Não é uma tarefa das mais fáceis falar sobre dois temas tão polêmicos em um espaço tão curto. Para tentar solucionar este problema, tentarei o máximo possível discutir essencialmente qual foi o peso que o Holocausto teve no processo de criação do Estado de Israel, se é que podemos medir tal evento.

De um modo geral, existem quatro maneiras de enxergar esta relação. Alguns especialistas defendem que a Shoah(1) foi um elemento fundamental para a criação de um estado judeu. Esta corrente se divide em duas justificativas. Os primeiros argumentam que as potências ocidentais, após descobrirem as atrocidades nazistas, fizeram uma espécie de mea culpa. A criação de Israel, três anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial seria, desta forma, um pedido de desculpas para um povo que tanto sofreu diante de países que nada fizeram.(2) No entanto, existe uma versão árabe, menos acadêmica do que política, de que sionistas teriam colaborado com os nazistas, inclusive financiando a ascensão de Hitler. O objetivos desta aliança seria provocar uma migração para a Palestina, mesmo que pelo terror e de modo forçado.(3) Muitos revisionistas defendem esta versão, acreditando numa espécie de "espírito maquiavélico" dos judeus.

De um lado diferente, estão aqueles que acreditam que o Holocausto foi importante, porém não fundamental para entender 1948.(4) Na verdade múltiplos fatores se somaram para que existisse um "clima favorável" à partilha da Palestina. A Shoah teria sido uma delas. Importante, mas não a única explicação.(5) Será este o caminho que tentarei defender neste breve ensaio.
Por fim, em menor número, há estudiosos do tema que chegam a dizer que o Holocausto atrapalhou as negociações para a criação do estado judeu. O maior ícone desta vertente é o professor Yehuda Bauer, da Universidade de Jerusalém. Segundo este autor, a morte de milhões de judeus provocou, como conseqüência lógica, a diminuição do número de pessoas para migrarem à Palestina. A pressão para o estabelecimento de um Estado teria sido esvaziada na medida em que existiam 6 milhões a menos de vozes a reclamá-lo.(6)

Feito esta introdução, é preciso entender que a criação de Israel não nasceu com o Holocausto. Este desejo envolve questões religiosas, políticas e sociais. Desde a antiguidade que os judeus buscam a reunião de seu povo na chamada Terra Prometida, ou Canaã.

Os hebreus(7) habitam a região da Palestina a cerca de 2.200 anos. Por volta do ano de 1.500 a.c. eles migraram para o Egito e lá permaneceram por mais ou menos 4 séculos. Passado este tempo, retornaram à Terra Prometida, onde cerca de 100 anos depois foram unificadas as tribos judaicas em torno de um regime monárquico. Com a morte do último rei (c. 931 a.c.), Salomão, as tribos se separaram em Israel, ao norte, e Judá, ao sul. Este cisma facilitou a dominação por outros povos, obrigando este povo a constantes migrações. A primeira grande diáspora foi para a Babilônia, como escravos, em 586 a.c. Após os babilônios sucumbirem para os persas (539 a.c.) parte dos judeus retornaram à Palestina. A Segunda grande diáspora foi já na Era Cristã, quando foram expulsos pelo Império Romano. Em 70 d.c., Tito destruiu Jerusalém em represália a uma rebelião local. Após este evento, sobretudo com o declínio do Império romano e a ascensão do Islã no Oriente Médio, a Palestina passou a ser povoada por árabes.

No século XVI os turcos otomanos iniciam o seu domínio sobre esta região, que iria durar até a Primeira Guerra Mundial, quando o Império Otomano é desintegrado e a região passa para o domínio britânico.

Durante todo este tempo, os judeus foram obrigados a se espalharem pelo mundo. Na grande maioria dos locais onde viviam eram perseguidos e discriminados. O antissemitismo da população era baseado em idéias como o deicidio(8), a profanação da hóstia sagrada(9) e aos supostos rituais macabros(10) realizados por este povo.(11) Aos poucos foram surgindo os guetos, que apesar de representar um claro gesto de exclusão acabou por proteger esta população dos ataques de cristãos ? os chamados pogroms.(12) Este isolamento acabou por reforçar o que mais caracterizava os judeus, oportunizando a manutenção da cultura judaica e dos laços de união diante de um agressor externo.

