, no qual declarou “a retidão fantástica” de uma Sentença pousada sobre os Fatos Jurídicos que flutuam a mercê dos fluxos aleatórios, porque casuísticos, dos direitos e deveres das partes no rio poluído da Vida Social a mercê de um Direito Processual “ecológico” que não se processa... E a coisa é mesmo paradoxal! Mas me parece não haver dúvida entre os doutrinadores sobre a definição de jurisdição que alcança os Juízes de Primeiro Grau e Tribunais locais. E a todos os outros, igualmente. Na definição de Arruda Alvim, Jurisdição, “é a função que cabe ao Judiciário de dizer o direito no processo de conhecimento e, quando necessário, de realizá-lo coativamente no processo de execução” (ALVIM, 2003). Sendo, portanto, paradoxalmente irrelevante a pessoa física do magistrado ou o grau de sua jurisdição, pois não são a estas que se dirige o postulante, mas sim ao órgão que encarna as funções judicantes. Mas é o que por si só, paradoxalmente, torna possível a existência dos Recursos Processuais protelatórios. Na lição de Júlio Fabbrini Maribete, a jurisdição é una e composta por: Notio (Conhecimento); Vocatio (Chamamento); Coertio (Coerção); Judicium (Julgamento) e Executio (Execução) (MARIBETE, 1997). E o que impede um Magistrado de julgar todas as causas interpostas perante o Judiciário (sejam criminais, cíveis, etc.), não é a jurisdição, mas sim a Competência, que se apresenta como um limite à função jurisdicional. E ninguém parece discordar de Leonardo Greco: “a função jurisdicional não se resume a solucionar litígios reais ou potenciais. Também tutela interesses dos particulares, ainda que não haja litígio” (GRECO, 2003). Assim temos que, originariamente, a jurisdição dos Juízes e dos Tribunais locais, (tal como os outros Tribunais Estaduais e Federais.), ou tem seu alcance e seu limite estabelecidos no Art. 1º e no Art. 2º do CPC, em que o legislador diz, respectivamente, que: 1)- “A jurisdição civil, contenciosa ou voluntária, é exercida pelos juízes, em todo o território nacional”, e, 2)- “Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional se não quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais”. E assim, entre os Princípios Informadores da Jurisdição, temos, entre outros: (1) a Investidura, [somente o juiz togado está investido do poder jurisdicional, (exceções previstas: no Art. 7º da Lei 9.099/95 e na Lei 9.307/96)]; (2) a Inafastabilidade, (CF: Art. 5º, XXXV; “Nulla puena sine judicio”, também denominado “Acesso à Justiça”); (3) a Inércia, (CPC: Art. 2º); (4) o Juiz Natural, (CF: Art. 5º, XXXVII); (5) Etc., etc. Ora, sabemos ainda que, para começar, já que em Primeiro Grau não se realiza o julgamento da lide sem a garantia de Ampla Defesa, ou seja, ninguém desconhece que, na doutrina de Cândido Rangel Dinamarco, “ao consignar a garantia de ampla defesa, a Constituição Federal assegura a ambas as partes de todo processo a possibilidade de sustentar suas razões e formular demandas ao longo do procedimento, segundo a lei” (DINAMARCO, 2001). No mais, o Princípio de Legalidade configura-se em tríplice determinação: 1º)- em Princípio Constitucional (CF: Art. 5º, XXXIX); 2º)- em norma de Direito Penal (CP: Art. 1º); e 3º)- em Cláusula Pétrea (CF: Art. 60, § IV), pois se trata de Direito individual. Portanto, por sua tríplice determinação legal e por sua importância no Ordenamento Jurídico, não há como o juiz de 1º Grau não conhecê-lo, ou seja, ninguém será julgado sem o Devido Processo Legal (sem a existência de um processo adequado, com contraditório, ampla defesa e igualdade processual), por mais que isso desagrade aos interesses da defesa do réu de afastar seu cliente do gume afiado da espada da Justiça. A questão é: por que e onde começa tanto desrespeito e leviandade em relação à decisão do juiz de Primeira Instância? Abre-se, aqui, ali, lá acolá e age o Paradoxo de Tschirnhaus, por exemplo, se houver quem entenda que negar o Efeito Ativo ao Agravo seria negar o espírito da reforma processual necessária à eficácia da prestação jurisdiciona, mas, por outro lado, verifica-se que, nas palavras de J.J. Calmon de Passos:

A pretexto de se afastar a admissibilidade de MS contra ato judicial (que heresia, acreditar-se que um juiz pode incidir em ilegalidade ou abuso de poder!) permitiu-se a recorribilidade de tudo, com atribuição de um poder excessivo aos Tribunais e aos Relatores, com o que desmoralizou e desqualificou ainda mais a magistratura do Primeiro Grau, sem esquecer a construção hermenêutica “progressista” que emprestou ao Agravo (Lei 8.950, de 13/12/1994) mais um efeito – o Efeito Ativo. A história secreta das liminares em Agravo e do Efeito Ativo que gestaram adulterinamente é algo a merecer uma narrativa à parte. Eliminar recurso de interlocutórias, (CPC: Art. 162, § 2º) que seria o verdadeiro avanço, disso jamais se cogitou. Porque solucionar esse problema exigiria rever-se toda a formação e investidura dos juízes do primeiro grau e a institucionalização de meios de controle da correção de seu procedimento (PASSOS, 1999).

O fato, insofismável, é que toda doutrina empalidece em face de uma fúria irracional de recursos e mais recursos protelatórios que apenas enfraquece ou anula o Direito das partes, com exceção da que busca a impunidade para si. E como conseqüência da mutação do Processo e do Juiz, apresenta-se a excrescência, por exemplo, das seguintes proposições se tornarem “doutrinárias” e defendidas por muitos bons processualistas:

PROPOSIÇÃO

“A existência de uma situação de Direito Material ou mesmo a afirmação da existência de uma situação de Direito Material não constituem pressupostos para a instauração e para a existência de um Processo”.

Segue em conseqüência que:

COROLÁRIO

“A sentença judicial mais constitui do que se declaram direitos, de modo a tirar a força de si mesmo e não de qualquer disposição material”.

Proposições que, me parece, implicariam em eliminar o valor heurístico da coisa–a-ser-julgada e da Coisa Julgada toda a qualquer garantia como também, liberar o juiz de sua adstrição ao pedido, e, ainda, submeter, nas palavras de Calmon de Passos, “o réu ao vexame de ser compelido a despender atividade e recursos, com desfalque patrimonial, sem nem ao menos se ter certificado com firmeza o seu dever de fazer ou não fazer aquilo a que é compelido sem remissão e sem que o beneficiado preste caução para garantia do ressarcimento dos danos que a pressa do autor e a inconsciência do magistrado possam ter determinado” (PASSOS, 1999). O estranho enigma (verdadeiras aporias hermenêuticas!) é: como que se chega a formular tais equívocos? Parece-me que o que permite a sua formulação seja uma interpretação do que estabelece o CPC: Art. 7º, in verbis: “Toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos, tem capacidade de entrar em juízo”. Mas não basta “achar-se”! Se bastasse “achar-se” (quer dizer, não encontrar-se de Fato) no (ou diante do) exercício dos seus Direitos, teríamos como pressuposto que a crença (Degenkolb etc.) em si e para si a tornaria apta... E o qüiproquó estaria formado. Sabemos que é preciso a certeza, e a materialidade do Direito! Leibniz diria:

83. Um direito que não tenha o efeito de direito é nulo.

84. Um ato, que não tenha o efeito de um ato, é inválido.

85. Aquilo que tem o efeito de um direito, mas não o de seu exercício, é inútil.

86. É juridicamente impossível aquilo que não possa ter por existência o efeito de um direito.

87. Torna-se vicioso tudo o que, por combinação e aposição a outra coisa, perde o efeito de um direito (LEIBNIZ, 2003).

Ora, sabemos que no Processo Civil, o procedimento ordinário mais abrangente aponta para os requisitos da Petição Inicial, e estão contidos no CPC: Art. 282. E nele podemos ver e destacar alguns dos requisitos que revelam a capacidade de uma pessoa entrar em Juízo! Por exemplo, no item “III – o fato e os fundamentos jurídicos do pedido”. O que é óbvio; todo direito promana de um fato (ex facto omne jus oritur), portanto, é da maior significação para o Requerente que a narração do fato seja metódica, clara, precisa, proba, concisa, comedida, completa, congruente ou consentânea com a Natureza da Causa. Um descuido maior que a torne infundada pode resultar na inaptidão da Petição Inicial (CPC: Art. 255, I e Parágrafo Único), ou na cominação prevista (CPC: Art. 284, Parágrafo Único) etc. Outro exemplo, no item “IV – o pedido com suas especificações”, (tal qual dispõe o CPC: Art. 286), ou seja, que o pedido deve ser certo (ou determinado). Em outras palavras, expressar bem o que se pretende, tanto qualitativa quanto quantitativamente (CPC: Art. 258, – reafirmado no Art. 282, e Art. 259). E finalmente, outro exemplo, no item “VI – as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados”. Mais do que evidente, pois que a finalidade é garantir o Contraditório, fazer com que o réu saiba (para que não seja transformado em vítima), a priori, quais os meios de que se servirá o autor, de forma que possa preparar, adequadamente, sua defesa. E mais, o CPC: Art. 283 determina que a Petição Inicial seja instruída com os documentos indispensáveis à propositura da Ação, ou seja, aqueles inerentes à própria pretensão do autor. Em resumo, não creio ser preciso evidenciar mais outros requisitos que devem constituir a Petição Inicial, para poder concluir que uma “situação de Direito Material” seja imprescindível “para a instauração e para a existência de um Processo”, pois que existe (sendo estrutura do Direito), mesmo não sendo explicitada, em qualquer Relação Jurídica, (seja Material ou Processual). No mais, sabemos que o Juiz não visa ou objetiva, simplesmente, sentenciar o Réu; o Promotor, condenar; o Advogado (de defesa), absolver; o Estado, punir... E que todos, no curso de um Processo, buscam (ou deveriam) é garantir e realizar o mais amplo “Acesso à Justiça”, o mais integro “Devido Processo Legal”, e promover e preservar a maior “Segurança Jurídica” etc. a todos os jurisdicionados, e, principalmente a Sociedade. Tudo o mais deriva de ou integra-se a tais “garantias” e “realizações”, até a entrega, ao titular, do devido Direito Material tutelado pelo Estado. Ora, o Direito Material, manifesta-se em uma das seguintes situações na vida de cada um de nós:

