O PAPEL DA FAMÍLIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CRIANÇA

Mauritânia Alves Santos de Melo
Conselheira Educacional e Familiar pela Universidade Adventista de São Paulo, UNASP ? EC.
Graduada em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília - UCB

Resumo: Dentre as várias influências que afetam o desenvolvimento infantil e a construção da identidade da criança, talvez, nenhuma seja tão significativa como a influência da família. Este trabalho, fundamentado em referências bibliográficas e observações vivenciais, visa analisar o papel da família e os fatores que interferem no processo de construção da identidade da criança, a partir desta perspectiva familiar.

Palavras-chave: família, criança, adolescente, identidade.

Abstract: Among the many influences that affect child development and construction of the child's identity, perhaps none is as significant as the influence of the family. This paper, based on references and experiential observations, aimed at examining the role of family and the factors that interfere with the process of building the child's identity, from this perspective family.

Key-words: family, children, adolescents, identity.

Introdução

A despeito da variedade de conceituações a respeito da estrutura familiar, os elementos que a constituem, bem como o impacto de suas influências sobre cada membro da família, são incontestáveis. Dentro desta perspectiva as crianças são, de maneira singular, afetadas.
No processo de desenvolvimento humano, a infância tem especial relevância, pois nela se definem aspectos fundamentais da pessoa por toda sua vida. Portanto, compreender o papel da família na construção da identidade da criança é de suma importância, tanto para orientação dos que têm a responsabilidade de educar e formar os caracteres infantis, como para ajudar nos possíveis transtornos decorrentes de interferências negativas nesse processo.
Diante desta realidade há necessidade de se levantar dados e avaliar fatores que possam ter relação direta ou indireta da projeção da família sobre as crianças que estão inseridas em seu contexto social. Cada componente da família deveria ter consciência de sua participação nesse processo e desempenhar seu papel de maneira responsável.
Valores éticos e morais, princípios e conceitos são repassados por preceito e exemplo, e desenvolvidos no relacionamento interpessoal. Dificilmente haja um ambiente mais favorável para que estes aspectos relevantes da vida alcancem as pessoas, do que a família.

Necessidade de uma reflexão temática

Embora exista vasta literatura abordando temas relacionados ao assunto, é de significativa importância uma reflexão do tema dentro de uma visão sistêmica. Coletar pareceres de especialistas no comportamento humano nos ajuda a sistematizar algumas ideias e conceitos. Áreas de estudo do comportamento humano têm procurado trazer melhor compreensão dos elementos que regem as nossas ações. A sociedade é totalmente afetada pela maneira como os indivíduos vivem.
Levando-se em conta que a família é a célula que constrói a sociedade, o que se passa dentro dela trará conseqüências sobre a sociedade. Portanto, discutir de maneira profissional o tema, pode trazer benefícios sociais se suas observações e conclusões forem aplicadas por aqueles que têm responsabilidade sobre as crianças. Uma melhor compreensão no que diz respeito ao processo de construção do indivíduo em sua família pode, tanto trazer benefício profissional como pessoal. Afinal, quase todos estão inseridos em algum contexto familiar.


Conceituação de família

A multiplicidade de definições sobre família, deriva do fato de que estas conceituações estão inseridas dentro de uma conjuntura social, política e econômica, tornando-os subjetivas e distintas, todavia, guardadas as devidas aplicações, complementares.
A Constituição Federal de 1988 representou um marco na evolução do conceito de família, ao corporificar o conceito de Lévy-Brul, de que o traço dominante da evolução da família é sua tendência a se tornar um grupo cada vez menos organizado e hierarquizado e que cada vez mais se funda na afeição mútua. (GENOFRE, 1997)
A família é um sistema no qual se conjugam valores, crenças, conhecimentos e práticas, formando um modelo explicativo de saúde-doença, através do qual a família desenvolve sua dinâmica de funcionamento, promovendo a saúde, prevenindo e tratando a doença de seus membros. (ELSEN, 2002).
Família também pode ser conceituada como uma unidade de pessoas em interação, um sistema semiaberto, com uma história natural composta por vários estágios, sendo que a cada um deles correspondem tarefas específicas por parte da família. (BURGENS; ROGERS apud ELSEN, 2002).
Podemos definir família como um sistema inserido numa diversidade de contextos e constituído por pessoas que compartilham sentimentos e valores formando laços de interesse, solidariedade e reciprocidade, com especificidade e funcionamento próprios.

