O PALAVRÃO NA BOCA DO POVO

 

A palavra é a unidade da língua que veste uma ideia. Ela é recriação da realidade; não existe por si mesma.  Tentamos, por seu intermédio, traduzir nossos pensares, complementados por códigos subjacentes que lhe acrescente significados. O gestual e a máscara facial, por exemplo, são suas complementações.  O silêncio é uma forma de expressão que pode significar uma mensageira inteira que nenhum outro código seria capaz.

O Movimento que está nas ruas, de todo o Brasil, vem se manifestando de todo o jeito possível: bandeiras, cartazes, pichações; caras borradas; expressões indignadas, olhos ejetados, cenhos cerrados. Tudo, absolutamente, tudo, tenta – apenas tenta – comunicar o tamanho da indignação de um povo, que se extravasa e se expressa em gritos, cantos, choros, lágrimas, palavrões, capturada por todos os tipos de mídia, repercutida na imprensa de todo o planeta. “Não dá mais pra segurar; explode coração”!

Os palavrões são signos com significados precisos e ajustados ao sentimento que procuram moldar e vestir. Uma topada que dói, uma raiva, que implode e, pela indignação, explode, encontra no palavrão sua melhor expressão. As (mal) ditas palavras de baixo calão vem traduzindo a mais adequada veiculação dos sentimentos agora exaltados e compartilhados pelas vozes das ruas. O “fo..-se-a-copa!” é de uma precisão inatacável; não há nada que o substitua. “políticos-FDP” traz uma identificação tão precisa que carece de maiores explicações. A expressão “vai-tomar-no...” é um grito que encerra qualquer tipo de discussão, ainda mais, oriunda de milhares de bocas, antes engasgadas, que resolvem se abrir e vociferar.

O palavrão permeia o linguajar do povo culto e inculto, nos estádios e nos recintos mais privados. O Dicionário Houaiss o conceitua como “palavra grosseira e/ou obscena, bocagem, impropriedade, linguarada, obscenidade, pachouchada, palavrada, porcaria, turpilóquio”.  

Há pouco, assistimos, pela edição de final da manhã, do noticiário da tevê-  um vídeo em que a administradora-hospitalar-betina-siufi -  utiliza-se da expressão “... nem fod..do”,  dirigida a sua subalterna, para manifestar sua negativa, categórica, em atender uma prescrição de um medicamento a ser ministrado em um paciente portador de câncer.  Qual o significado mais atual para a expressão “betina-siufi”, a partir de então? O que agora é obsceno, grosseiro, turpilóquio, e o que não o é?

Em mais de cinco anos de minuciosa pesquisa, incentivado pelo sociólogo e antropólogo Gilberto Freire, o pernambucano folclorista Mário Souto Maior reuniu mais de três mil e quinhentos verbetes do vocábulo popular brasileiro considerado chulo e escreveu o mais completo Dicionário do Palavrão e Termos Afins. Para reunir essa quantidade de palavrões, Souto Maior, além de oito mil formulários distribuídos, leu mais de duzentos romances e inúmeras outras obras literárias. Sua obra só veio a ser publicada - liberada da censura - na década de 1980, no governo de João Figueiredo, quando a política da anistia já acontecia no País. A obra de Souto Maior, ao nos oferecer os palavrões característicos de todas as regiões do País, não só nacionaliza a cultura popular, como sua liberação constitui-se um marco de liberdade de apropriação e uso da nossa Língua.

O palavrão está nas ruas e vem da boca dos brasileiros de todas as origens familiares e acadêmicas, e, expressa, com precisão, raiva, alegria e dor. Agora, está doendo! Estamos com raiva! Sabendo usar, muito infarto do miocárdio e muito tarja preta podem se evitados.  Portanto, quando o “fod...-se-a-copa”, “políticos-fdp”, “renan-fdp” e o “nem-fo...do” derem mais conta do tamanho da indignação e não servirem para expressar todo o sentimento que nos domina, nesse momento assombroso de nossa história, fica a dica;  o Souto Maior pode ser consultado.  Os puritanos que nos perdoem, mas, o momento exige de nós um bom e sonoro palavrão. Amém?

 

Maria Angela Mirault é Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo

http:mamirault.blogspot.com