Carla Dayanne Montenegro Honorato de Araujo[1]

 

Resumo:

Os contatos das culturas africanas-tradicionais e europeia-ocidental tiveram várias fases, ao longo da história, e cada uma correspondeu a produção de uma estrutura política, social e económica diferente. Dentre as principais implicações desse contato, sobretudo no período colonial, podemos destacar as alterações no modelo político tradicional africano, que foi inexoravelmente abalado. A subordinação do sistema legal costumeiro ao sistema legal europeu sucedeu na perda de soberania política dos Chefes Tradicionais e, também, na restrição dos direitos executivos dessas autoridades: os chefes deixaram de poder decidir autonomamente sobre a vida das suas populações, ficando a mercê dos interesses da Administração colonial. Assim, nosso trabalho buca esmiuçar as consequências que o contato com os europeus, principalmente no período colonial, trouxeram para o sistema político tradicional. Também explanaremos sobre o papel dos chefes tradicionais moçambicanos na atualidade.

Palavras-chave: Culturas; Alterações; Chefes Tradicionais; Administração Colonial; Europeus.

Resumen:

Los contactos de las culturas tradicionales africanas-y europeo-occidentales tenían varias fases a lo largo de la historia, y cada uno correspondieron a la producción de una estructura política, social y económica diferente. Entre las principales consecuencias de este contacto, especialmente en el período colonial, se puede destacar que los cambios en el modelo político tradicional africana, que se movían inexorablemente. La subordinación del sistema jurídico consuetudinario en el sistema jurídico europeo tuvo éxito en la pérdida de la soberanía política de los líderes tradicionales y la restricción de los derechos de estos órganos ejecutivos, los jefes ya no eran capaces de decidir autónomamente sobre la vida de su pueblo, consiguiendo la merced de los intereses la administración colonial. Por lo tanto, nuestro trabajo buca escudriñar las consecuencias del contacto con los europeos, sobre todo en el período colonial, llevado al sistema político tradicional. También explanaremos sobre el papel de los jefes tradicionales mozambiqueños hoy.

Palabras clave: culturas, cambios, líderes tradicionales, la administración colonial, los europeos.

Introdução

Os contatos das culturas africanas-tradicionais e europeia-ocidental tiveram várias fases, ao longo da história, e cada uma correspondeu a produção de uma estrutura politica, social e económica diferente. O contato da África com o exterior incidiu em mudanças significativas nesse continente. As mudanças mais importantes e mais drásticas, entre 1880-1910, marcada pelo período de conquista e ocupação de quase todo o continente pelas potências imperialista e, posteriormente, pela instauração do sistema colonial[2].

Antes de 1880 apenas 10% da África estava sob dominação europeia, a maior parte do território africano era governado por seus próprios reis, rainhas, chefes de clãs, reino e unidades politicas diversas. Nos 30 anos posteriores assiste-se a uma transmutação radical dessa situação, e nesse período a África é assaltada, para além da sua soberania e sua independência, em seus valores culturais.

 Na história da África podemos distinguir quatro períodos:

  • Primeiro, do século XV até 1850. Período de exploração das áreas costeira pelos europeus e de algumas penetrações de missionários portugueses. (período de exploração)
  • Segundo, de 1850 até o princípio do século XX. Período de penetração e exploração no interior da África e da repartição do Continente pelo europeus. (período da expansão colonial)
  • Terceiro, princípios deste século até a II Guerra Mundial. Período em que as potências europeias dedicam maior atenção ao desenvolvimento económico das suas colónias. (período do pacto colonial)
  • E, por último, o período que se inicia logo a seguir ao fim da Guerra. (período de descolonização)

Interessa-nos, sobretudo, os últimos períodos, pois acreditamos ser essa a altura em que houve profundas alterações, produzidas pela introdução da dominação colonial, nas estruturas políticas africanas. Desse modo, verificaremos como prosseguiu a administração colonial para manipular com eficiência o sistema implantado nas colónias. Isto é, tentaremos perceber a gama de manipulações e artimanhas necessárias para assegurar esse tipo de administração, assim como tentaremos compreender as mudanças que o contato com os europeus provocaram, de forma inexorável, na sociedade tradicional africana, sobretudo no papel que os Chefes Tradicionais desempenhavam nessa comunidade; também tentaremos discorrer acerca da importância do lugar social que estas autoridades detêm na actualidade, nomeadamente em Moçambique.

Para tal, torna-se necessário fazer uma breve exposição da maneira pela qual essas sociedades organizavam-se antes da chegada dos europeus, ou seja, verificar como era o sistema político africano pré-colonial para, em seguida, discorrer acerca das mudanças impostas pela administração colonial a estas sociedades.

Como veremos a seguir, a Administração colonial, sob pretexto de uma maior eficácia administrativa, passa a intervir na manipulação dos territórios sob alçada dos chefes, e uma das consequências dessa intervenção foi o desaparecimento de unidades políticas antigas, e respectivos chefes, e o surgimento de novas unidades, e novos chefes, cuja legitimidade era muito questionada (FLORÊNCIO, 2003).

A legitimidade das autoridades tradicionais assenta-se na linhagem, tendo no culto aos antepassados a característica marcante da sua religiosidade. Desse modo, a linhagem constitui o principal critério para legitimar o poder de uma autoridade tradicional, que lhe é dado pela comunidade. Com o regime colonial a autoridade tradicional viu alterado o seu mecanismo de inserção na comunidade (CUAHELA, 1996), colocando em relevo a legitimidade desse processo. O surgimento da figura do Régulo[3] que, ao contrário do Chefe Tradicional, nasce como uma necessidade da administração colonial, é um exemplo bem nítido (CUAHELA, 1996, p. 29). O Régulo adquire sua legitimidade, muitas vezes, pautada em critérios que não são os da linhagem, isto é, de acordo com a tradição, mas em critérios que foram estabelecidos pela Administração colonial conforme os seus interesses. Este fato acaba por colocar os chefes numa posição de grande conflituosidade e ambiguidade de papeis, entre os seus deveres como lideres locais e, simultaneamente, representantes da autoridade tradicional” (FLORÊNCIO, 2003, p. 112).