A construção de identidade da criança

Cada indivíduo possui elementos comuns no decorrer de sua história e na construção de sua identidade. "A construção da identidade abrange o caminho exploratório percorrido pelo jovem dessa faixa etária rumo ao que o define como uma pessoa única, singular." (MARRA; COSTA, 2010, p. 53)
Segundo Jamiel Lopes (1995) a criança nasce desprovida de juízo moral. O que Freud chama de censura ou superego. O recém-nascido possui apenas uns poucos instintos: sugar, respirar, engolir, gritar, etc. Os valores são desenvolvidos através dos relacionamentos e das influências do meio em que vive. "A partir daí, não são mais os instintos que controlarão a criança, mas o comportamento aprendido por intermédio das outras pessoas." (LOPES, 1995, p. 78)
A construção da identidade é um processo e deve ser direcionado na infância até a adolescência. "Se não faz isso durante a adolescência, que é o momento oportuno, o mais provável é que acabe acontecendo mais tarde," afirma Nancy Van Pelt. (2006, p. 86)
A identidade da criança se construirá naturalmente conforme seu desenvolvimento. Por isso aqueles que os tem sob sua responsabilidade devem estar atentos para conduzi-las nesse processo.
Augusto César (1996, p. 42) nos diz que:

O momento de começar a ensinar a obediência é quando o bebê ainda está nos braços da mãe. Antes mesmo que a razão se desenvolva, pelo hábito, os filhos podem, e devem, ser ensinados a obedecer. Os pais são os primeiros professores dos filhos, e como tal, têm a responsabilidade de prepará-los para a vida.

Meibel Guedes (2004, p.100) nos declara que a criança pequena não tem uma imagem clara de si mesma. Ela enxerga através do espelho da avaliação de seus pais. "Dizer para ela constantemente que é má, preguiçosa, incapaz, estúpida, tímida, desajustada e incompetente criará nela a tendência de agir de acordo com as imagens que lhe atribuíram.
O Dr. James Dobson (1987) sintetiza este conceito ao dizer que as crianças são capazes de aprender comportamento social logo no começo da vida, e é tarefa nossa fazê-las "sentir" pelos outros.
O processo de construção da identidade da criança envolve conceituação filosófica e de preceitos, mas deve ser pragmática. As crianças precisam ter parte nos deveres domésticos. "Devem ser instruídas sobre como ajudar ao pai e a mãe nas tarefas pequenas que possam cumprir." (WHITE, 2004, p. 225).
Se há algo relevante e primordial no desenvolvimento infantil, é o seu caráter. Ellen G. White (2008, p. 225) nos afirma que "a formação do caráter é a obra mais importante que já foi confiada a seres humanos. Nunca antes foi seu diligente estudo tão importante como hoje."
White (2007, p.132) sumariza o quanto uma criança é moldável ao mencionar que é durante os primeiros anos da vida da criança que a mente é mais suscetível a impressões, sejam boas ou más. "Durante esses anos, faz-se decidido progresso, quer na direção certa, quer na errada; de outro, conhecimento muito sólido e valioso. A força do intelecto, o saber substancial são riquezas que o ouro de Ofir não pode comprar. Seu preço está acima do ouro ou da prata."

O papel da família

Certamente a família é a matriz de identidade da criança, os pais têm papel fundamental nesse processo. "A relação que um e outro estabelecem com os filhos lhes dá dimensões de reconhecimento, confirmação e posição afetiva dentro do núcleo familiar." (MARRA; COSTA, 2010, p. 160).
A família pode ser considerada a matriz identitária de seus membros (MINUCHIN, 1982) ou a placenta social do desenvolvimento afetivo-social (MORENO, 1974). Ausloos (1996) nos diz que as famílias são competentes em sua identidade para atravessar e resolver as suas crises. Isso significa ter a informação necessária para funcionar de maneira satisfatória. Informação no sentido dado por Batson (1972), que faz a diferença. (MARRA; COSTA, 2010, p. 172).
Deise Reis (2005, p.16) nos afirma que "é responsabilidade dos pais ensinar aos filhos lições de obediência, respeito, domínio próprio, como lidar com as finanças, bondade e cortesia, bem como prepará-los para a independência."
Para Augusto Cesar (2000, p.91):

O modo como a criança é criada tem profundas conseqüências na estruturação da sua personalidade, portanto, os primeiros anos de vida são de fundamental importância na construção de sua identidade. Quando a criança nasce, não tem identidade psíquica definida, nem auto-imagem formada, tudo não passa de um continuum materno, uma extensão da mãe.

A família pode contribuir grandemente no para o desenvolvimento da criança, garantindo os cuidados necessários para a sobrevivência da espécie e para a socialização de seus membros, transmitindo os valores culturais da sociedade à qual pertence. (PENSO; COSTA, 2008).
A família pode ser definida como o lócus potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis, felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrio e desvios de comportamento. Nesta perspectiva, poderíamos dizer que a principal função da família é a defesa da vida, cabendo a ela a responsabilidade pela criação e formação de seus membros, assegurando-lhes não só a manutenção da vida, mas também a qualidade de vida. (RIBEIRO; COSTA, 2004)