a) entrega-nos algum direito; ou,

b) retira-nos algum direito (que já possuímos); ou

c) modifica algum direito (que também já possuímos), transformando-o.

E todos desejam crer que possam obter algum Direito na “crença” de tê-los... Em outras palavras, o Processo é, simplesmente, a consolidação histórica de um complexo de Normas e Princípios instrumentais que se constituem em método de trabalho a ser realizado no curso de uma Ação. Tenho dito, de um lado, com muita Boa-Vontade que é o Direito Processual a Metodologia Científica de realização das determinações administrativas da Justiça Processual (das possibilidades, das condições e das responsabilidades de julgar), ou a Didática Magna de explanação instrumental (fundamentalmente de racionalidade burocrática) do Direito das partes, e, nas duas definições, não pode dobrar-se simplesmente “a crença” de titular, portanto, consolida-se como exercício conjugado (1) da Jurisdição pelo Estado-Juiz, (2) da Ação pelo Demandante e (3) da Defesa pelo Demandado, e não pode fazer letra morta de suas determinações ontológicas, genealógicas e epistemológicas. Somente assim, (com a autoconsistência e a consolidação do Direito), o objeto da necessidade ultrapassa a utilidade: a ideia de exterioridade é acolhida na interioridade do indivíduo como reconhecimento do Mundo, dos Objetos, dos Fatos, dos Outros e realiza-se no Trabalho (Hegel, Marx etc.) e na Boa-Vontade (Kant) etc. Nestes termos, a individualidade do Sujeito de Direito não é feita do que a distingue dos outros, mas de sua referência a si (na igualdade de todos perante a lei) que a distingue de toda individualidade dada. Em outras palavras, a Justiça Econômica permite ao Homem abrir-se para a exterioridade, ou seja, o problema da relação entre o eu e a totalidade resume-se em descrever as condições morais do pensamento, e que elas se realizam na obra social e econômica da Justiça. E, neste sentido, é a consolidação do movimento da Justiça realizado pelo Direito Material, ou, no ensinamento de Antônio Carlos Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco,

“é o corpo de Normas que disciplinam as Relações Jurídicas referentes a bens e utilidade da vida (Direito Civil, Penal, Administrativo, Comercial, Tributário etc.)”. (GRINOV ER; DINAMARCO, CINTRA, 1994).

Mas, por outro lado, com muita Má-Vontade, tenho dito, por ironia, que o Direito Processual é a polidez da Justiça. Mas não só isso! Tenho dito que o Direito Processual, (parafraseando algo do verbete “Polidez” do “Pequeno tratado das grandes virtudes” de André Comte-Sponville), é o Direito puramente formal; Direito de etiqueta; Direito de aparato... E que o Direito Processual trabalha sobre a forma e deve ocultar alguma coisa, mas o quê? Deve evitar certo resultado, mas qual? Sabemos que o Direito Processual é um artifício, e desconfiamos dos artifícios; é um enfeite, e desconfiamos dos enfeites... E o processo do “Mensalão” nos dá a certeza disso em todos os seus desdobramentos: que o Direito Processual é a aparência da Justiça, mas que não vejo como a justiça aparente possa contrastar com a ausência de Justiça... (Cf. COMTE-SPONVILLE, 2009). Cadeia apenas? Então, cadeia já! E assim, com efeito, em uma Sociedade capitalista, cheia de conflitos inconciliáveis de classes (Marx), de interesses divergentes e opostos (muitos até mesmo inconciliáveis), mas, convergindo em um conflito mudo (de Paz) ou declarado (de Guerra) de Direitos (situados além do Bem e do Mal), em que uma situação (de afirmação ou de negação) de Direito Material pressupõem a materialização de um Sujeito de Direito, e, que, se houver dois (ou mais) Sujeitos de Direitos em antagonismo diante de uma mesma pretensão (falsa ou verdadeira), constituem a condição [se inconciliável, (de inimizade), ou conciliável, (de amizade)] pressuposta para a Essência de um Direito Processual, que, se atualizada, [através da iniciativa de uma Ação (Petição Inicial)], implica na existência de um Processo. Com efeito, a Existência é a Essência atualizada, ou seja, a Essência é a Potência da Existência, assim como a Existência é a Essência realizada em Ato. Consequentemente, é a Existência (e não a Essência) de uma situação afirmativa real de Direito Material (ou mesmo, a afirmação da Existência de uma situação de Direito Material negado) o que constitui o verdadeiro pressuposto para a instauração e para a existência de um Processo. Portanto, a proposição e o corolário acima são equivocados, senão falsos. A começar pela concepção doutrinária de que a Petição Inicial é a peça mais importante do Processo, e a própria Sentença deve amoldar-se ao seu conteúdo. Mesmo porque, conforme o que estabelece a Constituição Federal, Art. 5º, “II – Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, ou seja, Juiz (por sua parte) não poderá fugir de seu Dever, e deve aplicar a lei. Neste sentido, sem dúvida, cabe o Juiz, exclusivamente, “declarar direitos” de acordo com a LICC: Art. 4º, e do CPC: Arts. 126, 127 e 335, etc., mas não, simplesmente, de acordo com o seu livre-arbítrio, portanto, a Sentença é fundamentada de modo a não tirar a sua força de si mesmo, e, sim, de uma disposição material do Direito que se constitui, (na conclusão do Processo), na situação sentenciada da Relação do Direito Material existente ou não, com a causa pretendi. Temos, então, as seguintes proposições:

PROPOSIÇÃO IV

Nem o Objeto Material, nem o Objeto Processual, in abstracto, constituem em si ou para si a visualização do Direito requerido. Ambos exigem, o primeiro, um Sujeito de Direito, e, o segundo, Sujeito(s) de Direito(s) em oposição (mútua ou compartilhada) a Outro(s).   

PROPOSIÇÃO V

 Uma coisa é o Direito Material, outra é o Direito Processual. A aproximação (ou coincidência) dos dois depende da aproximação (ou coincidência) do Objeto Material do Objeto Processual como possibilidade real (ou subjetiva) da Ação.

PROPOSIÇÃO VI

Uma coisa é a aproximação (ou coincidência) do Objeto Material do Objeto Processual do Direito requerido; outra é a aproximação (ou coincidência) das Relações Materiais das Relações Processuais de um Sujeito de Direito (ou de um Sujeito Processual) em relação a Outro.

PROPOSIÇÃO VII

Toda Relação Processual é polar: de um lado, a resistência ao Direito; de outro, a resistência de Direito. O antagonismo entre ambos constitui o Processo. A primeira constitui o Direito de Ação; a segunda, a Obrigação de Contestação.

