O pacto entre a dor e o prazer: uma reflexão sobre alguns desdobramentos da violência sexual infanto juvenil

 

José de Arimatéia Reis

 

A prática da violência sexual é um daqueles fenômenos única ou tipicamente humanos, tal como o homicídio, a guerra, a corrupção, a mentira. Entre as inúmeras formas pelas quais costuma ser identificada nos mais diversos lugares e países, sem dúvida uma das mais contundentes é aquela que atinge a crianças e adolescentes, antes de completada a sua maturação psíquica e sexual.

Essa modalidade de agressão, tão característica do ser humano, costuma revelar toda uma trama polimórfica situada entre o proibido, o patológico, a perversão, a transgressão e o prazer pelo gozo violento ou sádico, seja pelo instinto irracional, índole delituosa ou impulso genital de dominar, violar ou corromper, entre outros.

Sua existência nas mais diversas sociedades, ocidentais ou não, desvela a concretização de desejos incontroláveis, incestuosos ou não, quando não demonstra a opção pela pedofilia com uma determinada finalidade criminosa. O fato é que a realidade, em seus desfechos múltiplos, mostra o horror moral de muitos (mas não sempre), diante do desprezo indiferente de outros tantos, pelas questões éticas envolvidas frente a essas subversões, patológicas ou intencionais, dos costumes sociais planejados pelo ideal de civilização, e nesse caso descumpridos nos violentos exercícios sexuais cotidianos.

É o que se nota (mas não sempre), quando o abuso sexual de crianças e adolescentes, ou a prostituição (mais comumente chamada exploração sexual) infanto juvenil, saem dos seus refúgios secretos e passam ao domínio público, em toda a sua crueza e/ou irreversibilidade factual, expondo os danos físicos por vezes horrorosos, mas (talvez) principalmente, os males psíquicos, as derivações emocionais que frequentemente duram uma vida inteira.

Estes últimos, quem sabe ainda mais que as marcas inscritas no corpo, costumam ter uma maior permanência, pois ao contrário das cicatrizes visíveis na pele, que um dia saram e estabilizam, os traumas psicológicos ou os males psíquicos da violência sofrida podem permanecer vivos por décadas, seja lá qual for a influência exercida no sujeito e em sua singularidade.

Os manuais acerca do assunto usualmente descrevem que toda família e toda vítima correm sérios riscos de ficar traumatizadas e/ou desestruturadas, mas sempre deveriam buscar reagir na direção da autopreservação e da superação da violência e de sua gênese, demonstrando ou desenvolvendo sinais de resiliência, oferecendo socorro imediato às vítimas, e procurando ajuda / tratamento para si (indivíduos e familiares) e punição para o criminoso abusador / estuprador / aliciador / explorador / corruptor.

É bom que se diga: nem sempre é o que ocorre na prática diária, na complexa e contraditória vida real. Repetidamente, não sabemos como enfrentar o problema, nem muito menos de que forma prevení-lo ou evitá-lo, ou mesmo como falar dele quando de sua vergonhosa constatação, a qual em muitos contextos é o flagrante da participação ocultada, é a descoberta da acusação falseada, é o testemunho da cumplicidade inusitada, é a própria confissão da autoria no ato ilícito, ou o reticente silêncio das famílias nucleares e / ou pessoas muito próximas.

Vítimas às vezes são também algozes, aliciados se transformam em aliciadores, pais e familiares passam de protetores a molestadores / exploradores, cidadãos de bem se metamorfoseiam em pedófilos inveterados, seres inofensivos tornam-se impiedosos, meninas antes virgens e meninos outrora inocentes são pervertidos e pervertem-se, cuidadores aparentemente zelosos demonstram solene indiferença às modalidades sexuais violentas e suas variações, seres perversos com elas se deliciam em secretos refúgios, bandidos exercitam toda a sua brutalidade, sociopatas sistematizam as suas idéias de violência e sadismo, crianças e jovenzinhos impúberes flertam com a compulsão genital e a loucura...

