¹Elinor Eschholz Ribeiro

²Joseth A. Oliveira Jardim Martins

Resumo

Este estudo objetiva promover uma reflexão acerca da presença de uma pessoa com Necessidades Educativas Especiais (NEE), no ensino superior e suas concepções sobre si mesma. Para tanto, ilustra-se com um caso de uma acadêmica do Curso de Pedagogia de uma instituição privada de ensino na cidade de Curitiba- Pr. Os dados coletados foram analisados a partir da perspectiva histórico-cultural de Vygotsky (1988 e 1997) e Baktin(1992a) acerca da constituição da subjetividade como processo de apropriação de relações sociais. Discute-se sobre a consciência da própria condição de ser diferente, a percepção sobre o modo como esta condição interfere nas relações interpessoais e ainda sobre a importância do vínculo professor-aluno na construção de representações positivas sobre si mesmo.

Palavras-chave: Necessidades Educativas Especiais – Subjetividade - Ensino Superior

The physically handicapped people's look over themselves: a report of an experience in higher education.

Abstract

This study aims to promote reflection on the presence of people with Special Educational Needs (SEN) in higher education and their conceptions of themselves. So, this study is based on a case of an academic of the Pedagogy Course from private university in the city of Curitiba, Paraná. The data collected were analyzed established on the historic-cultural perspective from Vygotsky (1988 and 1997) and Bahktin (1992a) about the constitution of subjectivity as a process of appropriation of social relations. It is discussed about the  the awareness of the own condition of being different, the perception of how the way of this condition interferes with interpersonal relationships and yet on the importance of the teacher-student bonds in the construction of positive representations of him/herself.

Keywords: Special Educational Needs - Subjectivity - Higher Education

_____________________________

¹ Professora aposentada da Universidade Federal do Paraná. Mestre em Educação. Professora adjunta do Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE.[email protected]

² Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná – UFPR.. [email protected]

Introdução

O trabalho que se apresenta objetiva compreender, de modo especial as concepções de uma pessoa com deficiência sobre si mesma. Neste estudo, realizado com "Carol", uma jovem acadêmica do curso de Pedagogia de uma universidade privada da cidade de Curitiba no ano de 2006, procurou-se focalizar as percepções dessa jovem sobre a própria deficiência, através da análise do conteúdo de seus discursos e relatos escritos. O trabalho ora apresentado refere-se a um estudo de caso, ou seja, um estudo das inter-relações entre Carol e sua turma e uma das professoras com a qual manteve maior vínculo afetivo. Carol é uma jovem que sofreu anoxia ao nascer e, em conseqüência, apresenta comprometimento motor. A intenção deste estudo respaldou-se na possibilidade de desvelar, a partir do conteúdo do discurso da jovem Carol, o modo como dimensiona a condição de ser especial. Em outras palavras, como uma pessoa com Necessidades Educativas Especiais, no contexto específico da educação superior, percebe a si mesma. Entendendo ser primordial a evidência de possibilidades que possam suprimir o hífen que separa o normal do patológico e reconhecendo que, no bojo das relações sociais estabelecidas e efetivamente nas interações cotidianas, são construídas, de modo significativo, as percepções do indivíduo sobre si mesmo. Sobre esse ponto de vista, Padilha (2000) descreve que investir esforços na qualidade das relações interpessoais é, com certeza, vislumbrar caminhos na formação dos profissionais que atuam na Educação Especial e uma esperança de que haja uma intencionalidade de desenvolvimento das esferas do simbólico na vida das pessoas com deficiência. Os dados serão analisados a partir de uma metodologia qualitativa, apoiada nos estudos e reflexões de Lev S. Vygotsky e seus seguidores cuja compreensão desta fase (análise dos dados) repousa na idéia de que é de fundamental importância a análise do processo do que da coisa em si, ou seja, a análise da relação dinâmico-causal (análise explicativa). Para nortear a análise dos dados, foram selecionadas duas categorias que, numa perspectiva simbólica, oportunizaram uma maior compreensão sobre o caso em estudo: a narrativa e o gesto. Foram três anos de encontros semanais com Carol, em diferentes disciplinas, em diferentes momentos de interações com a aluna e os demais colegas. O que Carol revela em seu discurso reclama a necessidade de mais esclarecimentos sobre a temática Necessidades Educativas Especiais e, principalmente, sobre nuances muito particulares em termos do que é ser e sentir-se diferente no mundo.