Com efeito, onde pretendo chegar? “Decifra-me ou te devoro”, é o enigma da Esfinge. Limito-me por enquanto, en passant, a registrar a problemática ignorada da “crise em Justiça”: o Paradoxo de Tschirnhaus... Neste sentido, de fato, o livro, “Direito e Democracia: entre a faticidade e a validade”, de Jürgen Habermas, publicado no Brasil pela Tempo Brasileiro, em 1997, na tradução de Flávio Beno Siebeneichler (da Universidade Gama Filho), inegavelmente, como nota o tradutor, “constitui sem dúvida um dos momentos mais interessantes de seus exercícios de razão comunicativa”. O livro realmente e valioso! Mas uma observação de Habermas, na primeira linha do Prefácio, imediatamente me intrigou: “Na Alemanha, a filosofia do direito não é mais tarefa exclusiva dos filósofos”. Não? Estranhei. De quem mais, então? Perguntei-me perplexo. Uma anotação de Gramsci imediatamente ocorreu-me e a transformei em indagação: “quem senão um filósofo, mais poderia expressar “a unidade do espírito humano, isto é, a unidade da história e da natureza”? Algumas linha depois, Habermas esclarece o fenômeno, (atribuindo a percepção a W. Hassener), ao observar que “o fato de a filosofia do direito – quando ainda busca o contato com a realidade social – ter emigrado para as faculdades de direito é bastante sugestivo” (HABERMAS, 1997). Quer dizer, eu deveria ter deixado Habermas “molhar o bico” – Na Alemanha, era tarefa da filosofia acabar com a legalidade e a legitimidade de Nuremberg... Era prática! Mas, desde então, tenho me perguntado, se, no Brasil, não se foge da tarefa de acabar com a herança legal, ou seja, com a legalidade e a legitimidade das leis dos “anos de chumbo”, e, portanto, por um lado, se a tarefa da Filosofia, nos Departamentos de Direito, não tem implicado em conduzir os estudantes de Direito a uma fuga para além da pura imediatividade das Normas e reconhecer a dimensão Metafísica do Direito e do Processo? E, por outro lado, se a dimensão Metafísica do Direito e do Processo expressariam alguma coisa Objetiva e não simplesmente a “crença” (ou a subjetividade) do autor (como na doutrina abstratista de Dagenkold, situando-se para além duma alegação de Direito Material) em titularizar-se Sujeito de Direitos? O que por si só poderia evidenciar, na conclusão de Ricardo Adriano Massara Brasileiro, “que as interações entre a Relação Jurídica Processual e a Relação Jurídica Substancial, cuja diferenciação constituiu a base para a autonomização das ditas “ciências processuais”, não estão ainda definitivamente resolvidas” (BRASILEIRO, s/d). E o fato é que põe em movimento o Paradoxo de Tschirnhaus, ou seja, a questão de que a “crença”, como perspectiva de fundamentação abstrata que abre o comportamento jurídico da Ação, seria capaz de antecipar os limites e as possibilidades das Partes em que se move a interrogação pela verdade processual do Direito Subjetivo ou mesmo da aplicabilidade do Direito Objetivo? A questão é: onde isso pode nos levar? Creio que a uma terrível confusão Processual, e numa crise o Poder judiciário por “inexistir” o Pedido, quer dizer, a “crença” não o faz existir objetivamente, concretamente, e o Direito é buscado, a priori, a partir do nada que constitui os Recursos Processuais em exercícios de transcendência e desmaterialização (e quantas vezes indevida?) do Direito Objetivo (justamente o que pode dar origem a figura esdrúxula do juiz-legislador!) o transformando em uma obra de arte moderna, mas não em Direito, pois o Direito há muito tratou de escafeder-se! Podemos então como os renomados processualistas brasileiros, dizer que:

“No atual estágio de conhecimentos científicos sobre o Direito, é predominante o entendimento de que não há sociedade sem direito: Ubi societas ibi jus” [...] Indaga-se desde logo, portanto, qual a causa dessa correlação entre sociedade e Direito. E a resposta está na função que o Direito exerce na sociedade: a função ordenadora, isto é, de coordenação dos interesses que se manifestam na via social, de modo a organizar a coordenação entre pessoas e compor conflitos que se verificam entre seus membros” (GRINOVER, DINAMARCO, CINTRA, 1994).

O que se verifica na citação supra, é certo, é que “a doutrina jurídica coloca [...] o primado do Direito”, como observa Vitor Bartoletti Sartori, em “Lukács e a crítica ontológica do direito”, mas não que “do Direito depende a sociedade”, o que retiraria a historicidade, não do Direito (como pensa Bartoletti Sartori), mas da própria Sociedade (que passaria a subordinar-se a historicidade do poder estabelecido pelo Direito, e teria sua historicidade derivada inexplicavelmente da luta contra o Direito ou de conformismo com o Direito). E tudo aconteceria por inversão: muda o Direito, mutatis mutandis, muda a Sociedade... Ditadura jurídica? Dá o que pensar! Seria possível? Ora, o Direito estuda as relações sociais (pelo menos elas são, até onde sei, o seu suposto objeto); e a normatização o que o (ao estudo) conclui. É o que se pressupõem em tese ou em hipótese. De qualquer forma, Teoria e Prática jurídica são o duplo que se enroscam e determinam-se como anéis de DNA. Vem-nos, então, a questão epistemológica: as relações sociais devem obedecer à conduta determinada por sua própria normatização e que lhe é, digamos, imanente e teleológica? Caso queiram (Homens e Mulheres em sociedade) garantir a subsistência das mesmas, a resposta aparentemente é sim. Questão de sobrevivência! Quer dizer, as relações sociais criam o Direito e dependem da autoconsistencia de suas Normas para manter-se... – O determinado determina. Mas seria ele também imóvel, imutável, eterno em sua autoconsistência? O fato é que se pode anunciar o “fim da história”, mas o problema é que a história não pára, não tem fim! O Direito sim, pára, tem um fim... Mas o seu fim não é acabar-se (qual seria?), é outro, pois que a sua gênese epistemológica e desenvolvimento anexam-se, necessariamente, a história e ao destino de uma dada Sociedade histórica e não acontece com autonomia. Mesmo porque, uma relação social depende de si mesma em si, como depende da Norma para si ao constituir o Direito em si e para si... Essa é a dialética histórica que movimenta a Ontologia do Direito, estabelecendo-o como o ente que emana do das relações sociais. Do outro lado, a Dogmática do Direito, é o reconhecimento da Norma como a vida em si do fenômeno jurídico. Com efeito, tanto a Ontologia, quanto a Dogmática, diante de um Processo encontra sua justificação mais particular no conhecimento e no interesse de determinado Sujeito de Direito, e só podem encontrar a sua verdadeira historicidade no cotidiano, portanto, se simplesmente se transcende e se desmaterializa o Direito Objetivo, a coisa estará perdida, desmancha-se no ar... O perigo ronda a cada Processo, assombra a cada Instância... E o risco real passa a existir e assombrar, como um sintoma grave de doença, quando a Primeira Instância, – parafraseio o Desembargador Dínio de Santis Garcia, – transforma-se apenas em “uma ante-sala em que se espera, impacientemente, o momento em que se possa interpor a apelação e, em consequência, levar a causa à Segunda Instância”? (SANTIS, 1996). Então, como as leis processuais poderão satisfazer as necessidades do Século XXI sem combater o tabu ou fetichismo da obrigatoriedade, (não previsto forçosamente em nossa Constituição Federal), do duplo grau de jurisdição? O Ministro Domingos Franciulli Neto, tem absolutamente razão: “nada está a empecer a revisão constitucional da matéria” (FRANCIULLI NETO, 2004). Então, por que ela retarda? A demora de revisão constitucional torna-se inexplicável se considerarmos que, depois de uma pesquisa estatística rigorosa, num universo de 500 feitos que subiram aos Tribunais de Justiça e Alçada do Estado de São Paulo, o Ministro Franciulli Neto concluiu que, descontados os decimais: “foi negado provimento a 72% dos recursos; 16% foram providos em parte (não raro, para modificações secundárias, tais como redimensionamento da verba advocatícia, dos salários periciais, temo inicial da correção monetária ou dos juros); e apenas 12% acolhidos in totum, incluídas as sentenças desconstituídas por questões exclusivamente processuais”. Realmente, é muito incomodo para pouca coisa, muito barulho por nada! Mas o excelso Ministro continua sua análise, com muita ponderação, revelando-nos ainda mais os dados desanimadores de sua pesquisa, e a conclusão de sua radiografia da “Crise do judiciário”. Diz ele: “Determinadas ações – a saber, ações e/ou execuções de cobrança de despesas condominiais da propriedade horizontal; as oriundas de contrato de alienação fiduciária em garantia; as concernentes a prestação de serviços, salvo de natureza pública; as de comodatos; as atinentes a arrendamento mercantil, mobiliário ou imobiliário; as relativas a locações de bem móvel ou imóvel; e as de reparação de danos, exclusivamente materiais causados em acidente de veículos terrestres, – pesquisadas separadamente, acusaram um índice de manutenção em torno de 95%”. E conclui, implacavelmente:

“Parece de toda a conveniência a elaboração de pesquisa mais aprofundada e em estrita consonância com os parâmetros técnicos hodiernos. Se a conclusão, depois de exaustivas análises, for semelhante à acima noticiada, valerá à pena a manutenção do atual duplo (ou triplo, quando não quádruplo) grau de jurisdição para todos os feitos, indiscriminadamente? (FRANCIULLI NETO, 2004).

A conclusão será sempre a mesma! Então, por que a revisão Constitucional não acontece no Congresso Nacional brasileiro? Mas, a questão também é: têm o atual Congresso Nacional competência e poderes constituintes? E mais, possuem representatividade para tal? E acima de tudo: tem moral para isso?