É o que se conclui, mas não sempre, no dia a dia do atendimento, no corpo a corpo com o humano, o sobre-humano e o desvio perverso, rodeados pelo sexo incestuoso, desgosto e prazer prostituído, dor física e emocional, separações, condenações, cumplicidades doentias, negligência e ódio, omissões e pactos de silêncio. Pois ao mesmo tempo estão também presentes indignação, denúncia, dedicação extrema, superação de limites, resgate da dignidade, proteção e amor, mostrando todas as vertentes incontroláveis da vida real, sejam boas ou más, tudo freneticamente centrifugado, num caleidoscópio de afetos e emoções até o limite daquilo que se chama humano e civilizado.

São revelações de vidas despedaçadas que se tornam cristalinas em sua crueldade, diante das exposições da conjunção carnal, do incesto, do estupro, dos atos libidinosos, dos jogos sexuais entre crianças, do exibicionismo / voyeurismo, da pedofilia, da exploração na prostituição infanto-juvenil, do aliciamento, da pornografia com crianças e jovens e de sua comercialização, do turismo sexual, dos shows eróticos com menores, dos “leilões” de meninas e meninos virgens, do prazer sexual sustentado com presentes e “mesadas” em dinheiro, do sexo grupal com adolescentes e jovens, da promoção de sexo explícito entre crianças ou entre estas e um adulto, das festas noturnas, dos passeios coletivos com “lolitas” em iates comprados à vista, das boates perdidas nas noites urbanas, estradas, rios, garimpos, vilarejos e muitos outros lugares ermos do Brasil como um todo, do tráfico escravista de seres humanos para a exploração prostituinte de crianças e adolescentes de ambos os sexos, (e nesse caso também, e até principalmente,) de jovens, homens e mulheres para outras cidades, estados e países.

Se quisermos aqui falar dos vários tipos de violência sexual existentes, o abuso sexual de crianças e adolescentes vem ocupando destaque nas manchetes, estatísticas e investigações levadas a cabo nos últimos tempos, mas é claro que há desdobramentos tão ou mais incisivos da violência sexual quanto este. Porém, ao se falar no abuso sexual intra-familiar incestuoso, certamente se tem um dos mais chocantes atos humanos conhecidos, gravíssimo, sem dúvida, e destruidor de lares, infâncias e casamentos, tanto quanto o abuso perpetrado por agressor extra-familiar conhecido e / ou desconhecido, sem falar na ruína da reputação social e familiar, quando o segredo proibido ou o ato publicamente hediondo escapa ao controle do agente e há a denúncia, o flagrante doméstico, a descoberta do ato proibido e doentio do pedófilo consangüíneo, infelizmente ainda menos punido pela justiça brasileira do que devia, ou o linchamento público coletivo do abusador sem laços de parentesco com a vítima, igualmente causador de revolta e comoção públicas, notadamente nos casos de homicídios antecedidos ou precedidos de abuso em crianças e adolescentes.

A sensação é de impotência ou de horror grotesco, quando são divulgados os casos de abuso por incesto (e não muito poucas vezes com desfecho infanticida), de crianças pequenas e adolescentes com traços infantis, do que há algum tempo sabemos: infelizmente são em maioria praticados dentro de casa por parentes próximos, pais, irmãos, avôs, tios, primos, padrastos e outros, e em menor grau, mas também por mães, irmãs, avós, tias, primas, madrastas, entre outras personagens femininas.

Da mesma forma, o choque social também está presente no estupro e/ou homicídio de crianças e adolescentes por desconhecidos, na conjunção anal e nos atos libidinosos praticados por transeuntes de identidade e origem ignorada, e mesmo por vizinhos degenerados ou solitários, e ainda por outras pessoas próximas do lar das vítimas às vezes consideradas amigas de confiança, ou até nos próprios jogos sexuais praticados com os da mesma faixa etária, quando há na verdade mais curiosidade que patologia propriamente dita, ou ainda na agressão genital a uma criança realizada por um menino ou adolescente mais velho que podia ser um coleguinha de brincadeiras pueris.

Mas a amplitude da violência sexual também se expande na chamada exploração sexual, como é tradicionalmente denominada a prostituição infanto-juvenil, arquitetada esta na comunidade local de várias maneiras pelo explorador, que vem a ser aquele que obtém alguma renda ou dividendo material a partir do aliciamento de crianças e, mais comumente, de adolescentes, principalmente as do sexo feminino, mas também do sexo masculino. Esse aliciador também pode aparecer na figura de pessoas da família, tios, padrastos, pai, mãe, avós, irmãos, ou de “amigos”, “namorados”, parceiros de noitadas, entre outros tantos.