O fato é que a imposição da Administração colonial europeia teve como consequência directa o enfraquecimento dos sistemas legais costumeiros sobre os quais se sustentavam as disposições políticas, económicas, sociais e religiosas, assim como os modos de produção local. Logo, “a aplicação das leis costumeiras ficou restrita àqueles aspectos da vida das populações que não colidiam directamente com os interesses da Administração colonial, ou que esta não sabia muito bem como lidar, como no caso da feitiçaria” (FLORÊNCIO, 2003, P.112).

As implicações dessa subordinação do sistema legal costumeiro ao sistema legal europeu sucederam, sobretudo, na perda de soberania política dos Chefes Tradicionais e, também, na restrição dos direitos executivos dessas autoridades, ou seja, os chefes deixaram de poder decidir autonomamente sobre a vida das suas populações, ficando, sempre, a mercê dos interesses da Administração colonial.

1. Estruturas de poder pré-colonial africanas

Meyer Fortes e Evans-Pritchard, na obra intitulada African Political Systems, apresentam uma tipologia acerca das estruturas políticas africanas pré-coloniais, isto é, antes da colonização europeia em África, cujo critério fundamental é a existência, ou não, de um governo. Desse modo, dividem as sociedades entre as que possuem governo, ou seja, autoridade centralizada, com aparelho administrativo e instituições judiciais, daquelas carentes de autoridade centralizada, em suma, sem governo. No último caso, onde não existe autoridade centralizada e, também, não há diferenciações de riqueza, estatuto e categoria social, os autores apelidaram de “anarquia ordenada”.

Os autores destacam a importância que o sistema de linhagem[4] possuía na estrutura política africana. Os membros de uma linhagem, segundo a tradição africana, têm o mesmo antepassado e ocupam o mesmo território linhageiro. O território linhageiro corresponde a toda a área geográfica como seus limite, geralmente naturais, ocupadas por muitas linhagens que obedecem ao mesmo Chefe Tradicional. Os Chefes de linhagem assumem o poder tradicional dentro do mundo sócio-politico da autoridade tradicional, incluindo um conjunto de elite tradicional, nomeadamente, chefes tradicionais, curandeiros, adivinhos, ervanários e oficiais de rituais.

No caso das sociedades com poder centralizado, como os Zulu, formavam uma federação constituída por múltiplos grupos políticos territoriais unidos em torno de um centro de poder, formado pelo rei, pelas casas reais e chefes principais (FLORÊNCIO, 2003, p.106). Cada grupo era liderado por um chefe, um príncipe da linhagem real nomeado directamente pelo rei. Por sua vez, cada uma dessas tribos dividia-se em unidades menores, lideradas por elemento da família do chefe de tribo, ou membros nomeados pelo chefe (idem, p.106). A estrutura era de tipo piramidal, tendo no topo o rei, o chefe máximo, que centralizava em si toda a decisão politica e, também, era o juiz supremo da federação tendo um papel de destaque na resolução de casos que envolvesse a feitiçaria. Ao rei era atribuído capacidades mágicas, o único competente para presidir as cerimónias, pois, simbolicamente, eram o único capaz de estabelecer uma ligação entre os vivos e os mortos.

Os Nuer são um exemplo de sociedade sem governo em sem autoridade tradicional. De acordo com Evans-Pritchard, organizavam-se em tribos, cada qual dominada por um território e constituindo uma unidade económica autónoma. Cada tribo é dominada por um clã e é com base nesta estrutura de parentesco que se organiza a unidade politica. Concomitantemente, os clãs são unidades muito segmentadas e compostas por linhagens também segmentadas.

No entanto, apesar de não possuir um chefe com poder decisório, como no caso das sociedades com poder centralizado na figura de um chefe tradicional, em caso de conflitos que opunham os vários segmentos, estes eram resolvidos entre as partes interessadas mas, também, podiam ser mediadas pelo “chefe de leopardo”. Esse chefe, não tinha poder decisório, era apenas um mediador dos conflitos entre as partes. O fator de diferenciação social nesse tipo de sociedade era estabelecido pela idade, isto é, o estatuto social dos homens dependia da sua idade, existia uma organização de classes de idade que, porém, não desempenhavam nenhum papel político na comunidade.

A contribuição dos autores para os estudos sobre os sistemas políticos africanos é, sem dúvida, importante, continuam a ser uma referência, mas, como bem aponta Florêncio (2003), essa classificação dualista, sociedade com Estado versus sociedade sem Estado, é bastante redutora. Para o autor é mais pertinente falar de um continum de formas de organização politica, que se situam entre esses dois pólos antagónicos das sociedades mais centralizadas e das de poder mais difuso.

1.1 Autoridades tradicionais

A autoridade tradicional, independente das diferenças que existem de região para região, está presente em quase todo o continente africano e detém uma enorme importância para as comunidades. De acordo com Cuahela (1996), a sua importância é tão grande nas comunidades que acaba por ser um factor de valorização cultural e consolidação da própria unidade nacional.