2. ATUALIZAÇÃO DAS PERSPECTIVAS HISTÓRICAS

O BRASIL, COMO ESTADO SOBERANO, compõe-se de algumas ideias históricas estruturais que se constituem em seus vários aspectos fundamentais. Neste sentido, no Art. 1º, Caput, da Constituição de 1988, diz que o Brasil é uma “República Federativa”, e, em seu Parágrafo único, institui o “Regime Representativo”, no Art. 2º, reconhece a tripartição do Poder em “Legislativo Executivo e Judiciário”, e, no Art. 76, determina que o Poder Executivo seja exercido pelo “Presidente da República”, e, assim, sucessivamente, revela-se vários aspectos históricos universais que consolidam a herança do Estado brasileiro. – O “Regime Federativo” e o “Presidencialismo” tomaram corpo nos EUA de 1787. O primeiro tem rudimentos na Antiguidade, e, o segundo inspiração na Monarquia britânica imperialista. O “Regime Representativo”, também vem da Inglaterra, da Inglaterra feudal do Séc. XIII, quando o “Grande Conselho” do monarca, em 1524 foi desmembrado e originou Duas Câmaras com a competência de elaborar “Leis” e “Representar” a massa governada – a elitista Casa dos Lordes e a inferior Casa dos Comuns. E a moderna organização do Estado, ou dos “Três Poderes” (Legislativo, Executivo e Judiciário), teorizada por Montesquieu em “O Espírito das Leis”, em 1748, viu-se consagrada em todas as posteriores Constituições e estabelecida como poderes de Estado com “diferenças substanciais” entre si (algumas delas verdadeiras aporias) em relação a um todo indiviso: o “Povo”. E que, (muitas vezes Hegel o repete), deve ser concebido como uma “individualidade” ou uma “indivisibilidade”, de tal modo que “cada um dos poderes seja em si mesmo a totalidade”. Preleciona então Hegel que:

“273 – Divide-se o Estado político nas seguintes diferenças substanciais: a) – capacidade para definir e estabelecer o universal – poder legislativo; b) – integração no geral dos domínios particulares e dos casos individuais – poder de governo; c) – a subjetividade como decisão suprema na vontade – poder do príncipe...”. (HEGEL, 1986).

Mas, coisa intrigante, o que poderia justificar tantas bobagens, ditas posteriormente, e repetidas à exaustão até hoje, Hegel diria “todo este palavreado inútil”, ou seja, esta série de proposições úteis “ao mundo das idéias mais vazias”, que tem tornado repugnantes palavras como “Constituição”, “Liberdade” “Justiça” etc., e, ainda, estranhava Hegel, de “as pessoas não se envergonharem de falar em Constituição política”? Que dizer, então, de “poder soberano”? De “representatividade política”? Etc... Influenciado por Hegel, eu diria, o desconhecimento de que os Três Poderes estabelecidos por Montesquieu são na verdade uma combinatória complexa e traiçoeira da experiência histórica de três formas de Governo distintas: Monárquico (o poder de um), Aristocrático (o Poder de alguns), Democrático (o Poder de muitos ou de todos), que, transitando no Estado Moderno, segundo Hegel, de “diferenças” a “momentos” integradores deixam de ser uma distinção quantitativa (ou inerte) para adquirir, segundo Hegel, uma função qualitativa e conceitual. E assim, numa síntese dialética complexa e conciliatória o Estado Moderno possui todas as determinações que existem num “todo organizado: Soberano, Governo, Justiça, Autoridade, Ordem” etc. Mas, se nos fundamentamos numa observação de Hegel, podemos dizer que dos Três Poderes, a Monarquia é o mais difícil para a reflexão, e, sem dúvida, o mais importante para o Estado... Por quê? Sem o Monarca (nos Estados Modernos, sem o Executivo) a política deixaria de se constituir (por exemplo, a partir de Maquiavel), uma Ciência para apenas refletir “um jogo de interesses particulares, um conflito de egoísmos, uma luta de classes aberta” e vazia... O grande perigo, é bom frisar, é o Executivo se tornar (buscando atender interesses políticos particulares) uma maquina política partidária monárquica, transformando assim o Presidencialismo numa “máscara vazia que ficou de um rosto a que retiraram a idéia substancial que a Monarquia representa” e que, por isso, qualquer “Lula da Silva” pode usar. Assim teríamos, digamos, as seguintes equações políticas das transformações dialéticas das quantidades em qualidades políticas:

Poder Monárquico = Executivo;

Poder Democrático = Legislativo;

Poder Aristocrático = Judiciário.

Em resumo, diz o professor Orlando Vitorino, no Estado Moderno: “no todo indiviso do Estado, combinam-se Três Poderes, um dos quais é o Poder Democrático, outro o Aristocrático e outro o Monárquico”. E o que é interessante é observar que:

“Esta combinação fora preconizada por Aristóteles que lhe deu a designação de poliarquia, como sendo a melhor de todas as Constituições possíveis. Mas Hegel procede como se ignorasse a concepção aristotélica, o que não deixa de ser estranho pois se trata de uma concepção que, já anunciada em Platão, permanece em todo pensamento político helênico, adquire, segundo Tito Lívio, a forma de constituição na República Romana, é exaltada por Maquiavel, e está latente no próprio Montesquieu” (VITORINO, 1986, in, HEGEL, 1986 – “Prefácio”).

Realmente é estranho! Com efeito, o que consiste as “bobagens”, o “palavreado inútil”, “o mundo de idéias vazias” que nos evangeliza até nos dobrarmos tomados por uma exaustão de nossa resistência intelectual e filosófica empenhadas num trabalho de Sísifo de querer fazer cegos ver? Elas começam com a própria definição de Democracia! Por exemplo, o Oxford English Dictionary a define nos seguintes termos: “A forma de governo em que o poder soberano reside no povo como um todo e é exercido diretamente por ele [o que seria, como Max Weber apontou, “um tipo de governo”] ou por autoridades escolhidas por ele” [o que seria, segundo Weber, “uma forma de legitimação de poder”]. Tudo bem! Digamos ser a Democracia uma forma de Governo e de Poder. Mas a definição do Oxford English Dictionary, portanto, recai numa falha típica do vocabulário democrático: identificar democracia representativa com governo do Povo. O problema é que (em seu começo), como observa com agudez Paul Hirst, “a democracia é um bem inquestionável e a democracia representativa é identificada como democracia”, e isso significa que tal identificação serve de fato apenas “para legitimar o grande Governo moderno e livrá-lo de praticamente todo controle” (HIRST, 1992). E a coisa se agrava, fica feia, gerando mais e mais preocupações porque, temos que considerar que, de um lado, a “vitória eleitoral permite silenciar outras exigências ligadas à disputa política, à pressão pública e à obrigação de prestar contas” etc., e por outro lado, “permite ao Governo ignorar contestações à sua autoridade, as quais podem de fato ser necessárias para que ele se torne mais eficiente e fiscalizável” (Cf. HISRT, 1992). E assim, o risco para a própria democracia consiste em que “tendem a ver as instituições democráticas (ou todas as que se declaram tal) como um fato inquestionável e uma utilidade óbvia, como um valor último ou um fim em si mesmo” (Cf. HIRST, 1992), – quer dizer, um valor nulo e um fim indesejado. E as bobagens continuam a partir da afirmativa de que o “Poder Soberano” de um Estado é o “Povo” como um todo, mas que é exercido (diante da impossibilidade de ser exercido diretamente) por autoridades escolhidas por ele, os famosos “Representantes” [no Legislativo (Senadores e Deputados), no Executivo (o Presidente da República), e no Judiciário (por delegação dos outros dois) Ministros, Desembargadores e Juízes], portanto, dizem, “uma Democracia Representativa”. Mas o que é o Povo? Quem são esses atores históricos? E talvez seja justamente a ausência de percepção real, verdadeira, do seja realmente o Povo que permita definir a atual “Democracia Representativa” exatamente como “governo do Povo, pelo Povo e para o Povo”, como disse Lincoln, em Gettysburg. Neste sentido, o Legislativo (Câmara, Senado e Assembléias), – e da mesma forma o Executivo –, são poderes “Soberanos” porque (1) (teoricamente) expressam o Poder representativo e delegado pelo Povo, e o é (2) legitimamente porque é representativo da vontade do Povo através de eleições gerais convocadas para tal fim. Então, o Parlamento (e/ou as Assembléias) é definido como o corpo legislativo soberano que faz leis que devem assumir a forma de Normas gerais universalmente aplicáveis, que não privilegiam nem prejudicam nenhum cidadão individual ou grupo de cidadãos. Em outras palavras, a vontade soberana do Povo expressa através das Casas Legislativas e de suas leis não infringirão as liberdades fundamentais de nenhum dos cidadãos porque essas leis são universalmente aplicáveis a todos, e o Povo, em seu conjunto não a consentirá em infringir aqueles Direitos inalienáveis que todos possuem como indivíduos. O que quer dizer ainda que o poder de executar e impor a lei deve ser exercido sine ira et studio, não podendo portanto prejudicar as liberdades dos que a acatam. Neste sentido, o Poder Executivo é definido como um aparelho administrativo Soberano para que cumpra e faça cumprir essas leis (respondendo por esta responsabilidade perante o Legislativo ou o Judiciário), e, o Poder Judiciário, o interprete, o aplicador e o guardião da lei. Assim, se o Executivo agir de modo arbitrário ou parcial, será chamado a responder perante o Legislativo e, mesmo, ou também, perante o Judiciário (caso de abuso de poder etc.), ou seja, a Doutrina que obriga o Corpo Executivo a prestar contas ao Legislativo e ao Judiciário é garantia que não haja abuso do Poder Representativo do Governo. Temos, então, dois poderes Soberanos diretamente determinados pelo Povo (ou seja, que recebe Poder representativo através de eleições populares): o Legislativo e o Executivo, sendo, o Poder Executivo, paradoxalmente, duplamente autorizado: primeiro, pelo voto popular, e, depois, segundo, por delegação do corpo legislativo, mesmo porque, o poder Executivo nas mãos de um Partido (pela eleição do Presidente) significa a direção do legislativo pelo Governo. O fato é que os partidos são instrumentos de apoio e disciplina, controlados por lideranças, que estão no Governo, e quando não bastam, lança-se mão de coisas como o “Mensalão” etc.. Assim, com efeito, tipicamente as assembléias e o parlamento levam a cabo um programa legislativo proposto pelo Governo, o que amplia os poderes específicos de ação deste último e que, embora moldados por várias forças, incorpora alguns objetivos dos líderes partidários sejam lícitos ou ilícitos, legais ou ilegais, morais ou imorais, públicos ou privados ou particulares... Temos ainda um terceiro Poder Soberano, indiretamente determinado ou derivado (justamente por suas características aristocráticas), o Judiciário, que recebe parte de seu Poder Soberano delegado do Legislativo e parte do Executivo; a algumas funções especiais como a função de interprete e guardião da lei. E o qüiproquó está formado! Neste sentido, Hirst tem absolutamente razão ao identificar as idéias de representação como “arenga banal dos cursos básicos de civismo” e ao dizer que:

“Somente por meio de tais arcaísmos clássicos o governo representativo pode aparecer hoje como um regime democrático, que cumpre adequadamente a vontade do povo. Expressa com essa singeleza, a doutrina pode parecer absurda como descrição de nosso sistema político a qualquer pessoa que tenha um conhecimento mesmo vago de seus modos de funcionamento. Mas, absurda ou não, ela continua sendo o jargão dominante da política moderna. Formulada como acima, a doutrina da democracia representativa envolve graves contradições e afirmações gritantemente inverossímeis quando confrontadas com a realidade da política moderna” (HIRST, 1992).

 É comum fechar-se os olhos para as várias contradições básicas que estão incorporadas na doutrina da Democracia Representativa. Mas nada é mais nefasto para a Democracia quanto o grande ceticismo que tais contradições e afirmações inverossímeis implantaram e que agora existem e se lançam sobre a e contra a efetividade da proteção jurídica no Brasil, principalmente, quando diz respeito à “Liberdade”, à “Igualdade”, à “Dignidade Humana” etc., – (conceitos que se perderam até a significação política-jurídica). Costuma-se pensar que a “Lei” e ‘Liberdade”, ou “Lei” e ‘Igualdade”, ou “Lei” e “Dignidade Humana” etc. são antitéticas. Para o Direito isso é muito grave! Márcio Sotelo Felippe observou com muita propriedade que:

“Quem pensar o Direito hoje tem que pensar em indivíduos livres e iguais. E quem penas em liberdade e igualdade pensa na dignidade dos homens” (FELIPPE, 1996).

E veja que o Paradoxo de Tschirnhaus se torna evidente! A “Lei” se torna uma “infração da liberdade”, como disse Bentham, pois as ‘leis” em geral mandam e proíbem mais do que permitem. Isso é ignorar ou esquecer que a liberdade é relacional, ou seja, a liberdade tem que existir entre (e para) uma multidão de indivíduos, grupos, organizações etc. O que significa que a liberdade são liberdades, isto é, toda liberdade de um agente é definida pela liberdade ou falta de liberdade de outro (ou outros) agente(s). Conseqüentemente, observa Giovanni Sartori, “todo agente encontra o limite de sua liberdade (ou sua falta de liberdade) no Princípio do Dano: não pode ser exercida a ponto de lesar, prejudicar e perturbar os outros (ou os outros)”. Então, para os que opõem “Lei” e “liberdade”, observa Benedetto Croce, para

“aqueles que constroem teorias atacando a Lei podem fazer isso de coração leve por que estão cercados por Leis, são protegidos e mantidos vivos por elas; mas no instante em que todas as leis começassem a se desintegrar, perderiam instantaneamente o gosto pela teorização e pela conversa fiada” (CROCE, 1909, apud, SARTORI, 1994).

É certo! Ora, o bom e velho Montesquieu poderia simplesmente afirmar que somos livres por que estamos submetidos as “leis civis”. Sem dúvida! Mas “Liberdade”, “Igualdade” etc., em última instância, são conteúdos das “Leis”, implícita ou explicitamente são a sua essência, o seu fundamento, a sua verdade, ou seja, parece-me absolutamente claro (coisa que a escola formalista de jurisprudência ignora por completo), a dependência da “Lei” pelo seu conteúdo, e que, por isso, ela não pode e não deve ser reduzida a um problema de forma, e, que, portanto, a sua definição formal deve pressupor (e pressupõe) o Estado Constitucional. E mais, Sartori tem razão, o fato é que não podemos aplicar o termo “Constitucional” a qualquer tipo de organização estatal, e “Lei” a qualquer comando estatal, principalmente se expresso (como acontece atualmente no Brasil), sob a forma político-partidária através de ECs ou de Mps que atentam contra a Soberana Popular, porque feitas através modificações pontuais, conjunturais e casuísticas atendendo, prioritariamente, (senão exclusivamente), o domínio político-partidário de uma “Máquina Política” (atualmente do PT e seus aliados) no Poder Executivo que apenas consolida a certeza de que, parafraseando Joyce, o latrinafáber e o cloacafáber são os senhores do espírito político-jurídico do Brasil e possuem assento no Senado e na Câmara. E se isso é bom, por exemplo, para o PT (para deleite de seus “intelectuais orgânicos” e “juristas”), é muito ruim para o Brasil... E assim, ao lado do governo PT proliferam uma vasta e marginal lixoteratura jurídica, (eminentemente criminológica), acompanhando o fluxo da violência urbana, o “crime de colarinho branco”, “a bandidagem de menores” e o “crescimento dos traficantes de drogas nas favelas do país” etc., e que defende em nome dos Direitos Humanos uma república dos assassinos e passam a inspirar leis ruins e inconseqüentes, e a transformarem infratores em vítimas ou em paladinos da necessidade de mudanças nas “leis” e na “Sociedade”. Neste sentido, as Ciências Sociais, no Brasil, transmuta-se em eufemismo de maternidade terapêutica, hospital e UTI para bandidos, criminosos etc. – A banalidade do mal custa caro, e a conta vem para o Povo! Portanto, concordo com Giovanni Sartori quando ele diz que nosso problema começa exatamente onde a afirmação de Montesquieu termina. E por quê? A resposta colho em Paul Hirst. A saber:

“A elaboração de normas e a ação governamental legalmente sancionadas estão longe de ser universalmente aplicáveis; com muita freqüência, são especificamente dirigidas a grupos definidos, para seu benefício ou prejuízo” (HIRST, 1992).