Este fenômeno se dilata ainda mais quando o aliciamento passa a ser feito por pessoas especializadas, em forma de convites sedutores ou violentos a meninas (mas também a meninos, jovens, homens e mulheres adultos, gays e travestis e outros), com oferta de empregos, viagens a outras cidades, outros estados, outros países, outros universos e sonhos, contendo promessas de transformar a realidade dura e pobre da maioria dessas pessoas, vítimas do chamado tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual, fenômeno grave que costuma estar relacionado a redes criminosas, quadrilhas que exploram a prostituição e a pornografia infanto-juvenil, na Internet, em estúdios fotográficos, em shows eróticos, em casas noturnas, nas ruas, bares, boates e prostíbulos, legais (“disfarçados”) e clandestinos (“escamoteados”), dentro e fora do país.

Na verdade, tratam-se todos de fenômenos muito complexos. Porque insistem em permanecer com seu caráter de segredo infame, tabu subsumido na cultura e no tecido social. É o que se desenha, quando buscamos compreender as suas causas, os reais motivos que levam o transgressor ao ato proibido. Pois nem sempre é por ele percebido ou sentido como tal. Ás vezes, não há nenhuma interdição, nem culpa, nem limite. Há apenas o desejo, há o fato, o hábito, o pacto, o lastro cultural.

Esses elementos, todos combinados, podem aparecer naturalizados ou impostos, pela violência possessiva e insensível, principalmente quando encontram eco na indefesa, inocente e vulnerável fragilidade da criança. Ou habilmente construídos para ser absorvidos e fazer sentido na dinâmica incerta, acessível e influenciável do funcionamento adolescente.

Ou ainda, cultivados muitas vezes na permissividade doentia ou passividade inerte de famílias cúmplices, desestruturadas e muitas delas também violentadoras. Algozes e vítimas, unidos na dor e no prazer. Por fim, como dizem os psiquiatras, sequer é regra que o pedófilo, molestador, corruptor ou aliciador, sofra de desvio sexual. Ele pode ser apenas um criminoso em busca de lucro, o qual obtém escravizando ou vendendo o corpo de meninas e mulheres, mas também de meninos e garotos adolescentes travestidos de roupas femininas ao lado dos adultos inseridos na mesma situação, tudo regado a muito sexo e violência, o que não exclui as drogas e até mesmo o “rock and roll”.

Sim, todas essas modalidades de violência sexual são fenômenos tipicamente humanos. Porém, se avizinham perigosamente, mais do que seria socialmente desejável, do que há de mais desumano e monstruoso no ser humano, homem ou mulher. E por mais que sejam combatidos, o enfrentamento de todas essas formas de violência exige uma articulação institucional muito maior, melhor e qualitativa do que possuímos hoje, embora muitos se lancem ao combate, à prevenção, ao socorro, à convivência, ao atendimento, ao resgate dos violentados e vitimizados, seja lá de que forma essa ocorrência tenha marcado suas vidas e seja lá qual o resultado a ser obtido, pois na prática, não podemos jamais falar com firmeza em erradicação da violência sexual.

Pois o fenômeno não se encerra onde é combatido. Não se extingue, não se deixa exterminar, não se rende, não permite a própria erradicação. Vigiar e punir não resolve. Desmoralizar publicamente não apaga o fato, o ato, o trauma, o sofrimento, as imagens, o prazer difuso, o gozo dilacerado, o desejo irrepresado, o crime hediondo. Não encerra o pacto entre a vítima e o algoz. O juízo e a condenação da opinião pública ao pedófilo e / ou criminoso não são suficientes. E nem parece haver como regra, na chamada vítima, uma tomada de consciência por si só automatizada, moralizadora, inquestionavelmente benéfica e positiva em qualquer caso.

É obvio que o tratamento de pessoas que sofreram violência sexual é necessário e indispensável na maioria esmagadora dos casos, e deve ser sempre estendido à família e a todo e qualquer envolvido ou atingido por ela, pois é muito freqüente o sofrimento, o trauma, os sintomas físicos e psíquicos, a necessidade de ajuda e acompanhamento especializado e contínuo.