As Necessidades Educativas Especiais no terreno da sala de aula

Existem várias maneiras de nos envolvermos com a questão das necessidades especiais e, na atualidade, tal envolvimento tornou-se um imperativo em todas as instâncias sociais. Considerando que o princípio básico de uma sociedade que se denomina inclusiva é, a priori, o respeito, a aceitação e o acolhimento da diferença. A esse respeito, podemos dizer que a sociedade está repleta de exemplos. A experiência relatada aqui resulta de observações, dados de entrevistas, redações e textos produzidos por uma acadêmica com deficiência, sua relação com a aprendizagem e as relações interpessoais estabelecidas em sala de aula.

A educação inclusiva ganhou força desde a Declaração de Salamanca, promulgada em 1994. De acordo com Ferreira (2005), a atenção que tem sido dada ao sistema educacional como um todo tem crescido significativamente no mundo inteiro, após a publicação da Declaração Mundial de Educação para Todos e Diretrizes de Ação para o Encontro das Necessidades Básicas de Aprendizagem(Jomtien, Tailândia) em 1990, ao dispor que:

Todas as pessoas têm o direito fundamental à Educação e que a educação para todos representa um consenso mundial de uma visão muito mais abrangente de educação básica, assim como representa um renovado compromisso para assegurar que as necessidades básicas de aprendizagem de todas as crianças, jovens ou adultos serão encontradas, efetivamente, em todos os países. (Ferreira, 2005, p. 42).

Considerando o fato de que os dispositivos legais determinam a todos os alunos brasileiros o acesso a uma mesma sala de aula, nas escolas comuns, e que a expressão todos os alunos brasileiros abrange a especificidade das NEE, é sobre essa condição que iremos focalizar as percepções de uma pessoa com necessidades especiais numa instituição de ensino superior. Nesse sentido, o presente trabalho desvela, inicialmente, o desejo de compartilhar angústias, exteriorizar sentimentos e sugerir importantes reflexões sobre a perspectiva das NEE no ensino superior. Tem como principal objetivo abordar alguns aspectos relativos à representação social de uma pessoa com NEE, enquanto sujeito de um momento histórico-cultural que se posiciona, evidenciando o modo como se percebe.Acreditamos que, assim como os demais conceitos e valores, o modo como as pessoas se vêem, ou seja, se percebem e, em função disso, passam a agregar valor à própria imagem, decorre de modo especial, das relações sociais e, mais especificamente, da reunião de diferentes participações pessoais, que, de modo direto, contribuem para a conjunção de percepções que o indivíduo desenvolve sobre si mesmo.

Kassar (2000), em estudo que objetivou identificar e analisar, na fala de uma pessoa com diagnóstico de deficiência múltipla, aspectos do pensamento coletivo, argumenta sobre a importância das relações sociais ao tornarem-se funções psicológicas por meio de um processo de internalização, que é possibilitado na/pela produção de signos. A internalização ocorre com a assimilação e a reelaboração da linguagem, locus em que transita e constitui o pensamento socialmente disseminado. O que pode significar que a subjetividade não existe, a priori, mas concretiza-se no processo de internalização, evidenciando que o desenvolvimento acontece de modo partilhado. De acordo com a autora, a capacidade de significar (dar sentido a, interpretar e fazer-se entender) de cada pessoa passa a existir pelos significados atribuídos pelos outros às suas ações. O significar do outro está na gênese do comportamento significativo do eu, na gênese do pensamento de cada ser humano, que vai se constituindo inserido em um mundo simbólico/lingüístico, no qual, inicialmente, concretiza-se no processo de internalização, mostrando que o desenvolvimento acontece de modo partilhado.