Os ideais da Revolução Francesa exportaram a "necessidade" de igualar juridicamente todos os cidadãos. Neste embalo, o século XIX foi o momento em que os judeus saíram dos guetos e iniciaram um processo de emancipação. No entanto, mesmo que tivessem deixado de ser parias políticos e civis, os judeus continuavam sendo parias sociais.(13) No século do cientificismo, as teorias raciais viriam para fornecer uma nova (sem excluir as outras) justificativa para o antissemitismo. Ou seja, a assimilação dos judeus nas sociedades européias supostamente os colocaram em situação de igualdade. Era preciso, portanto, diferenciá-los de modo permanente.(14) Explode a noção do judeu como uma raça degenerada e que deve ser separada e até destruída do convívio com as demais raças, com a grave possibilidade de contaminá-las. Os judeus fizeram uma conversão de "forasteiros religiosos" a "forasteiros étnicos"(15)

Ainda como consequência da emancipação, multiplicaram-se casos de pogroms pela Europa, sobretudo na parte oriental. O sionismo surge, então, como uma contra ideologia.(16) É necessário enfatizar que este movimento é baseado em preceitos teológicos, a posse da Terra Prometida, e que neste contexto é retomado em seu aspecto político social, como defesa diante dos ataques antissemitas e como desejo de viver em um lugar em que os judeus tivessem voz e comando.(17)
Mesmo que não fosse um movimento significativo, se considerarmos a totalidade da comunidade judaica na Europa, o sionismo influenciou, em parte, milhares de judeus a migrarem para a Palestina durante a segunda metade do século XIX .(18)

Já desde a década de 1870 que ingleses desenvolveram uma espécie de sionismo cristão, fazendo uma interpretação da bíblia e convencendo-se de que deveria haver uma pátria judaica na Palestina.(19) Avançando à derrocada do Império Otomano na Primeira Guerra, chegamos ao ano de 1917 ? um marco do processo de criação de um Estado judeu. Pouco antes de assumirem o controle da região palestina, o que aconteceria em 1920, os britânicos se manifestaram no que ficou conhecida como a Declaração Balfour.(20) Neste texto era feito uma espécie de promessa de que haveria de se formar um Estado judeu na Palestina.

A onda de migrações continuava, mesmo que tímida. Porém, as raízes do conflito entre árabes e judeus estava lançada: o que fazer com os árabes que viviam nestas terras durantes séculos?(21) A estudiosa do assunto, Karem Armstrong, ao falar do processo de negociação que se seguiu entre judeus e árabes, intermediadas pelas potências ocidentais, sobretudo a Inglaterra, menciona que um dos fatores fundamentais para se entender a vitória dos judeus israelenses em detrimento dos palestinos foi que os primeiros aceitavam as ofertas que lhes eram oferecidas, mesmo que não fosse considerado o ideal, enquanto o segundo grupo insistia na negativa quando não lhes era proposto o que desejavam.(22)

Na verdade, o que promoveu o sucesso do sionismo e acelerou a migração para a Palestina não foi o Holocausto, mas antes disso o Nazismo. Foi durante as perseguições dos anos 1930 que uma parte dos judeus na Europa perceberam que já não havia espaço para eles neste continente e que era preciso encontrar um novo lar livre destas tormentas. Do outro lado, árabes argumentavam que os acontecimentos na Alemanha eram uma desculpa para os judeus tomarem posse de uma terra que não eram deles: Por que deviam perder seu país em função dos crimes cometidos na Europa(23), perguntavam os palestinos.
A principal tática utilizadas pelos judeus foi a de comprar terras na sua Canaã. Os árabes que as vendiam eram visto como traidores que enfraqueciam a comunidade. Em 1937 e 1938, duas sucessivas comissões estudaram as formas de partilha, baseadas em 2 estados. No fim da década de 1930, 1/3 da Palestina já era formada por judeus.(24)

Como podemos ver, antes de iniciado o assassinato de milhões de judeus pelos nazistas o problema de se estabelecer um Estado judaico na Palestina já era urgente. Apontar o Holocausto como fator fundamental para a criação do estado de Israel é menosprezar o histórico de lutas do sionismo, ignorar as perseguições antissemitas e conseqüentes ondas de migrações dos judeus para a Terra Prometida. Além disso, é desprezar as promessas internacionais de instituir um lar judeu na Palestina. De nada adiantaria o Holocausto se não estivesse dentro deste contexto. Dizer isso não é afirmar que o Holocausto não contribuiu, pois consideramos a ideia do "clima favorável" a mais correta. Ou seja, diante das atrocidades reveladas após o fim da Segunda Guerra e somadas ao fato de que um dos líderes dos palestinos era aliado de Hitler,(25) poucos seriam os que levantariam a voz para se opor a solução já pensada de se criar um Estado judeu na Palestina.