Porém, é necessário por outro lado, uma reflexão quanto ao direcionamento dado na maioria dos contextos nos quais a violência sexual está presente. A opinião pública se choca continuamente com os desfechos mais brutais, como homicídios, estupros e exploração em cárcere privado de crianças pequenas ou adolescentes impúberes, mas esse efeito logo é diluído na máquina social, como um filme reprisado várias vezes, mas cada vez com menos impacto em seus (d)efeitos especiais.

Ou seja, a cultura em torno da sexualidade e da violência não muda, não passamos a discutir coletivamente o fato de que há uma conjugação social e ética (que tem como pano de fundo a sexualidade e a genitalidade do ser humano, no caso da violência sexual) entre flagrante do crime, denúncia, inquérito, processo, provas, condenação e cumprimento da pena, ao agressor. E desejo de justiça, indignação verdadeira, para com as vítimas, no socorro, proteção, tratamento e afeto na vida doméstica e familiar, num resgate existencial muito além do mero cumprimento do dever moral.

Quando perguntamos o que há de comum entre o ato sexual ilegal, ocorrido no submundo noturno das meninas exploradas nas ruas e nas boates locais e/ou do exterior, e o local ermo ou o cômodo qualquer, invadido pelo violentador possuído por um impulso primitivo, no ato do abuso ou estupro, podemos responder: o impulso é o mesmo...devorar, possuir, subjugar, usufruir. Ou seja, o sexo e a violência andam de mãos dadas e escapam à contenção social das pulsões e instintos genitais/bestiais com uma freqüência muito maior do que gostaríamos de admitir ser capaz o ser humano e dito civilizado.

De comum, para as vítimas, para a criança e o jovem, é que o sexo e a genitalidade têm algo de desconhecido e incompreensível, uma violação que, seja dolorosa e / ou prazerosa, mesmo assim costuma ser angustiante, como se lhes roubassem a sua inviolabilidade, o que quase sempre gera uma ruptura na noção do corpo próprio como o bem mais precioso, o último reduto de autonomia, talvez a única real possibilidade de escolha individual verdadeira, a qual entra em colapso, e leva junto a noção de identidade subjetiva.

É comum nas vítimas do abuso, da exploração e do tráfico de pessoas o traço melancólico, a angústia desestruturante, o luto pela violação do corpo, o desequilíbrio da subjetividade interpessoal e da identidade psíquica, num conjunto complexo de sintomas conhecido como melancolia depressiva.

É comum também a síndrome conjunta da ansiedade inquieta, fóbica, demente, assustada, que provoca o movimento agonizante e desordenado, paralisadora da força vital, aquela que deveria impulsiona à vida, levando a sorrir, brincar, observar com curiosidade, indagar, descobrir, relatar, inventar, inovar. Mas esses não são os únicos (sintomas). E não ocorrem somente nas vítimas, mas também, e apenas às vezes, nos violentadores, quando estes sofrem de desvios sexuais. Talvez a causa principal sejam os sentimentos íntimos de desidentidade, psíquica e sexual. É esta que pode levar ao desvio sexual. (Só que para falar de todos os sintomas possíveis e como eles podem vir a se conjugar na desidentidade psicossexual até chegar no desvio da genitalidade ou pedofilia, seria necessário um outro artigo, senão um livro inteiro).

Necessário é também dizer que, os sintomas (que podem ou não vir a se manifestar na vida psíquica e podem ou não ser considerados e vividos como tal), nem sempre são propriamente uma derivação traumática ou patológica da violência sexual sofrida pelo agressor, como é comum se alegar nos tribunais, pois há casos de pessoas que passam por experiências do que se chama violência sexual e passam a vida inteira ou parte dela em silêncio, e aprendem a conviver com aquilo que conseguem vir a considerar como a sua forma de estar no mundo e exercer a sua vida psíquica e a sua sexualidade, ou seja, não há um trauma ou patologia propriamente ditos ou manifestos para o indivíduo, porque para serem assim considerados, e para haver uma necessidade de reparação, ou tratamento, ou seja lá o que for, essa experiência deve gerar na subjetividade um efeito ou sintoma vivenciado ou tornado uma fonte de sofrimento para o sujeito.