A legitimidade do chefe tradicional assenta-se na linhagem, como já referimos. Os membros de uma linhagem têm o mesmo antepassado em comum e ocupam o mesmo espaço geográfico. Acredita-se que o chefe tradicional ascende a linhagem dos primeiros que chegaram ao território que ele domina, daí sua legitimidade, aceita por todos na comunidade. Isto é, uma linhagem que foi a primeira a ocupar uma determina área, passa a assumir a legitimidade sobre ela. Consequentemente, todas as outras linhagens que forem ocupar a mesma área, mais tarde, reconhecem a legitimidade da linhagem que ali primeiro chegou e a respeitam. Foi um primeiro grupo que teve seus filhos nascidos no território, assim como seus mortos ali enterrados, o que lhes dá uma ligação forte com a terra, sobretudo para uma sociedade predominantemente agrícola, este fato é muito relevante (CUAHELA, 1996). Apesar de ser a forma mais comum de aparecimento e legitimação pela comunidade do poder tradicional, há outras maneiras de legitimar o poder do chefe que nem sempre pautam-se nesta anterioridade na ocupação do espaço físico.

As sociedades a que se reportam os chamados poderes tradicionais – pela sua diversidade não se pode falar de um poder tradicional – são sociedades linhageiras cuja organização social é fundada no parentesco e cujo substrato filosófico-religioso se baseia no culto dos antepassados. Em situações em que uma comunidade linhageira se impõe a outras por via da anterioridade da ocupação do território e das alianças, que vai estabelecendo, gera-se um poder político que é justificado como um privilégio herdado dos antepassados da linhagem dominante. Isso favorece a criação de uma “classe” aristocrática cujo poder político assenta no parentesco e na religião (PACHECO, 2002).

Os chefes de linhagens são àqueles que detém o poder tradicional dentro do mundo sócio-político da autoridade tradicional porque, simbolicamente, estabelecem uma relação permanente entre vivos e mortos. Só aos chefes cabem o direito de presidir ou solicitar as cerimónias que reforçam e tornam mais legitima a sua autoridade. Portanto, é daí que advém sua legitimidade e seu estatuto sagrado, aceito por todos na comunidade e, concomitantemente, só a comunidade pode retirar, caso ache necessário, essa legitimidade. 

 As cerimónias para os africanos são práticas que contribuem para a manutenção do equilíbrio nas comunidades. Cabe aos chefes tradicionais o direito de solicitar, realizar ou dirigir tais cerimónias. Apesar de que cada linhagem ou família possa realizar estas cerimónias, quando o assunto é de interesse de toda a comunidade este direito cabe apenas ao chefe de linhagem. Variando quanto ao tipo ou a forma da sua realização, as cerimónias mais comuns nas comunidades, a exemplo da comunidade moçambicana (Cf. Cuahela,1996; Florêncio, 2003) são as seguintes:

  • De inauguração de uma época agrícola
  • De caça organizada
  • De intervenção aos mortos para que ajudem ou encontrem solução de problemas que atingem a comunidade
  • De pedidos de chuvas

Em algumas regiões do País tais cerimónias contam com a colaboração de médiuns, ou de um adivinho, curandeiro, dentre outros. Entretanto, para a realização e direção de cerimónias, a condição primordial é a legitimidade, pois sem ela nenhuma cerimónia possui, de fato, validade. Como refere Cuahela (1996), nem sempre o mais importante são os resultados, mas o significado simbólico que estas cerimónias possuem para a sua comunidade.

Portanto, o poder tradicional caracteriza-se por não haver uma separação distinta entre o político e o religioso, apesar de tornar-se aparente quando se trata de “chefes administrativos”, como veremos a seguir. O poder tradicional também caracteriza-se por ser autocrático, podendo decidir de forma arbitrária sobre a mais diversas questões. Não existe separação entre poder executivo, legislativo e judicial, que podem ser exercidos pela mesma pessoa: o chefe (PACHECO, 2002). Mas, com as mudanças advindas do sistema colonial, o chefe perde essa autonomia política, passando a subordinar-se as ordens oriundas da Administração europeia. Ao chefe não cabe mais o direito de decidir sobre todas as questões da sua comunidade.

1.2 Hierarquia das chefias tradicionais

Entre os chefes tradicionais há uma hierarquia de importância ou subordinação de responsabilidades. Desse modo, para citar um exemplo, o chefe de uma linhagem detém maior importância que o chefe de uma família e, portanto, fica no topo da hierarquia.

A seguir, veremos como se estrutura tal hierarquia, de acordo com a importância dada a cada chefe[5]:

  • Mambo: não é propriamente um Chefe Tradicional, mas o espirito religioso e politico do antepassado da linhagem, onde se inspira todo o poder tradicional e que é assumido materialmente pelo Nhakwawa
  • Nhakawawa: é uma pessoa real que recebe os poderes que lhe são delegados pelo Mambo, tornando-se chefe muitas linhagens, dentro de um território linhageiro. Fica no alto da pirâmide.
  • Mfumo: assume a chefia de mais de uma linhagem dentro do território linhageiro, mas não cobre a sua totalidade, Subordina-se ao Nhakawawa e cumpre suas ordens.
  • Mwananfumo; é chefe de uma linhagem e é escolhido pelo Munfo.

1.3 Direitos e deveres dos chefes tradicionais

Aos chefes tradicionais cabem diversas tarefas, dentre as quais[6]: Cuidar da harmonia da comunidade; Velar pelos limites do território linhageiro; Intervir na resolução de certos conflitos da comunidade, quando estes não são resolvidos nos níveis familiar e linhageiro; Promover e orientar cerimónias de interesse geral da comunidade; Requerer a colaboração do conselho de anciões; Assegurar que a terra seja o património da comunidade, um bem de todos e para uso, igualmente, de todos.

Quanto aos direitos, de acordo com Cuahela (1996), as comunidades sabem homenagear os chefes tradicionais através de ofertas das mais variadas. Tais ofertas dizem respeito a legitimidade conferida pela própria comunidade ao chefe. “As ofertas são uma ajuda e um acto de respeito”.