Montanari (1999) alerta que tratar a representação da própria deficiência, em termos da percepção da auto-imagem, implica considerar as singularidades de cada indivíduo. De certa maneira, falar de uma deficiência em particular a diferencia das demais deficiências, não só no aspecto físico, mas no significado que lhe atribuem, na forma de lidar com a diferença e nas estratégias de sobrevivência.

Encaminhamento Metodológico

O material coletado resulta de observações realizadas em sala de aula, entrevistas semi-estruturadas dirigidas, trechos de trabalhos escritos e uma carta de uma acadêmica com Necessidades Educativas Especiais do Curso de Pedagogia (que no presente estudo recebe o pseudônimo de Carol) dirigida à professora de disciplinas pedagógicas. As categorias de análise foram:

Narrativa: os relatos de fatos da vida, os depoimentos impressos através de relatos escritos, os segredos, os desejos presentes nos textos, as histórias ouvidas, os sentimentos verbalizados. Para De Lemos (citado por Padilha, 2000), a aquisição da narrativa é um indício importante de uma nova relação [do sujeito] com a linguagem. É o momento em que [o sujeito] não depende mais da interpretação/enunciado imediato do outro/interlocutor; em que a progressão do seu discurso já repousa sobre sua própria personalidade, interpretando o já dito, lançar o que está por dizer.

O gesto: como possibilidade de participar das ações como expressão da vontade, companheiro da palavra, modo de se fazer entender, anúncio e prenúncio de uma vontade, e uma intenção. "O gesto é o signo virtual que contém a futura escrita" (Vygotsky,1988).

A investigação com Carol se deu desde o início de sua entrada no Curso de Pedagogia de uma instituição privada de ensino. A referida acadêmica apresentava dificuldades para operar idéias e também de entender as instruções oferecidas pelos professores. A dificuldade de se comunicar adequadamente interferia no entendimento das orientações realizadas pelos docentes. No decorrer do período de investigação (3 anos), a referida acadêmica conviveu com repetidas experiências de exames finais e dependências em algumas disciplinas.

Do material empírico, destacamos alguns diálogos. Estes diálogos dizem respeito à Carol, cuja fala pode ser compreendida, propiciando uma análise interessante relacionada ao objeto de investigação. Os diálogos de Carol apresentam-se em itálico, para diferenciar-se da discussão e análise de conteúdo realizada. Trata-se de uma pesquisa exploratório-descritiva, de cunho qualitativo, cujo objetivo referido anteriormente é desvelar as percepções de uma acadêmica com necessidades especiais, que cursa o último ano de Pedagogia de uma instituição privada de ensino.

Um olhar diferente sobre si mesmo

Dados das primeiras observações realizadas com Carol demonstram um comportamento instável do ponto de vista emocional, uma vez que foi possível constatar em diferentes momentos, na sala de aula, que ela sentia-se muito mal, chorava seguidamente quando não entendia os conteúdos trabalhados e também quando não era compreendida pelos colegas.

Em sala de aula, quase não se manifestava verbalmente, fazendo colocações e/ou questionamentos, não participava de nenhum trabalho. Sua socialização era muito difícil, principalmente em função da discriminação demonstrada no comportamento dos colegas, sobretudo quando era solicitada a realização de trabalhos em grupo. Constantemente, Carol ficava de lado, ninguém a convidava para trabalhar junto.

Trechos de uma carta escrita por Carol sugerem a expectativa de encontrar alguém que a compreendesse, que a apoiasse. Abaixo, extratos de uma carta que escreveu à sua professora:

Um dia que não lembro o ano nem a data... chega ela toda apressada...

Nos olha... nos cumprimenta... se apresenta...e começa a explicar como serão suas aulas, o que precisaremos apresentar, fazer...

De repente, fico ausente, nada escuto...pois meus olhos começaram a admirar aquela pessoa...pequenina...ligeira... cheia de ânimo e de tanta sabedoria...Nada eu sabia do que ela falava...pois me prendi nos seu detalhes...