1. Shoah é como os judeus preferem se referir ao Holocausto, já que esta última palavra significa "sacrifício", o que levaria a uma interpretação específica sobre os acontecimentos que levaram à morte de milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial.
2. Esta posição aparece inclusive na Declaração de Independência de Israel, lida por David Bem Gurion, em Tel Aviv, em 14 de maio de 1948: "A catástrofe que recentemente caiu sobre o povo judeu - o massacre de milhões de judeus na Europa - foi outra demonstração clara da urgência de resolver o problema da falta de um lar através do reestabelecimento em Eretz-Israel do Estado Judeu (...)". Para ver o texto na íntegra, <http://taglit.online.com.br/independence.html> Acessado em 20/12/2010.
3. Versão divulgada por um dos líderes do Hamas, grupo palestino extremista, Abdal Aziz Rantizi. Ele chegou a publicar um artigo "Qual é o pior ? O Sionismo ou o Nazismo?". Ver MILMAN, Luis. O Holocausto: verdade e preconceito. Revista Espaço Acadêmico. Nº. 43. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/043/43cmilman.htm> Acessado em 29/10/2010.
4. Ano da instituição do estado de Israel.
5. A expressão "clima favorável" é utilizada, por exemplo, em: OLIC, Nelson Bacic. Oriente Médio: uma região de conflitos. São Paulo: Moderna, 1991, p. 57.
6. Ver "O Holocausto e a criação de Israel. In: Holocausto: um tema em debate. Análise Shalom. (n.3). São Paulo, Editora Shalom, 1979, pp. 268-276.
7. Povo que deu origem aos judeus.
8. Acusação pela morte de Jesus. Muitos usam como base a passagem de Mateus 27,25: "Que o seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos", teria dito o povo judeu após "condenar" Jesus e absolver Barrabás.
9. Dizia-se que os judeus, por exemplo, chicoteavam a hóstia, até que ela sangrasse (sic).
10. O sumiço de crianças num povoado era logo "solucionado" com a acusação de que os pequenos eram sacrificados em rituais religiosos pelos judeus.
11. Ver FONTETTE, François de. História do Anti-semitismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.
12. Palavra de origem russa que define um organizado, embora aparentemente espontâneo, ataque de multidão à determinada coletividade judaica, com saques, violência e massacre. Definição retirada de ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, instrumento de poder. Rio de janeiro: Documentário, 1975, p. 106.
13. ARENDT, Hannah. Op. Cit. p. 95.
14. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 79-80.
15. MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009, p. 36.
16. ARENDT, Hannah. Op. Cit. p. 17.
17. O Sionismo não era algo homogêneo, existindo várias nuances que permanecem até hoje. Ver MARGULIES, Marcos. Do racismo ao Sionismo: uma análise conceitual. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1976, p. 92-121. No século XIX, o sionismo é basicamente secular. Ver ARMSTRONG, Karen. Jerusalém: uma cidade, três religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.416.
18. Já na década de 1880, quando Nathan Birnbaim usa pela primeira vez o termo "sionismo" e dois anos depois acontece o Primeiro Congresso Sionista, estima-se que havia de 10 a 24 mil judeus na Palestina. Ver SMITH, Dan. O atlas do Oriente Médio: conflitos e soluções. São Paulo: Publifolha, 2008, p. 36.
19. ARMSTRONG, Karen. Op. Cit., p.412.
20. Referência ao ministro do Exterior britânico, Arthur Balfour, que fez a declaração.
21. Em 1917, ano da Declaração Balfour, estima-se que 90 % da população da Palestina era de árabes. Ver ARMSTRONG, Karen. Op. Cit., p.426.
22. ARMSTRONG, Karen. Op. Cit., p.426.
23. ARMSTRONG, Karen. Op. Cit., p.438.
24. SMITH, Dan. Op. Cit., p.37.
25. Trata-se do mufti de Jerusalém, Hajj Amin al-Husaini.