2. Administração colonial

Depois de ocupada pela pelas potências imperialistas europeias, a África foi envolvida em uma rede administrativa colonial que unificava-se com base em algumas crenças e ideais em comum.[7] Fenómeno sem precedentes em toda a história da humanidade, a política colonial assume em África o sentido de “política indígena”.

De acordo com a ideologia imperialista da época, a finalidade da presença europeia na África fundamentava-se em termos de responsabilidade ou de tutela (BETTS, 2010, p. 354). O discurso disseminado pelas potências imperialistas era de que o objectivo fundamental, para tal empreitada, consistia em proteger e ajudar a promover o progresso das populações indígenas. Noutros termos, “o direito do mais forte proteger o mais fraco”.

O artigo 22 do pacto da Sociedade das nações, o empreendimento colonial, nomeadamente em África, passaria a ser propagado em nome de um ideal maior, isto é, em nome da civilização, de modo que convinha confiar a tutela desses povos às nações desenvolvidas. Subentendidos em todas essas manifestações estava a ideia de superioridade racial e cultural que dominava a europa nesse período (ideias evolucionistas).

De acordo com Betts (2010), no início a política colonial não tinha objetivos claros e definitivos, de modo que a Administração do período entre guerras consistia num “exercício de adaptação cultural e política necessariamente empírico” (BETTS, 2010, p.355).

Como resultado, o período de entre guerras foi aquele em que inúmeras dessas antigas práticas se estruturaram em politica oficial e no qual o oportunismo administrativo foi elevado ao nível de teoria bem articulada. Retrospectivamente, esse período surge claramente como o de burocratização da administração colonial (BETTS, 2010).

Assim, o autor nos diz que, embora não houvesse uma concepção universalmente aceita para a administração colonial na África, havia uma confluência de opiniões sobre aquilo que se poderia chamar de administração indirecta. Era, portanto, esse tipo singular de administração que permitia às autoridades tradicionais participarem do poder colonial, no entanto, sempre numa posição de subordinação. Os chefes tradicionais podiam exercer seu poder tradicional enquanto este não ferisse os interesses estabelecidos pela administração colonial.

Esse acordo pode ser explicado de diversas maneiras, uma delas é que o continente africano, devido a diversos factores, tais como o clima e a grande dispersão geográfica da população, dificultava uma administração direta eficaz dos europeus. Também o modo como a penetração no continente se deu, em ritmo bastante acelerado, conduzindo a insuficiência de europeus disponíveis para administrar as novas possessões. Assim, a administração direta seria pouco viável no plano imediato. Para além disso, havia intenções políticas por parte dos europeus que acreditavam numa maior colaboração dos povos autóctones caso a ordem social fosse pouco abalada.

Nesse contexto, nenhuma potência colonial procurou eliminar por completo as estruturas sociopolíticas existentes. Apesar da diversidade das políticas das potências europeias, as exigências do sistema colonial, no geral, acabaram por produzir em toda a parte o efeito de modificar os objectivos e, simultaneamente, alterar as funções das instituições africanas básicas, enfraquecendo-as de forma inexorável. “O próprio fato de os Estados africanos terem sido, na sua maior parte, anexados por conquista e pelo exilio ou destruição dos seus dirigentes, lançou em descrédito toda a antiga administração” (BETTS, 2010, p. 358).

Apesar da existência de grande parte da população africana não ter sido alterada consideravelmente, as instituições políticas sofreram drasticamente com esse processo. Desse modo, os chefes tradicionais que eram legitimados pela comunidade e exerciam autoridade pela sua ascendência (linhagem), vêem seu poder ser consideravelmente diminuído com o estabelecimento da Administração colonial.

2.1 Estrutura do regime colonial

Os administradores europeus encontravam entre as “autoridades indígenas” coligados, ou agentes, capazes de transmitir as comunidades as exigências da administração colonial, ou seja, essas autoridades serviam como uma espécie de ponte entre a administração e a população africana.

A estrutura era de tipo piramidal onde encontrava-se, no topo da hierarquia, o governador ou residente- geral, que deveria prestar contas à metrópole mas, muitas vezes, agia como soberano. A instituição central da organização colonial era o distrito, ou região. Em cada região um administrador (europeu) exercia a autoridade e ficava responsável por dirigir as atividades dos subordinados europeus e das autoridades africanas ligadas à administração colonial.

Nesse contexto, temos a figura dos chefes locais que suscita muitas discussões no que concerne ao seu papel nessa estrutura. O chefe local, tradicional ou designado, torna-se uma figura importante na estrutura administrativa, as potências coloniais dependiam dele. Não havia colonização sem política indígena, pois eles atuavam como correia de transmissão entre população e autoridade colonial.

Uma explicação plausível para a importância dada às “autoridades indígenas” pela ordem colonial diz respeito ao método utilizado para satisfazer as necessidades naquele momento, isto é, transformar a necessidade em algo útil: administrar indirectamente. Como referimos anteriormente, o tipo de administração direta tornava-se inviável num território tão vasto, além disso havia os interesses políticos que visavam uma maior colaboração da comunidade autóctone.

O sistema de administração indirecta deveria consistir não na subordinação, mas, antes de tudo, numa teia de colaborações entre chefe e europeu. Ao chefe africano era imbuída a tarefa de continuar a desempenhar seu papel tradicional, mas seguindo as instruções da administração colonial. Tal tarefa era, como dissemos, uma estratégia política, pois ao continuar desempenhando os mesmos empreendimentos, responsabilidades e prerrogativas de antes, aos olhos da comunidade continuariam a parecer chefes legítimos (BETTS, 2010, p. 361). Outro objetivo consistia em produzir alterações no modelo europeu, principalmente em relação à justiça e à tributação. Desse modo, a grande tarefa da administração indirecta (…) é não intervir nas rivalidades entre africanos deixando campo livre suficiente para que encontrem eles próprios o ponto de equilíbrio entre o conservadorismo e adaptação. A realização dessa tarefa estava em grande medida subordinada ao conhecimento dos administradores europeus sobre os costumes e as instituições locais, e também, claro está, à disposição das autoridades autóctones para operar esses ajustes, buscando modernizar suas próprias instituições (BETTS, 2010, p.361).