Portanto, é possível haver sintoma no indivíduo sem existir o trauma ou o sofrimento, e essas manifestações sintomáticas podem até mesmo encontrar expressão emocional e adaptação social sem serem relacionadas pelo sujeito com a violência sexual ocorrida, a qual às vezes sequer pode vir a ser considerada psiquicamente como um ato violento e vitimizador (os psicanalistas chamam de recalcamento a esse processo, com a ressalva de que o mesmo nunca é a supressão absoluta dos sintomas, vindo estes a se revelar inconscientemente nos sonhos, atos falhos, etc., abrindo em certos casos os terrenos para pequenas demonstrações, mesmo que momentâneas, de sofrimento psíquico).

Em alguns casos, é bem verdade, o processo do recalcamento pode vir a causar no sujeito a sensação inconsciente (ou não) de que pode vir cometer o mesmo ato por ele experienciado a outrem, pois aquilo que não é representado para si como traumático, automaticamente não o será a outro ser humano. Mas essa perigosa afirmação tem sido utilizada à exaustão para tentar justificar o cometimento da violência sexual, através do argumento de que quem sofre a violência sexual passa a praticá-la simplesmente pelo fato de um dia ter sido vítima, como se tal apagasse o caráter infracional e a imputabilidade penal daquele que a pratica intencionalmente.

Como vimos antes, o argumento acima não se sustenta, pois é possível ou não haver sujeito sem trauma e sem consciência de seus sintomas, sem que isso venha a inocentá-lo de seus atos na convivência social, se ilícitos. E ainda, se pode existir violência sem trauma, também pode ou não ocorrer o impulso sexual violento desvinculado dela, logo aquele que sofreu abuso, foi explorado ou escravizado sexualmente, não necessariamente irá praticá-los em sua vida, e caso o faça, jamais pode vir ser absolvido de sua culpa e das conseqüências advindas de seus atos.

Toda essa dificultosa equação nos leva à constatação de que a atração sexual por pessoas do mesmo ou de outro sexo, de idade cronológica reduzida, e quase sempre fora daquela faixa etária considerada minimamente adequada para que já tenha ocorrido a maturação sexual psíquica e corporal necessária à prática de uma atividade genital e afetiva, positivamente sintonizadas com a identidade subjetiva do sujeito, conhecida como pedofilia, classificada nos manuais como um desvio sexual, em uma das modalidades conhecidas como parafilia , não tem como atributo a ocorrência de violência sexual na história do indivíduo envolvido em práticas de abuso sexual, exploração comercial e tráfico de pessoas, nem tampouco são privativos de sujeitos desequilibrados mentalmente.

Na realidade, a violência sexual é praticada tanto por seres (des) humanos abusados ou explorados em sua juventude, quanto por aqueles que nunca passaram por nenhuma experiência sexual violenta. E ainda, alguns deles são pedófilos, outros nem isso, apenas cidadãos que intencionalmente se conduziram a uma circunstância ilícita, eventual ou continuada, visando a satisfação momentânea de apetites sexuais ou inseridos em atividades criminosas sistemáticas. A justiça e as equipes multidisciplinares já tem hoje como comprovar a culpabilidade ou o dolo de um réu em um caso de crime sexual, descartando a presença de desvios sexuais e problemas mentais, os quais gerariam no Brasil, a tão sonhada inimputabilidade penal, na qual a sentença prevê o tratamento psiquiátrico permanente e não a reclusão para cumprimento de pena pelo delito comprovado e julgado.

De outra feita, quando existe o desvio sexual atuando na conduta pessoal, a prática costuma ser ininterrupta, e nos dias atuais, não mais solitária como antes, pois a globalização e a internet possibilitaram a comunicação e a parceria dos pedófilos em escala planetária. Mas não podemos igualar a todos necessariamente em um mesmo patamar, a não ser quando se trata do fato concreto de que a violência sexual é um crime contra a dignidade da pessoa humana, passível de punição, qualquer que seja a sua natureza ou contexto.