Sem dúvida! E o que efetivamente se revela é que a representatividade do povo no parlamento, ou seja, no Congresso Nacional (tanto na Câmara quanto no Senado) é nula. E podemos dizer como Hans Kelsen, que “quanto maior é a coletividade estatal, tanto menos o “povo” parece ter condições de exercer imediatamente a atividade realmente criadora da formação da vontade do Estado, tanto mais ele é obrigado, mesmo por razões técnicas, a limitar-se a criar e controlar o verdadeiro aparelho da formação da vontade do Estado” (KELSEN, 1993) através de um órgão colegial (Câmara e/ou Senado) eleito pelo povo com base no sufrágio universal e igualitário, vale dizer, democrático, segundo o princípio da maioria etc. etc. E assim, continua Kelsen, “recorre-se à ficção da representação”, ou seja, “a idéia de que o parlamento é apenas um representante do povo, de que o povo pode exprimir a sua própria vontade apenas no parlamento e através dele, embora no princípio parlamentar, em todas as constituições, vigore exclusivamente a regra de que os deputados não podem receber instruções obrigatórias dos próprios eleitores, o que torna o parlamento, no exercício de suas funções, juridicamente independente do povo” (KELSEN, 1993). Na verdade, o que não se consegue dissimular (e a lei encontra seu fundamento justamente nesta dissimulação) é o golpe não desprezível desferido contra a idéia democrática pelo fato de ser, tanto o Senado quanto a Câmara, um órgão bem diferente do povo (ainda que eleito por ele), e que forma a vontade do Estado em lugar do povo. Consequentemente, as leis (casuísticas, arbitrárias, particulares, ambíguas, contraditórias, ruins) não proporcionam mais as garantias que deveriam proporcionar e que, dizem, proporcionou no passado (particularmente durante a luta contra a autocracia nos fins do Séc. XVIII e início do XIX)... Afinal, que são as “leis civis”? Ou, ainda, em primeiro lugar, o que é a lei? Difícil dizer! Nossa concepção da lei mudou, mudou muito e ainda não somos capazes de saber o quanto mudou; que garantias, efetivamente, ela pode nos proporcionar etc. Então, que dizer? Sartori leciona que “na tradição romana, ius (a palavra latina para lei), ligou-se inextricavelmente, com o passar dos séculos, a iustum (o que é justo), e esta na palavra inglesa, italiana, francesa, portuguesa etc., para Justiça, e, num verdadeiro jogo de cintura lingüístico, sinônimo de “lei” e “direito”. A moldura do movimento lingüístico da transformação da palavra “ius“ para “lei”, e “direito” significou (e ainda significa) que a “lei”, diz Sartori, “não tem sido concebida com uma regra geral qualquer imposta por um soberano (iussum, isto é, comando), mas como aquela regra que encarna e expressa o senso de justiça da comunidade (iustum) (SARTORI, 1994). Em outras palavras, a lei valia como Norma, não uma norma qualquer, mas, uma norma de conteúdo, isto é, “aquela norma que também tem o valor e a qualidade de ser justa”. E esse foi o sentimento geral sobre a natureza da lei até “recentemente”! Infelizmente, não é mais assim, e, no Brasil, nunca foi assim, senão na esfera da doutrina jurídica ou da filosofia. Mas de qualquer forma não na prática político-jurídico ou sócio-econômica. A questão passa então a ser: quem faz a lei? Além disso, quem interpreta a lei?”(SARTORI, 1994). Um rápido folheio na Constituição, e temos a imprecisa resposta: Quem faz a lei? O Legislativo. Quem interpreta a lei? O Judiciário. Ou seja, na prática, verificamos com toda clareza, que a “lei” não é mais uma regra qualificada por um Valor (um ius que é iustum), mas por um interesse político partidário (e ou corporativo), que garanta, entre tantas outras coisas, enriquecimento pessoal, privilégios e impunidades. Com efeito, é imprescindível realizar uma profunda reforma política no CPC e no CPP etc., que hoje permitem todo tipo de ação que possa beneficiar apenas o réu, impedindo ao Juiz de olhar a Sociedade, e, ainda, desrespeitar os mais caros Princípios Constitucionais como, por exemplo, o Princípio da Igualdade que, segundo Norberto Bobbio é o divisor de águas entre a direita e a esquerda. Temos, portanto, como indicou o Desembargador Fausto De Sanctis, em entrevista ao jornal “Le Monde diplomatique/Brasil”, (Ano 5 – Número 50 – Setembro 2011), que devemos, para começar uma consistente reconstrução do sistema de justiça no Brasil, - se o objetivo, realmente, é a realização da Justiça, –  necessariamente por 1) extinguir o foro privilegiado por prerrogativa de função, que tem estimulado e consagrado a impunidade; 2) acabar com a prisão especial para aqueles com diploma, pois isso é mais um privilégio de um grupo que justamente deveria ter uma conduta irrepreensível; 3) tipificar duramente o crime de enriquecimento ilícito; 4) criar ação civil de extinção de domínio, que visa retirar o patrimônio daquele que cometeu ato ilícito; 5) repensar o Habeas Corpus, que hoje é manejado de modo a fraudar o processo legal, de forma a impossibilitar tal atitude; 6) modificar a forma de eleição de Juízes e Conselheiros de Tribunais de Contas, de forma a tornar possível combater a corrupção; 7) legitimar e facilitar radicalmente as técnicas especiais de investigação, com a quebra de sigilos bancário e fiscal, interceptações telefônicas, respaldo as denúncias anônimas e as denúncias anônimas premiadas (porque o delator teme por sua vida) etc.; 8) refletir sobre e alterar o Princípio da Inocência, sem prejudicá-lo, é claro, mas evitar continuar a tratar o réu como vítima, e, sim, tratá-lo como suposto violador da lei; 9) etc., etc. Em outras palavras, as distorções apontadas por De Sanctis, (e outras) que vivenciamos com grande indignação só se tornaram possível porque a idéia de Lei, no Brasil, sempre esteve e efetivamente está na verdade e de fato, por um lado, restrita aos comandos que trazem o selo da vontade de um partido político ou interesse corporativo (e não a vontade do Povo, o Soberano), e, por outro lado, estende-se a qualquer ordem que o Executivo (como poder partidário) imponha (através, por exemplo, das MPs e etc.), então, a “lei” assim definida não pode resolver os nossos problemas, pois se perde na realização caótica do Paradoxo de Tschirhauss... Mesmo porque, como muito bem observou Sartori,

“na concepção formal (que é a que impera no Brasil) a “lei” está aberta a qualquer conteúdo; e uma “lei” sem justiça é “lei” mesmo assim”.

E que, portanto,

“a legislação pode ser cruelmente tirânica e, ainda assim, não apenas ser chamada de legal, mas também respeitada como legítima” (SARTORI, 1994).

Neste sentido, creio, o que o Poder Judiciário, principalmente o STF, como “guardião da constituição”, na expressão de Karl Smith, deveria atentar é que se, preleciona Sartori, “as abordagens analítico-positivistas da jurisprudência moderna não são tranqüilizantes – para aqueles que se preocupam com a liberdade política – devemos acrescentar que o desenvolvimento de fato de nossos sistemas constitucionais o é ainda menos”. E esclarece:

O que os fundadores do “constitucionalismo liberal” (ou constitucionalismo democrático) tinham em mente, em relação ao processo legislativo, era trazer o governo da lei para dentro do próprio Estado, isto é, usando os termos de McIlwain, estender a esfera do iurisdictio para o reino do gubernaculum (governo) (SARTORI, 1994).

Em outras palavras, a Teoria do Garantisme (da constituição inglesa), assim como a do Rechsstaat (em seu primeiro estágio) tinham precisamente isso em mente: vestir o gubernaculum com um manto de iurisdictio, ou seja, sem dúvida o constitucionalismo democrático buscava um governo de políticos que teria de algum modo o mesmo sabor e daria a mesma segurança de um sistema do tipo governo-da-lei. Mas, depois de um período relativamente curto, o constitucionalismo mudou (e continua mais ou menos aceleradamente), passando a identificar a “lei” como “legislação”. Coisa que na época em que Friedrich Carl Von Savigny (principal expoente da Escola Histórica do Direito) publicou (em 1840-49) seu monumental “Sistema de Direito Romano Atual”, essa identificação era inaceitável (Cf. SARTORI, 1994). E como se verifica atualmente no Brasil, mudou de um sistema baseado no governo-da-lei para um sistema centrado, de fato, no governo dos legisladores. E o que é pior, o processo de formulação da “lei” (inclusive as rápidas e irrefletidas ECs que corrompem a Constituição) está ligado à mera vontade partidária no interior dos órgãos legislativos (através de sustentações políticas espúrias feitas por esquemas como os “Mensalões” ou por projetos como o “PAC” – que depois do investimento de aproximadamente mais de R$ 600 bilhões não é possível apresenta nenhuma obra ou benefício que seja para justificar o gasto de tal aporte de capital, que não seja o enriquecimento de membros da “elite” do PT e partidos e empresários aliados). E a “Teoria do comando” da Lei substituiu a idéia comum de Lei, isto é, a idéia de um Processo Legislativo incremental derivado do Costume (a Lex Terrae) passa a ser definido pela descoberta do Poder da Lei nas decisões judiciais. Estamos mais perto agora de uma verdadeira ditadura partidária ou ditadura jurídica do que nunca antes estivemos; de dar inveja, por exemplo, a de 64-84! Mas, sem dúvida, o processo legislativo brasileiro tem o mérito inegável de revelar de forma bruta e irrefutável as desvantagens da concepção legislativa da lei. E o mais absurdo é verificar a ignorância política dos partidos e dos parlamentares brasileiros que, ao receberem o privilégio de representantes do Poder Soberano, o Povo, através de um processo eleitoral extremamente imoral e amoral, regido pelo poder corruptor das máquinas políticas e seus financiadores, julgam receber a incumbência de fabricar as leis [como se o Congresso Nacional se destinasse a ser órgãos técnicos, especializado, portanto, “máquinas desejantes” (Deleuze-Guatarri) e fábricas de leis], e não a função de prevenir que os detentores do Poder Executivo (através de seu partido e representantes eleitos) as mudassem unilateralmente e a seu bel-prazer e/ou utilizasse o Estado para fins ilícitos e particulares. O que significa que confiamos a garantia institucional da liberdade a uma Assembléia de representantes inapropriada e imprópria. A conseqüência de tanta insensatez é a atual deterioração das leis com respeito à sua generalidade, e, conseqüentemente, a proliferação de legislações secionais que transforma a Lei em comando, logo, em “repressão”, em “insegurança jurídica”, em “violência ilegal” etc. Neste sentido, concordo com Friedrich August Von Hayek:

Uma regra geral a que todos obedecem não pressupõe necessariamente, ao contrário de um comando, uma pessoa que a tenha formulado. Também difere de um comando por sua generalidade e abstração... No entanto..., as leis transformam-se gradualmente em comandos à medida que seu conteúdo torna-se específico (HAYEK, 1960, apud, SARTORI, 1994).

Ora falamos comumente em “Poder Executivo”, em “Poder Legislativo”, em “Poder Judiciário”... A palavra “poder” tem a conotação de “dominação, senhorio, superioridade, supremacia, “poder-dever”... Temos que expurgar tal conotação! Com efeito, se pressupormos respeito e fidelidade a Constituição, o problema tem que ser enfrentado dentro do Estado Constitucional, e temos que nos constituir como um Estado Democrático de Direito, e, em primeiro lugar, arranjando o procedimento legislativo de tal maneira que a “forma da lei” implique também “a fidelidade e um controle de seu conteúdo”. Neste sentido, afirma Sartori:

Um grande número de artifícios constitucionais (e políticos) tem como efeito a intenção de criar condições para um processo legislativo onde o ius continue vinculado a iustum, onde a lei continue sendo a lei justa (SARTORI, 1994).