Fica claro que para a Administração colonial não era viável destituir-se dos chefes tradicionais, pois eles colaboravam de forma crucial como mediadores entre os europeus e a comunidade africana, pois os autóctones confiavam nos seus chefes, de modo que era mais simples acatar o que os chefes ordenavam (sob orientação da Administração). Ao mesmo tempo, como já aludimos, a Administração não possuíam recursos humanos suficientes para administra o vasto território africano, sendo mesmo necessário a colaboração dos próprios autóctones nesse processo.

2.2 Autoridades tradicionais e Administração colonial

Ao ser incorporado no sistema de administração colonial, o chefe tradicional deixou de ser uma “autoridade indígena” e passou a ser um agente administrativo, ou Régulo (forma pejorativa para designar Rei Pequeno) (CUAHELA, 1996). Nesse processo seu poder e suas atribuições foram bastante reduzidas. Tais mudanças no panorama das autoridades tradicionais podem ser explicadas, sucintamente, pelo fato de que, como agentes administrativos, os chefes assumiram outras funções, para além das tradicionais, como a recolha de impostos, operações de recenseamento, recrutamento de mão-de-obra e alistamento. E quando estes não desempenhavam as funções de acordo com o que administração europeia esperava, eram destituídos do seu cargo e substituídos por um ex-combatente, sargento ou funcionário (BETTS, 2010, p.364). Ou seja, os chefes eram manuseados como um pessoal administrativo susceptível de se transferir e remover conforme os interesses da administração europeia.

O Régulo distingue-se do chefe tradicional pela questão da legitimidade e legalidade. Enquanto a comunidade conferia a legitimidade ao chefe tradicional, no caso do Régulo era a administração colonial que conferia legalidade ao chefe. No entanto, como aponta Cuahela (1996) na transformação dos Chefes Tradicionais em Régulos, havia casos em que o chefe tradicional foi também Régulo e casos em que foram pessoas distintas. Isto é, havia os Régulos que foram conduzidos ao cargo por simples interesses coloniais, sem que possuíssem, de fato, direito e legitimidade para o cargo.

Logo, o Régulo, caso não fosse também chefe tradicional não poderia, por simbologia, fazer a ligação entre vivos e mortos, assim como não estava autorizado a realizar cerimónias. Essa singularidade concernente ao Régulo que não era, também, chefe tradicional, estabelecendo uma modificação considerável no sistema sociopolítico africano pois, para eles, o poder religioso era de fundamental importância, porquanto estava directamente ligado aos seus antepassados. As cerimónias tinham papel de destaque na vida da comunidade e, consequentemente, o chefe tradicional adquiria notoriedade. Com essa mudança o Régulo não dispunha de legitimidade para organizar às cerimónias, trazendo prejuízo para os povos africanos, pois todas essas crenças reforçavam a sua personalidade e era um fator de unidade nacional (CUAHELA, 1996, p.38).

Para além disso, os Régulos contavam com a ajuda de polícias locais, tais como cipaios e cabos-de-terra, de chefes de grupo e de povoação, para a realização de tarefas descentralizadas[8], e isto fugia ao que fazia parte da tradição. Tal fator levava, muitas vezes, a uma conduta violenta, de modo que suas acções eram condenadas pelos membros da comunidade. Havia também à compensação monetária anual, calculada com base no número de pessoas que pagavam impostos para o Estado que os Régulos recebiam. Essa compensação monetária era uma “recompensa” da administração colonial pela realização das tarefas que os Régulos cumpriam (a mando da administração) dentre as quais destacamos:

  • Controlar as entadas e saídas dentro da sua área de jurisdição
  • Denunciar o fabrico de bebidas alcoólicas
  • Comunicar à administração de todos os crimes, doenças endémicas que surgissem nessa área
  • Motivar a população para aprender a falar a língua portuguesa
  • Obrigar a comunidade ao pagamento de impostos, a procurar emprego e a praticar culturas obrigatórias como algodão, sisal, etc.
  • Convencer a comunidade a comunidade a registrar casamentos, nascimento, mortes e recensear-se

Caso o Régulo não realizava tais tarefas, segundo a lei colonial, poderia ser punido ou destituído do cargo - tal como um agente administrativo.

Nesse contexto, é possível perceber que a lógica da divisão político-administrativa do Estado colonial acabou por se impor e o poder das chefias tradicionais foi perdendo relevância, de forma crescente, no condicionamento da vida económica, política e social dos povos africanos. O poder antigo, doravante, estava bastante limitado, se fazendo sentir nas aldeias, com atuação na resolução de conflitos (que não era da competência da administração colonial, por se tratar de conflitos ligados à feitiçaria, por exemplo), no culto dos antepassados, nas relações com o mundo sobrenatural e na gestão de terras cada vez menores (PACHECO, 2002).

O sistema colonial acabou por aumentar ainda mais as diferenciações sociais nas sociedades locais, isto é, entre as autoridades de estatuto social mais elevado e os chefes de estatuto mais baixo, aos quais o sistema colonial pouco influenciou, continuando por governar suas comunidades conforme a tradição (FLORÊNCIO, 2003). De acordo com Florêncio, essa acentuação da diferenciação social entre chefes superiores e inferiores, foi também uma consequência da introdução das produções comerciais, tais como o café e o algodão, assim como da cobrança de impostos. De modo que a introdução dessas novas produções comerciais, consequentemente, acabaram por alterar a estrutura social da comunidade, pois agora os camponeses tinham alguma possibilidade de mobilidade social.