O discurso de Carol é marcado pelos elementos que destaca de imediato, ou seja, as primeiras impressões que foram possíveis angariar no seu primeiro contato com a professora e as percepções que foi desenvolvendo na relação com esta. Alguém que, a princípio, lhe chama a atenção, provavelmente, pela maneira como se relaciona e se posiciona.

Infinitamente infinito é o tempo...

e...infinitamente infinito foi a minha admiração e carinho crescendo por ela...

E ela sempre correndo...

Um dia descobri que elaolhou para mim...

Com um olhar diferente, querendo me ver por dentro...

Como se me perguntasse: oque você tem? Quais são seus medos?

Por que você nãose mostra? Por que tantos fantasmas, Carol?

Eu sentia que ela me perguntava com seu olhar...

E isso me dava tanta alegria... sentia em seu olhara ternura de uma pessoa

Que me via de forma diferente...como uma pessoa igual a todas e que podia...

E eu senti que ela acreditou e lutou por mim... e como ainda luta...

E infinitamente grande foi a minha alegria de saber que alguém se importava...

Maravilhoso saber que alguém, de repente, percebe que a gente existe...

Infinitamente...infinito é o Universo... Infinitamente infinito é o tempo.

 

Poder-se-ia dizer que aquelas primeiras impressões somaram-se à percepção de uma abordagem diferente: Um dia descobri que ela, olhou para mim... Eu sentia que ela me perguntava com seu olhar...E isso me dava tanta alegria... sentia em seu olhar a ternura de uma pessoa que me via de forma diferente...como uma pessoa igual a todas e que podia...

Nesse caso específico, a significação de sua condição como uma pessoa diferentevai se reconstituindo nesta nova relação diante da possibilidade de ser reconhecidacomo uma pessoa igual a todas as demais. Para Vygotsky (1997), o ser humano deveria antes ser reconhecido como detentor de uma identidade única que anularia as relações binárias do tipo normal/anormal, mais inteligente/menos inteligente, melhor/pior, etc.

De acordo com Padilha (2000), o movimento de produzir significado supõe a ação do outro, acontece com o outro e, então, é possível produzir sentido com o gesto, com o silêncio, com a expressão facial, com a prosódia acompanhando a oralidade, com a lembrança do passado incorporada ao presente. Nesse sentido, a participação do outro (sendo o outro sua professora, os colegas de turma) as interações e mediações tornaram-se fundamentais paraque Carolpudesse sentir o valor desta relação em sua história pessoal.

E eu senti que ela acreditou e lutou por mim... e como ainda luta...

E infinitamente grande foi a minha alegria de saber que alguém se importava...

Nesse trecho do relato de Carol, é possível perceber seus anseios e a necessidade de ter alguém que acreditasse em seu potencial e, principalmente, em contar com alguém que se importasse com ela.

Vygotsky (1997), em seu clássico texto intitulado Fundamentos de Defectologia argumenta que não é o defeito que decide o destino das pessoas, mas as conseqüências sociais dele, então, a análise dos problemas não pode ser retrospetiva, mas deve visualizar o futuro da personalidade, tornando indispensável compreender o movimento constante das possibilidades de superação das dificuldades – olhar dialeticamente para os fatos da vida. No entanto, para olhar dialeticamente para os fatos da vida, faz-se necessária a disponibilidade daquele que olha, o interesse em fazer diferença no modo de focalizar os acontecimentos, as situações e o outro, principalmente, quando, no contexto educativo, esse outro é o aluno. Carol, em diferentes momentos, solicita este olhar, e seu pedido torna-se quase um apelo: Maravilhoso saber que alguém de repente, percebe que a gente existe...

Nesse trecho da carta, é possível perceber que, através da apropriação do discurso, ela vai reelaborando as percepções que tem do outro como importante subsídio para a percepção de si mesma. De modo que, ao utilizar-se da narrativa, demonstra a apropriação de conceitos e valores, os quais internaliza, interpreta e aceita. Bakhtin (1992, p. 317) argumenta "(...) nosso próprio pensamento nasce e forma-se em interação e em luta com o pensamento alheio". O que significa dizer que a percepção de Carol sobre si mesma parece ser uma luta entre ser ou não ser diferente ao enunciar o quão maravilhoso é saber que alguém a percebe.