Em tese, é claro! Porque o Legislativo (senadores e deputados) e o Governo dependem para sua formação do eleitorado para serem eleitos, e precisam ser eleitos ou reeleitos porque detentores do poder são restringidos por um papel representativo que lhes impõe uma obrigação, e, cabe-lhes periodicamente, responder por seus atos perante o eleitorado (pelo menos durante o processo eleitoral) para serem empossados ou reempossados. E a partir daí a coisa começa a feder! Conseqüentemente, não damos carta branca àqueles que são eleitos para os cargos, e por isso eles são restringidos por um papel representativo que lhes impõem obrigações que, geralmente, ignoram. E se preocupam apenas em enriquecer impune e ilicitamente! Conseqüência óbvia do fato de que a existência do Rechtsstaat (como sinônimo de “garantismo constitucional”), logo, do Estado baseado na lei constitucional, e que se relaciona como Estado justo, cega por excesso de claridade e produz, simplesmente, um mero e mal formado sistema de Justiça Administrativa (tal como se reduziu no Brasil), e como aconteceu através da jurisprudência analítica (que lembra o nome de John Austim), por um lado, e o positivismo jurídico (do tipo de Hans Kelsen), por outro, ou seja, verdadeiros desastres: deram à lei uma definição puramente formal, isto é, identificando a lei como a forma da lei. Criaram uma monstruosidade jurídica: a forma sem conteúdo (Aristóteles). Uma conseqüência óbvia observa Sartori, complacentemente:

do fato de que a existência do Rechtsstaat parece eliminar a própria possibilidade da lei injusta, e, assim, permite que o problema da lei seja reduzido a um problema de forma, não de conteúdo (SARTORI, 1994).

            Mas, infelizmente, lamenta Sartori, “a escola formalista da jurisprudência”, que, – [no Brasil, liga-se a um processualismo selvagem (que por si só explica o enigma de existir no Brasil “um edifício jurídico inseguro e fácil de ser conquistado”), e, absolutamente sitiado, na expressão cunhada por Luis Fernando Cabeda, pelos “juriscida”] – “ignora por completo essa dependência, isto é, o fato de que a definição formal de lei pressupõe o Estado Constitucional”. Como conseqüência:

Se a lei não é mais uma regra qualificada por um valor (um ius que é iustum), e se a idéia de lei está, por um lado, restrita aos comandos que trazem o selo da vontade do soberano, e, por outro, estende-se a qualquer ordem que o soberano imponha; então, uma lei assim definida não pode resolver nossos problemas (SARTOTI, 1994).

            Sendo assim, podemos dizer como Foucault: “a lei encontra seu poder na dissimulação”. Mesmo porque, continua Sartori: “Na concepção formal, a lei está aberta a qualquer conteúdo, e uma lei sem justiça é lei mesmo assim”. Quer dizer, se considerarmos que uma situação de Direito Material não constitua pressupostos para a causa da Ação, o que efetivamente pode ocorrer e ocorre (não necessariamente, é claro) é vermos os Códigos Processuais (Civil e Penal) não só como legislações tirânicas e, paradoxalmente (?), ainda assim ouvir não apenas serem chamados de legais, mas também serem respeitados como legítimos (não importando o que “legal” e “legítimo” possam significar). Quer dizer, com armadilhas armadas por Austin, Kelsen e seus numerosos seguidores, nas casas legislativas e judiciárias, a lei torna-se uma armadilha legal, ou pode ser usada como tal. Mas, com efeito, na contundente observação de Sartori:

Se as abordagens analítico-positivistas da jurisprudência moderna não são tranqüilizadoras – para aqueles que se preocupam com a liberdade política – devemos acrescentar que o desenvolvimento de facto de nossos sistemas constitucionais o é ainda menos (SARTORI, 1994).

            Infelizmente Sartori tem absolutamente razão! Principalmente se olharmos para a composição e a atuação de nosso Congresso Nacional (Câmara e Senado), obviar-se-á as desvantagens de nossa concepção de “representatividade” e de nossa concepção legislativa de lei. O impulso inicial da teoria do garantisme, assim como do Rechsstaat, visava precisamente vestir o gubernaculum com o manto de iurisdictio, mas, depois de um período relativamente curto, o constitucionalismo mudou: de um sistema baseado no governo da lei para um sistema centrado, de fato, no governo dos legisladores. Com efeito, Sartori apresenta-nos duas linhas de análise explicitando em cada uma as desvantagens de nossa concepção: em primeiro lugar, o governo dos legisladores está resultando numa verdadeira mania de legislar, numa assustadora infração das leis. Deixando de lado como a posteridade vai conseguir lidar com centenas e milhares de leis que aumentam, de vez em quando, à razão de milhares por legislatura, o fato é que, por si mesma, a infração das leis desacredita a lei. Isso não significa que os governos devem governar menos. Significa que é tanto desnecessário quanto, a longo prazo, contraproducente, governar por meio de legislação, isto é, sob  forma das leis (casuísticas) e através delas. Isso é confundir governar com legislar e, assim, é conceber ambos erroneamente. E em segundo lugar, outra desvantagem, não é só a quantidade excessiva de leis que diminui o valor da lei, é também sua falta de qualidade. Inevitavelmente, “os órgãos legislativos em geral são indiferentes às formas e coerências básicas do padrão legal, ou não as conhecem. Impõem sua vontade através de regras confusas que não podem ser aplicadas em termos gerais: procuram vantagens secionais em regras especiais que destroem a natureza da própria lei”. A questão aqui não é que os formuladores das constituições liberais colocaram esperanças exageradas no talento legislativo dos legisladores. A questão é que o sistema não foi concebido para ter legisladores em lugar dos juristas e da jurisprudência. (Cf. SARTORI, 1994). E a conseqüência mais grave reside no fato de que a fabricação de leis inconstitucionais, atendendo a casuísmos político-partidários ou a meros interesses governamentais imediatos ou eleitorais etc., “acaba comprometendo outro requisito fundamental da lei: a certeza. A certeza não consiste apenas numa formulação precisa das leis, ou no fato de terem sido escritas: é também a certeza de longo prazo de que as leis serão duradouras. Duradouras, claro estão no sentido e na medida em que uma ordem legal assim se define precisamente porque permite as pessoas, às quais suas normas se aplicam planejar seu curso de vida, saber de antemão onde estão os sinais vermelhos e verdes. Assim, certeza é uma preocupação porque o ritmo atual da legislação estatutária faz-nos lembrar do que aconteceu com Atenas, onde “as leis eram certas (isto é, formuladas de maneira precisa numa fórmula escrita), mas ninguém estava certo de que qualquer lei, válida hoje, duraria até amanhã. (SARTORI, 1994). E mais, e o que é mais grave, com a teoria e a prática da “lei legislada” (da concepção legislativa da lei), aceitamos “todo e qualquer comando do Estado, isto é, aceitamos qualquer iussum como ius”. Assim, todo e qualquer problema de legitimidade resolve-se em legalidade, e numa legalidade meramente formal, aliás, pois o problema da lei injusta e descartado como metajurídico. Com essas premissas, segundo Sartori, pode ocorrer uma ou outra das seguintes linhas de desenvolvimento: a primeira é que os juízes deixam de se ver como descobridores (ou interpretes) de leis (no processo de administrar a Justiça) e transformam-se, cada vez mais, em juízes-legisladores, a maneira de político-legisladores; ambas as categorias tomam cada vez mais e mais a lei nas próprias mãos como se não houvesse mais nada a fazer além de ter a mão firme. Assim, a “república dos deputados” (como os franceses chamavam sua república) encontra um adversário igualmente desintegrador na “república dos juízes”; a segunda é que, depois de acostumados ao governo dos legisladores, o gubernaculum também adquire plenos poderes em relação ao iurisdictio. Isso significa que a supressão legal da legalidade constitucional é fácil de conseguir. Foi assim que o fascismo estabeleceu-se no poder (na Itália etc.), e pode acontecer de novo, quer dizer, o fascismo pode sobreviver no Brasil, nas leis, não por oposição à luta por um Estado Democrático de Direito, mas por sua reversão. (Cf. SARTORI, 1994). Em resumo, o fato é que vivemos a plena transição do governo da lei para um governo através de leis, o que já, sem nos apercebermos, nos privou da substância da proteção jurídica, pois dependemos, crucialmente, da sobrevivência de um sistema de garantias constitucionais, e nossos direitos não são salvaguardados pela concepção positivista e meramente formal da lei. Em outras palavras, não somos protegidos pelo “governo da lei”, mas (segundo a terminologia de Mosca) apenas pelos truques processuais da defesa jurídica, propiciados pelo “governo através de leis”. O ideal do PT etc. parece ser transformar a Lei em legislação logo de uma vez, e a legislação num governo dos legisladores liberados dos grilhões de um sistema de impedimentos e contrapesos. Para tal faz-se imprescindível engessar o STF, o STJ etc., (e este seria o objetivo da famigerada PEC-33), e imobilizar o poder investigativo do Ministério Público (objetivo da famigerada PEC-37) etc. Não podemos, portanto, mais contar com uma lei que está sendo reduzida a lei estatutária, a um ius iussum do qual não se exige mais que seja (de acordo com a concepção formal ou positivista) um ius iustum. O fato é que a Constituição de 1988 se torna não mais, própria e estritamente falando, a Constituição. Concluindo: a Crise do Judiciário ainda não é verdadeiramente uma crise, mas apenas um processo de transição para a crise que se anuncia através da PEC-33, da PEC-37 etc, ou seja, a verdadeira crise acontecerá quando as conquistas do constitucionalismo liberal (ou democrático) forem solapadas pelos parlamentares do PT e aliados, e, finalmente, se revelar os verdadeiros objetivos das conquistas políticas do PT, qual seja, estar diante de um governo em que as leis sejam fáceis de mudar, e que sejam fáceis, mas tão fáceis, que se tornem incapazes de assegurar tanto a proteção quanto a aplicação da lei. E Pensar que as esperanças políticas do povo brasileiro, após a constituição de 1988, era que, finalmente, a lei seria compreendida, efetivamente, como uma represa sólida contra o poder arbitrário, mas, a atuação parlamentar de fascistas como Cesar Maia (PT-RS) nos mostra na prática que a Constituição como legislação, como é compreendida agora, pode vir a não oferecer (e não nos oferecem) garantia alguma.