Todas essas questões  provocaram mudanças significativas na estrutura social, política e económicas das comunidades africanas, sobretudo na estrutura política, afectando consideravelmente os chefes locais. Segundo Florêncio, as sociedades locais sempre mostraram resistências no que concerne às transformações do sistema tradicional de governação. Tal fator acabou por colocar os chefes numa posição de grande ambivalência e conflituosidade de papéis, ou seja, entre os seus deveres como líderes locais e representantes, ao mesmo tempo, da autoridade colonial (FLORÊNCIO, 2003, p.112).

Para Jacques Lombard apesar das diferenças de modelo administrativo aplicado por franceses e ingleses, por exemplo, existem diversos factores comuns aos dois sistemas no que diz respeito ao impacto que tiveram sobre as estruturas políticas africanas. Nesses termos, diz ele: "Em ambos os casos a autoridades tradicionais africanas foram duplamente atingidas pela dominação colonial. De uma forma direta, porque a dependência administrativa a que passaram a estar sujeitas acarretou a perda de soberania e os seus poderes militares, executivos, legislativos e judiciais foram largamente restringidos. Indirectamente, pelas transformações socioeconómicas que a colonização foi introduzindo nas sociedades locais." (LOMBARD, 1967 Apud FLORÊNCIO, 2003, p. 112).

A consequência mais imediata imposta pela Administração foi, sem dúvida, o enfraquecimento dos sistemas legais costumeiros. O sistema costumeiro abrangia as mais diversas esferas da vida na comunidade, tais como as disposições políticas, económicas, sociais e religiosas, assim como os modos de produção locais. Tudo estava intrinsecamente relacionado, interligado, mas com a Administração colonial essas esferas serão separadas, acarretado, portanto, o enfraquecimento do chefe local.

A lei costumeira ficou restrita aos aspectos da vida das populações que não colidiam com os interesses da Administração colonial. Portanto, essa subordinação do sistema costumeiro ao sistema legal europeu afetou, de forma considerável, o chefe tradicional que perdeu sua soberania, assim como viu restringido seus direitos executivos, isto é, deixou de poder decidir, de modo autónomo, sobre a vida das suas populações (FLORÊNCIO, 2003, p.113).

Outra dimensão importante acarretada pela imposição da Administração, e que merece ser destacada, concerne aos novos arranjos territoriais realizados. Tais reformas conduziram a profundas alterações dos antigos domínios territoriais, sobre os quais se exercia a autoridade tradicional. Nesses novos arranjos, muitas autoridades tradicionais saíram lesadas, perderam parcelas significativas das suas antigas jurisdições e, ao mesmo tempo, por consequência desse processo, perderam importância.

Essas são algumas das consequências da integração das autoridades tradicionais no sistema colonial. Cabe ressaltar que existem muitas outras consequências, assim como é importante referir, que nem sempre foram consequências negativas, como bem menciona Robert Tignor (FLORÊNCIO, 2003). Mas o certo é que tais impactos foram, muitas vezes, negativos e drásticos no que diz respeito a estrutura política africana tradicional. As autoridades tradicionais passaram a desempenhar, nesse processo, papeis em dois sistemas antagónicos, de modo que era quase impossível que isso não resultasse em consequências avassaladoras para seu prestígio e legitimidade - factor de fulcral importância para o sistema político tradicional-, perante a comunidade.

3. O papel dos chefes tradicionais moçambicanos na atualidade

Na impossibilidade de discorrer, nesse breve trabalho, de forma mais ampla sobre os impactos da colonização no continente africano, resolvemos nos limitar, por agora, nas consequências que tal sistema provocou no poder das autoridades tradicionais moçambicanas, esboçando o papel que esses chefes detêm na actualidade.

Segundo Florêncio (2008), a dominação colonial portuguesa constitui um segundo momento histórico fundamental na transformação da estrutura de poder tradicional Ndau, em Moçambique. Como veremos mais adiante, a dominação colonial portuguesa aprofundou o modelo de “enclaustramento” político-administrativo das autoridades tradicionais VaNdau.

Uma nova etapa na presença colonial portuguesa nos territórios da África surge em consequência do novo traçado das fronteiras moçambicanas estabelecidas através da Conferência de Berlim, em 1885. De acordo com o autor, no final do século XIX era evidente a incapacidade do Estado português em assegurar o princípio de ocupação efetiva, estabelecido na Conferência de Berlim, pois a presença portuguesa era escassa e os recursos do Estado insuficiente. Portanto, a solução encontrada foi desenvolver um "tipo de colonização singular que conjugava a participação do Estado português com a intervenção de capitais privados estrangeiros, particularmente através do recurso a companhias concessionárias" (como foi o caso da Companhia de Moçambique) (FLORÊNCIO, 2008, p. 3).

Durante esse período, que vai do final do século XIX ao início do século XX, a companhia desejava das populações locais a cobrança de impostos (de palhota) e o recrutamento de mão-de-obra local, deixado a cargo das autoridades tradicionais a responsabilidade dessa função. Assim, de acordo com o autor, desde essa época que as autoridades tradicionais VaNdau constituíam a ligação que possibilitava à Companhia enquadrar e controlar as populações rurais. Para além disso, também os deixava incumbidos de resolver questões ligadas a feitiçaria, pequenos roubos e questões familiares. Isto é, realizava-se uma administração indirecta, que contava com o “apoio” dos chefes tradicionais.