Bakhitin (1992a) coloca que cada objeto, cada ação, cada palavra, cada aprendizagem adquire significação interindividual, ou seja, "o que faz da palavra uma palavra é a sua significação. O que faz da atividade psíquica uma atividade psíquica é, da mesma forma, sua significação" (p.49). Mais adiante, enfatiza que a atividade mental revela-se no terreno semiótico. Isso quer dizer que "a significação constitui a expressão da relação do signo, como realidade isolada, com uma outra realidade, por ela substituível, representável, simbolizável" (p.51).

 

Você professora..., para mim, será sempre uma Professora Fascinante... E também inesquecível... porque me devolveu a vontade de ser feliz, de crescer...

de lutar contra meus fantasmas... e hoje me sinto mais gente...

Numa perspectiva de interação possível através do texto, a palavra configura-se de maneira especial na decodificação daquilo que a protagonista principal (Carol) pretende expressar. Nesse caso, é delegada ao registro da palavra a possibilidade da expressão dos sentimentos, das emoções, da compreensão sobre si mesma, enfim, da conjunção de fatores que possibilitaram o resgate da motivação e recuperação da auto-estima. Por outro lado, é através da narrativa, do discurso impresso, que são desvelados os medos, os anseios, as dificuldades e, principalmente, a constante necessidade de superação dos obstáculos decorrentes de tal condição e que podem ser identificados no relato de Carol:

Ser diferente!!! É uma benção ou uma maldição?

Ser diferente não é uma tarefa fácil, acho que somente os fortes conseguem sobreviver no dia-a-dia...

Tive muito tempo para pensar e...concluí que:

Nosso corpo é apenas uma vestimenta da alma, isso, sim, para mim é importante: a educação da nossa alma, porque, na verdade, a única coisa que deixamos é a nossa gratidão, nossa forma de acolher as pessoas, as nossas atitudes, é o amor que dedicamos a todos independente do que eles são e como são.

As piadinhas, as brincadeiras sem graça, as humilhações, será isso uma maldição?

No momento é uma maldição, mas o tempo passa e depois, com cada uma delas, tira-se um aprendizado...

Tenho certeza, ao dizer que não é uma maldição, pois se aprende a ser mais tolerantes, tornamo-nos mais fortes, e mais observadores...

Carol, ao referir sobre si mesma, expressa, de modo veemente, a presença de uma luta entre ser diferente e ao mesmo tempo aceitar-se como tal, ao enunciar que somente os fortes conseguem sobreviver no dia-a-dia...

Concordamos com Kassar (2000), quando coloca que a experiência de ser diferente está ligada à história da vida particular de cada indivíduo e, embora se reconheçam semelhanças e similaridades entre elas, não é possível falar de uma identidade de deficiente, enquanto grupo. Entretanto, do ponto de vista sociocultural, usar muletas, próteses visíveis ou andar de cadeira de rodas indicam os sinais diacríticos que as identificam como deficientes, e a maneira pela qual lidam com esses sinais define sua representação sobre essa identificação e sobre a deficiência.

Em seu discurso, Carol evidencia sua dor, declara suas angústias e legitima a participação do outro na perpetuação do preconceito, que, de um modo perverso, ingênuo e débil, aniquila as condições suficientes e necessárias para a luta: As piadinhas, as brincadeiras sem graça, as humilhações, será isso uma maldição? No momento é uma maldição, mas o tempo passa e depois com cada uma delas, tira-se um aprendizado...

Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe), etc e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão à formação original da representação que terei de mim mesmo. (Bakhtin,1992, p. 278).

É inegável a participação da sociogênese postulada por Vygotsky na construção da identidade da pessoa, independentemente de sua condição, o que significa dizer que a qualidade das interações sociais caracterizar-se-á como um imperativo neste processo.