3. CONCLUSÃO: O PARADOXO DE TSCHIRNHAUS.

O EMÉRITO PROFESSOR Tércio Sampaio Ferraz Jr., todos nós o sabemos, é um renomado estudioso do Direito da Universidade de São Paulo – USP. Pensamos nele quando, diante da observação de Habermas, “do fato de que a Filosofia do Direito – quando ainda busca o contato com a realidade social – ter emigrado para as Faculdades de Direito” (HABERMAS, 1997), nos perguntamos se foi a Filosofia do Direito ou se foi a Faculdade de Direito que haviam perdido contato com a realidade social? Pensamos que saber isso seria interessante! Mesmo porque, uma sublime frase de James Joyce, em “Ulisses”, reflete bem as disposições de espírito dos juristas herdeiros teóricos ou discípulos (com maior ou menor grau de fidelidade ou infidelidade) de Nuremberg, que podemos chamar de juristas ultraliberais, ou seja, com espírito de Peter Pan: “Manter isso para sempre, nunca mais ficar um dia mais velho teoricamente!” (JOYCE, 2003). Isso o que? A experiência alemã nazista, a experiência italiana fascista, a experiência russa stalinista etc. Por quê? Porque elas nos oferecem, diz-nos François Rigaux: “um paradigma da aptidão do Direito a se apropriar de qualquer situação que seja; a legalizar o crime para em seguida restituir-lhe a qualificação que merece” (RIGAUX, 2000). Então, como investigar a realidade social a partir da Filosofia do Direito ou da Faculdade de Direito sem recairmos em contradição e tautologias propícias a “eternidade” (direta e indiretamente, no todo ou em parte) das “leis de Nuremberg” etc.? Pois bem! O professor Ferra Jr. mostra-nos a existência de dois modos básicos de investigação do Direito, e, justamente, o que caracterizamos como o ponto básico do Paradoxo de Tschirnhaus, revela-se de forma cristalina. Estranho isso! Foucault parece ter razão: “A linguagem não diz exatamente aquilo que diz”. Vejamos! Ferraz Jr admite que “toda investigação científica esteja sempre às voltas com perguntas e respostas, problemas que pedem soluções, soluções já dadas que se aplicam a elucidação de problemas” (FERRAZ Jr., 2003). Tal reconhecimento o faz apontar dois modos básicos de investigação do Direito, orienta-nos Vitor Bartoletti Sartori a garimpar:

“Um ao partir de uma solução já dada e pressuposta, está preocupado com um problema de ação, de como agir. Outro, ao partir de uma interrogação, está preocupado com um problema especulativo, de questionamento global e progressivamente infinito das premissas” (FERRAZ Jr., 2003).

            Ferra Jr. usa a terminologia de Theodor Viehweg (“Ideologie und Recht”) e diz que, no primeiro caso, acentuando o aspecto perguntas [que se configura como um Ser (o que é algo)], temos um enfoque “zetético”; no segundo, predominando o aspecto resposta [que se configura como um dever-ser (dever-ser algo)], temos o enfoque “dogmático”. – A aporia do problema resulta em que como é possível separar “Ser” e “Dever-Ser” algo, se, para “Ser” é necessário e suficiente “Dever-Ser” algo, ou, outra face da mesma aporia, para “Dever-Ser” é necessário e suficiente “Ser” algo que ainda não se é para se poder entrar em devir; e “Ser” – O fato é que Bartoletti Sartori tem razão; surge assim, “de um lado, a prática conectada umbilicalmente com a sociabilidade existente” [o que eu gostaria de frisar, en passant, que não necessariamente (e nem suficientemente), contudo]; “de outro, a teoria, a qual tenta se livrar dos impulsos pragmáticos inerentes a ação e as decisões limitadas por uma situação dada”. Neste sentido, conclui ele, “a teoria jurídica aparece de maneira que esses “pólos” surgem não só separados, como também contrapostos” (BARTOLETTI SARTORI, 2010). E eis que estamos diante do Paradoxo de Tschirnhaus, na forma de conflito ou contraposição entre Teoria e Prática jurídica. A superação do Paradoxo de Tschirnhaus dá-se, segundo Immanuel Kant, quando se busca corrigir as deficiências da Faculdade do Juízo que assim se manifesta. Diz Kant:

“Ninguém, portanto, pode passar por versado na prática de uma ciência e, no entanto, desprezar a teoria sem mostrar que é um ignorante no seu ramo: pois crê poder avançar mais do que lhe permite a teoria, mediante tacteios em tentativas e experiências, sem reunir certos princípios (que constituem propriamente o que chamamos de teoria) e sem formar para si, o propósito da sua ocupação, uma totalidade (que, quando tratada de modo sistemático, se chama sistema)” (KANT, 1990).

            E sem dúvida, permanecendo o descompasso entre Teoria e Prática, e apenas assim, Bartoletti Sartori tem razão quando diz que: “O Direito vem, quer se queira, quer não, a ser visto como um instrumento e, como tal, é passível de manipulação”, o que, sem dúvida, “pode levar à hipertrofia do Direito justamente por meio de seu esvaziamento” (BARTOLETTI SARTORI, 2010). E assim, parafraseando Kant, podemos dizer que, se não há Teoria bastante, falha-se em tentar captar o universal, e, perde-se o mais particular; e se não se apreende a experiência, torna-se impossível captar o mais particular, e, conseqüentemente, o universal é manipulado, ou seja, a hermenêutica torna-se estúpida, a deontologia torna-se permissiva, a heurística torna-se vazia, a epistemologia perde o rumo, a genealogia se perverte etc. etc. E a sepultura está pronta para o enterro do Direito. Bartoletti Sartori está certo: a impossibilidade de “deixar as soluções em suspenso” (CF: Art. 5º XXXV e CPC: Art. 126), pode mesmo vir a gerar “soluções impostas por situações não questionadas, tomadas, assim, como premissa, como se “evidentes’ fossem” torna qualquer coisa e tudo possível... (Cf. BARTOLETTI SARTORI, 2010). E a anomia pode se estabelecer. O Direito torna-se Torto. Mesmo porque, é preciso entender que dogmática é doutrina, não teoria científica. E sempre que é apresentada como teoria científica o Direito esbarra nas contradições e tautologias impostas pelo Paradoxo de Tschirnhaus, ou seja, sempre que se pretende compreender os escritos jurídicos não como Doutrina, mas como Criação Científica, perdeu-se de vista seu conteúdo de verdade relativa a, ou, nas palavras do Professor Roberto Romano (em “Prefácio” ao livro de Márcio Sotelo Felippe), “expulsaram da Ciência Jurídica a consciência que não se reduz ao fato visível (ou a experiência), e ignoram a dignidade sublime explorada na  “Kritik der Urteilkraft”. Diz-nos, então, Romano: “Dignidade. Este é o imperativo que rege a íntegra doutrina”. Diz-nos, então, Márcio Sotelo Felippe:

“A dignidade é o fim. A juridicidade da Norma positiva consiste em se poder reconhecer que, tendencialmente, ela se põe para esse fim. E se não se põe, não é legítima” (FELIPPE, 1996).

O que pode solucionar o conflito entre Teoria e Prática, entre Forma e Conteúdo, ou entre Teorias antagônicas, que dão ensejo a formulação do Paradoxo de Tschirnhaus, é não se perder de vista o fim a que se destina a construção do Direito, como Experiência e como Doutrina (ou Teoria): a dignidade humana. Se isso não for compreendido definitivamente o Paradoxo de Tschirnhaus continuará em ação provocando deformações em todas as soluções (que nada solucionam) apresentadas para a denominada “Crise do Judiciário”, pois que, todos os problemas disfuncionais do Poder Judiciário estão ligados ao fenômeno da alienação institucional decorrentes das mediações simbólicas das distinções (Bourdieu) que se interpõem na sociedade civil-burguesa como forma garantida de status, oportunidades, arbítrio, poder... (WALTER AGUIAR VALADÃO, Venda Nova do Imigrante (ES), 21 de maio de 2013).

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