 Como é possível deduzir, as mudanças oriundas da introdução das Companhias no processo de gestão foram bastante significativas. Muitas delas já referimos anteriormente, pois afectaram quase todas as comunidades que foram subordinadas ao sistema colonial europeu. Convém ressaltar mais um dos efeitos perniciosos desse processo, que foi o enquadramento territorial das autoridades tradicionais. Desse modo, muitos chefes VaNdau tem seu território bastante limitado. A lógica da  Administração, ao realizar tal intento, era reduzir o espaço de influência dos chefes.

A partir do Estado Novo presencia-se uma nova fase da política colonial portuguesa. Assim, "naugura-se uma época de forte actividade legisladora, que iria assumir uma grande importância para a regulação da “vida indígena”, na qual se destacam o estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas da Guiné, Angola e Moçambique, publicada em 1929, a Consituição da República, o Acto Colonial, a Carta Orgânica e a Lei da Reforma Administrativa Ultramariana (…)" (FLORÊNCIO, 2008, p.4).

A partir de então, é vedada a integração plena das populações indígenas, devendo estas continuar a reproduzir-se segundo os moldes tradicionais. Logo, esse modelo assume a duplicidade política e jurídica intrínseca a sociedade colonial. Como bem menciona Pacheco (2002), o Estado colonial não deu um tratamento adequado ao poder tradicional, não houve respeito pelos seus usos e costumes. O que o Estado colonial fez foi desestruturar o poder tradicional reduzindo-o a expressão dos seus interesses.

O que importa ressaltar é que, apesar de todas essas mudanças, muitas das quais de carácter negativo, as transformações que o poder tradicional Ndau sofreu, desde o século XIX e, sobretudo, com a administração portuguesa, implicaram uma grande perda de autonomia política, uma maior dependência face ao aperelho administrativo local e a perda de legitimidade face às populações (FLORÊNCIO, 2008, p.8). No entanto, esse processo não foi capaz de conduzir a uma completa perda de legitimidade e, assim, as autoridades ainda gozam de prestígio e obediência local.

Como já referimos, o papel mágico- religioso dos chefes é fundamental para os africanos, de modo que o poder político, em princípio, não separava-se dessa vertente religiosa. Como destaca Florêncio, apesar de todas as mudanças inseridas pela administração que acabou por interferir no sistema tradicional, a vertente mágico-religiosa permaneceu praticamente intacta, sobretudo a organização e condução das cerimónias coletivas. O fundamento que legitimava os chefes tradicionais prevaleceu, pois estes continuavam a ser vistos, pela população, como o intermediário entre os antepassados e a comunidade. Isto é, era a via de comunicação entre os espíritos e os vivos.

Grande parte dos africanos, nomeadamente os moçambicanos, vive no seu mundo religiosos, que é o seu mundo social. Não sendo possível compreender a sua política tradicional, se antes não procurarmos entender a sua religião. Os moçambicanos são, pela sua tradição cultural, profundamente religiosos; a religião faz parte da sua vida cotidiana, está arraigada à sua personalidade.

3.1 As consequências da independência moçambicana param os Chefes tradicionais

A Independência de Moçambique, em 1975, trouxe mudanças para significativas para os chefes tradicionais. De acordo com Florêncio (2008), a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) tentou implementar um processo de modernização do Estado, assente numa política de socialização rural.

Houve uma tentativa de aniquilar os modelos de reprodução social tradicionais, nomeadamente a produção familiar de subsistência, a poligamia, as estruturas de poder tradicionais, os médicos e curandeiros tradicionais, e o culto aos antepassados.

Desse modo, ao proibir a realização das cerimónias tradicionais, a FRELIMO abala um dos pilares simbólicos fundamentais da sociedade Ndau. O carater mágico-religioso, assente na figura do chefe, que conduz as mais diversas cerimónias, é um aspecto importante para os africanos, como nos diz Cuahela (1996), reforça a personalidade desse povo. Logo, " a proibição da FRELIMO, quer em relação às cerimónias tradicionais, quer às actividades mágico-religiosas, implicou, na generalidade, dois tipos de consequências desestruturantes do modelo de reprodução social Ndau: constituiu uma forte ruptura no sistema de comunicação entre os espíritos e os vivos, fundamental para a manutenção e reprodução da ordem cosmológica e, por conseguinte, da ordem social terrena; permitiu uma enorme expansão da feitiçaria, dada a ausência dos mecanismos tradicionais de controlo, nomeadamente das actividades desempenhadas pelas personagens mágico-religiosas e pelas autoridades tradicionais" (FLORÊNCIO, 2008, p.10).

Em 1974 o processo de destituição de tais autoridades inicia-se formalmente. De acordo com Florêncio a população era convocada a participar de reuniões, nas quais eram comunicadas que a FRELIMO tinha decidido acabar com o sistema de regulados. No entanto, em 1977 e 1922, durante o conflito armado com a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) as autoridades tradicionais irão voltar a desempenhar um papel importante.

Em Outubro de 1992 é assinado o Acordo Geral de Paz, que finda o conflito. A partir desse período o Estado reuniu esforços para no sentido de contactar as autoridades tradicionais a fim de atribuir-lhes algumas tarefas (FLORÊNCIO, 2008). A partir de então, o Estado, segundo o autor, passa a utilizar-se do modo de administrar presente no período colonial – indirect rule- utilizando para o cumprimento de tarefas semelhantes as que eram obrigados a desempenhas na época colonial. Enfrentam os mesmos problemas de enquadramento e controle da população, os quais enfrentaram também na época colonial, e têm empreendido o mesmo tipo de manipulação sobre as instituições. Nesse contexto, o autor afirma que "as actuais dinâmicas políticas, económicas, sociais e religiosas no universo rural Ndau e no moçambicano, em geral, são muito mais complexas e fragmentadas do que durante o período colonial. Deste modo, e desde logo, as autoridades tradicionais confrontam-se com uma pluralidade de actores sociais muito diversificada, quer em termos da sua constituição sociológica, quer em termos de legitimidade e motivações políticas locais" (FLORÊNCIO, 2008, p. 22).