Não obstante, o impulso desviante que pode vir a gerar a ocorrência de qualquer modalidade de violência sexual parece ser o mesmo, mas não sempre o mesmo, nem a finalidade é a mesma. Aquele que busca uma parceira, e prefere uma ninfeta, mas não lhe inflige, por exemplo, a necessidade de uma cirurgia de reconstituição vaginal ou anal, qualitativamente não utiliza as mesmas atitudes de um outro que pratica um estupro violento, onde haja ruptura vaginal, fissura anal, torturas físicas, homicídio.

O prazer e o gozo patológicos possuem vestimentas diferentes, e quanto mais causam dor e sofrimento ao outro, e quanto menos se mostram sensíveis aos protestos e à rejeição pela posse genital violenta, artificiosa, simbolicamente e socialmente ilegítima (se usarmos como exemplo aqui neste caso o abuso sexual e/ou o estupro de uma criança por um adulto), pois o poder de ambos é quase sempre desigual, mais perverso será o violentador. E mais desviante e patologicamente doentia a sua sexualidade genital. O que pode haver, ou não, é uma progressão nos requintes da violência em um mesmo indivíduo. Mas isto não é uma regra em todos os casos.

De qualquer forma, as situações são inúmeras, e sempre serão atravessadas por juízos morais e de valor. O incesto costuma ser socialmente execrado, principalmente aquele de crianças pequenas. Já a prostituição de meninas jovens, se não é aceita, é tolerada, quando deixa de ser denunciada, por exemplo, ou quando é motivo de condenação moral da jovem ou adolescente, em função de tabus humanos ancestrais sobre a sexualidade genital e “a profissão mais antiga do planeta”.

A existência da sexualidade infantil é ainda hoje, motivo de reações escandalizadas e exageradas, quando Sigmund Freud descreveu tal fato há mais de cem anos. É o que se vê, quase sempre, com os familiares e/ou envolvidos no contexto, quando duas crianças são apanhadas realizando os chamados jogos sexuais, num ato que pode ser apenas uma manifestação mais ou menos típica da idade e da curiosidade infantil, bastando o acolhimento maduro e a aceitação da natureza algo libidinosa da criança, mas ainda assim, inocente, ou dizendo de outra forma, sem nenhuma conotação de ato genital propriamente dito, a não ser quando criminosamente induzido por um adulto.

O estupro é outra modalidade firmemente condenada pelo juízo social e penal. Punido em várias esferas, familiar, cultural, judicial e também no sistema penal, onde os estupradores costumam provar de sua “iguaria”, desta vez na condição inversa de violentados.

O tráfico de seres humanos para fins de exploração, do qual o norte do Brasil ainda é o maior expoente, é outra das formas de violência sexual que vem sendo combatida com veemência, pois revela quadrilhas organizadas e redes internacionais criminosas que se sustentam quase que exclusivamente da escravização hedionda e intolerável do corpo humano alheio, talvez na mais violenta forma de exploração sexual de crianças e principalmente de adolescentes jovens, e também de mulheres adultas.

Por fim, o fenômeno da violência sexual, por mais chocante e revoltante, continua a ocorrer com freqüência impressionantemente alta, necessariamente levando à reflexão: será que a violência em geral, e a violência sexual em particular, realmente fazem parte da natureza social, cultural, psíquica e simbólica do ser humano, já que resistem a todas as tentativas de repressão, punição e controle? Assim como o poder de ter poder sobre o outro não será o que move o animal homem a praticar toda sorte de atos, incluindo os sexuais, que desumanizam o outro, com a simples justificativa de agir em nome da própria afirmação e prazer, arbitrários e hedonistas?

A realidade parece sugerir que realmente é assim, pois o tráfico para fins sexuais, o aliciamento à prostituição de crianças e jovens de menos de 18 anos, e a ocorrência violenta de abuso sexual contra a infância e adolescência são alarmantes demais para serem consideradas meras exceções desviantes, casos isolados de seres humanos anormais e desajustados. Infelizmente, é com freqüência que o abusador, o violentador, o aliciador e mesmo o traficante de pessoas pode ser encontrado socialmente integrado, aparentemente inofensivo, anônimo, levando uma vida comum e não demonstrando ser capaz de praticar atos sórdidos e criminosos contra quem não sabe defender-se ou resistir a este fenômeno tipicamente e demasiadamente humano a que denominamos violência sexual.