Influências no processo de construção da identidade

As influências no processo de construção da identidade da criança são positivas ou negativas, e se revelam dentro do ambiente familiar ou fora dele. Estas influências externas podem ser encontradas nos veículos de comunicação, na mídia e nas mais variadas situações de convivência social da criança.
O exemplo das pessoas que circundam a criança fala mais alto que muitas palavras. Meibel Guedes (2004) entende que precisamos ser sinceros, honestos, íntegros, cumprir nossas obrigações, ter sempre uma linha aberta para a comunicação com eles e aceitá-los com amor incondicional, amá-los e protegê-los da melhor forma possível contra as influências negativas, sempre mostrando o caminho do bem e fazendo-os pensar ao tomarem decisões. (GUEDES, 2004).
Um dos grandes desafios da educação na educação infantil está relacionado aos valores éticos morais e á solidificação do caráter. O mundo está cheio de questões morais difíceis. Na adolescência muitos dos padrões e valores da infância são abandonados. "Como os padrões definitivos ainda não foram atingidos, a incerteza intelectual, as dúvidas constantes, a instabilidade emocional e as oscilações de humor caracterizam essa fase." (LOPES, 1995, p.85).
Amizade, companheirismo e diálogo franco e aberto podem contribuir para que este processo seja sedimentado de maneira harmônica. "O diálogo também se faz por meio de gestos, inflexões, de vozes e de olhares." (FAGUNDES, 2001, p. 44).
O Dr. Ross Campbell nos afirma que no início a criança espera dos pais uma orientação para a vida. O fato de ela ter êxito em obter isso dos pais depende de duas coisas: se eles próprios encontram direção e se o filho pode aceitar os valores paternos e apropriar-se deles. "A criança que não consegue sentir-se genuinamente amada pelos pais achará isto difícil." (1999, p. 91).
As carências afetivas da infância podem desenvolver sentimentos de menos-valia, insegurança emocional e doenças psicossomáticas. Para os terapeutas familiares sistêmicos, a família é considerada um sistema aberto, em que os comportamentos de uns influenciam os comportamentos dos outros em uma concepção circular (retroalimentação). (RIBEIRO; COSTA, 2004)
Segundo Calil (1987) há um movimento de circularidade na família sem limite de início e de fim, no qual ocorre um padrão de influência mútua provendo a interação entre seus membros. A família constitui-se assim, como um sintoma aberto que se relaciona também com sistemas extra-familiares como escola, comunidade, vizinhos, parentes, advogados e juízes entre outros. (COSTA; LIMA, 2008)
Ellen White (1987, p. 55) nos declara que:

É um triste fato, quase universalmente admitido e deplorado, que a educação do lar e o ensino da juventude de hoje têm sido negligenciados. Não há um campo de ação mais importante do que o que foi designado aos fundadores e protetores do lar. Das obras, confiadas a seres humanos, nenhuma existe tão repleta de conseqüências de grande alcance, como a obra dos pais.

Todos que desenvolvem algum papel social no que se refere à formação infantil devem assumir suas responsabilidades de maneira consciente. Nancy Van Pelt (2006) nos afirma que a criança é incapaz de controlar completamente sua conduta; os pais devem controlar seu comportamento com diversas restrições. Essas restrições são impostas primeiramente pela família e depois pela escola, a igreja e a sociedade.
Chega um momento em que a influência familiar é minimizada e cada pessoa assume seu próprio papel na sociedade. Isto pode ser definido como individuação. "Apesar de ter ligações com a construção da identidade, a individuação representa um processo distinto. Ocorre com a separação emocional que o adolescente faz em relação às figuras de maior influência sobre ele até então, seus pais." (MARRA; COSTA, 20101, p. 53).
A contribuição da família na construção da identidade dos filhos leva-nos à reflexão sobre às dificuldades no processo. Segundo Sarti (2003, p.26), "dentro dos referenciais sociais e culturais de nossa época e de nossa sociedade, cada família terá uma versão de sua história, a qual dá significado à experiência vivida."
Certamente será muito difícil, por que não dizer impossível, evitar que influências perniciosas alcancem as crianças, portanto é preciso se fazer o máximo para lhes deixar um legado positivo. A despeito das limitações e fragilidades humanas esforços conjugados podem ser bastante úteis.
A sociedade pode se posicionar através de seus diversos seguimentos. Governos, instituições, entidades, empresas e escolas , mas nada substitui ou supera o valor de uma família sóbria, equilibrada e consciente de suas responsabilidades no processo de construção da identidade das crianças.

Metodologia

A pesquisa foi realizada de forma qualitativa, partindo de pesquisas bibliográficas que foram cuidadosamente selecionadas e deram o embasamento teórico para essa temática.

Considerações finais
A família tem um papel fundamental no processo de construção da identidade da criança, mas não podemos ignorar outras formas de influencias neste processo, uma vez que esse indivíduo está inserido em outros sistemas como a escola, igreja, e até mesmo com a mídia que tem exercido, cada vez mais, uma forte influencia na construção da identidade dos mesmos.
Considerar o papel da família na construção da identidade da criança e os processos que envolvem seu desenvolvimento, bem como os fatores que possam influir no processo é sumamente relevante para quem cuida ou lida com crianças. É preciso buscar elementos de orientação, suporte e apoio aos profissionais que atuam na área de aconselhamento familiar e educacional, sociólogos, antropólogos, assistentes sociais, educadores, cuidadores e pais.

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