Esses novos atores sociais, tais como as ONGs, as autoridades e organizações estatais, os professores, pastores, enfermeiros, comerciantes, isto é pessoas importantes e com prestígio na comunidade, acabam por ofuscar, muitas vezes, o papel do chefe tradicional. O chefes tradicionais se confrontam com essa multiplicidade de atores locais, assim como ainda desempenham várias tarefas para e papéis modernos para as administrações distritais, assim como de enquadramento e mobilização política partidária.

A par desse contexto, Florêncio (2008) afirma que estamos diante de um neo-direct rule entre Estado e autoridades tradicionais no processo de formação do Estado a nível local. Ou seja, as autoridades tradicionais passam a desempenhar, na actualidade, um papel similar ao que desempenhavam na época colonial para as administrações locais. As autoridades tradicionais moçambicanas colaboram para a formação e consolidação do Estado a nível local, desempenhando determinadas tarefas, e ainda detém uma forte legitimidade nos espaços rurais moçambicanos.

Considerações finais:

Antes da chegada dos europeus, a maior parte do território africano era governada por seus próprios reis, rainhas, chefes e unidades políticas diversas. Essa situação mudou radicalmente, principalmente a partir do período de administração colonial. Como vimos anteriormente, o poder político tradicional foi o mais afectado. O chefe que antes era a figura autocrático que decidia sobre os mais diferentes aspectos da sua comunidade, com a chegada dos europeus tem seu poder reduzido consideravelmente.

Ao ser incorporado na Administração colonial, o chefe tradicional assumiu papéis antagónicas que, naturalmente, resultou em consequências intensas para o prestígio e legitimidade do poder tradicional. A figura do Régulo, que nem sempre era legitimado pela comunidade,  que foi conduzida ao cargo por meros interesses coloniais, sem que possuísse direito e legitimidade para o cargo, é uma das consequências inexoráveis no sistema político tradicional. O chefe tradicional perdeu sua soberania e autoridade de antes, isso é inegável.

Na atualidade moçambicana, os chefes tradicionais assumem um papel semelhante ao que desempenhavam na época colonial. Colaboram para a formação e consolidação do Estado. Mas sua autoridade depara-se, nos dias e hoje, com outros atores sociais, que também dispersam a autoridade, antes restringida ao chefe local. Apesar de tudo, ainda gozam de prestígio e obediência, sobretudo nas áreas rurais, devido o forte carácter religioso intrínseco às populações africanas, sua figura se mantêm importante, apesar de não deter a autonomia de antes.

Bibliografia:

CUAHELA, (1996). Autoridade Tradicional em Moçambique. Nucleo de Desenvolvimento Administrativo Projecto “descentralização e autoridade tradicional”.

Fortes, Meyer e Evans-Pritchard, Edward. 1979. "Sistemas Políticos Africanos". Em Llobera, J. Política Antropologia.Anagrama, Barcelona. pp.85-97.

FLORÊNCIO, F. (1994), Processos de Transformação Social no Universo Rural Moçambicano Pós-Colonial. O Caso do Distrito do Búzi, tese de mestrado, Lisboa, ISCTE.

______ (2003), As Autoridades Tradicionais vaNdau. Estado e Política Local em

Moçambique, tese de doutoramento, Lisboa, ISCTE.

______ (2008), Autoridades Tradicionais vaNdau de Moçambique: o regresso do indirect rule ou uma espécie de neo-indirect rule? Análise social, vol. XLIII, pp.369-391.

PACHECO, F. (2002). Autoridades Tradicionais e Estruturas locais de poder em Angola: Aspectos essenciais a ter em conta a futura administração Autárquica. (Texto elaborado por Fernando Pacheco, agrónomo e Presidente da ADRA-Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente no âmbito do Ciclo de Palestras sobre Descentralização e o Quadro Antárquico em Angola, organizado pela Fundação Friedrich Ebert, Luanda, 12/3/02).

UNESCO, 2010. História geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935 / editado por Albert Adu Boahen. – 2.ed. rev. – Brasília.



[1] Aluna do Mestrado em Antropologia Social e Cultural – Universidade de Coimbra (UC). [email protected]

[2] Cf. UNESCO, 2010. História geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935 / editado por Albert Adu Boahen. – 2.ed. rev. – Brasília.

[3] Os chefes tradicionais, voluntária ou involuntariamente, passam a trabalhar para a administração colonial e transformam-se em subalternos da administração, uma espécie de auxiliar da administração pública, fazendo a ligação entre a administração colonial e a comunidade, com a designação genérica de Régulos (Cuahela, 1996, p.29).

[4] É necessário distinguir sistema de parentesco de sistema de linhagem. O sistema de parentesco é o conjunto de relações que unem o individuo com os outras pessoas e com unidades sociais concretas, através de laços efémeros da família bilateral, enquanto o sistema de linhagem é baseado num sistema segmentaria de grupos permanentes baseados na filiação unilateral. Desse modo, apenas este último fornece unidades corporativas com funções politicas. (cf. Fortes e Evans-Pritchard, 1979).

[5] Cf. Cuahela, 1996.

[6] Cf. Cuahela, 1996; Pacheco, 2002.

[7] Betts, 2010. “A dominação europeia: métodos e instituições” in: História Geral da áfrica., UNESCO, vol. vii.

[8] Cf. Cuahela, 1996.