De acordo com Bakthin (1988), produção e recepção de significados são o que constituem a linguagem que tem dimensões dialógicas e ideológicas historicamente determinadas. Toda palavra tem intenções, significados, para entender o discurso (o texto falado ou escrito), o contexto precisa ser entendido. E o contexto no caso em estudo, explicita-se de modo contundente, na presença do outro, na força do discurso proferido, nas comunicações gestuais, atitudinais, nas palavras enunciadas.

O que Carol quer nos dizer além daquilo que está explícito e pode ser interpretado dos seus relatos?

Provavelmente, o discurso de Carol desvele o modo como foi se apropriando dos conhecimentos, o modo como lhe foi possível dimensionar sua própria condição enquanto sujeito de sua história em um constante processo de interação humana. O que nós, coadjuvantes de sua história de vida, temos a dizer é que hoje, por causa de Carol, é possível revisitarmos nossas concepções, repensarmos a forma como estabelecemos iterações e, principalmente, reconhecermos nossa responsabilidade no processo de formação das pessoas com necessidades especiais. Sem a permissividade da ação e do entrelaçamento de vidas, somente possível através do encontro(seja este pelo olhar, pelo toque físico, pela palavra), não haveria uma Carol que fala que pede, que se expressa, que interpreta e se faz interpretar, que narra, que estuda e que se apropria da palavra de modo eloqüente, sensível, para transmitir suas percepções da forma como faz. A nós, foi preciso mais do que o habitual contato com uma turma de um Curso de Pedagogia, para que pudéssemos nos deparar com alguém ávido a ser percebido, alguém que em suas atitudes anunciava a gana de comunicar seu sofrimento, sua luta, e principalmente seu desejo de ser reconhecida como um ser humano.

Para Montanari (1999), não é possível compreender aquilo de que nos afastamos por medo do desconhecimento. A desqualificação relegada a tudo que foge às regras estabelecidas conduziu ao desenvolvimento de relações sociais produtoras da interdição que negam acesso ao mundo para aqueles que são considerados diferentes. Essa interdição produz a limitação da possibilidade de compreensão das diferenças ou dos seres rotulados como diferentes. Há um preconceito imenso que nos impede de dar atenção à fala de uma pessoa deficiente. Em conseqüência, sentimo-nos impotentes por não conseguirmos traduzir e/ou interpretar aquilo que está sendo expresso por ela. E é ela, muitas vezes, seu próprio porta-voz:

Nada sei do amanhã... Mas uma coisa é certa, escolhi este curso, porque sei que Educação é a única alternativa para todos terem uma vida digna e serem respeitados, é educar a alma das pessoas... é serenizar e alimentar esperanças de dias melhores, é ajudar as pessoas a abrir caminhos, a escolher caminhos, é alimentar a esperança do outro, que ele é capaz e também sentir-se feliz com a vitória do todos...é motivar cada ser a ser um eterno aprendiz.

Tudo o que dá valor ao dado do mundo, tudo o que atribui um valor autônomo à presença no mundo, está vinculado ao outro...: é a respeito do outro que se inventam histórias, é pelo outro que se derramam lágrimas, é ao outro que se erigem monumentos; apenas os outros povoam os cemitérios; a memória só conhece só preserva e reconstitui o outro...(Bakhtin, 1992, p. 126)

Se for pelo outro, como refere de modo belíssimo, Bakhtin, que seja por ele, a iniciativa de registrarmos aqui nossas angústias, nossas incertezas, nossas fragilidades e, por que não dizer, nosso desejo de conseguir fazer diferença ante uma questão que reclama a participação mais ativa de toda a sociedade e, principalmente, a sensibilização e o desejo de mudança de grande número de educadores.

Concordamos com Fernandes (2005), quando defende que a possibilidade de convívio com a diversidade é o caminho possível para desmitificar a estranheza sugerida no afastamento de tudo àquilo que foge ao pseudocontrole da razão. Os diversos (des) caminhos de concepções e métodos segregatórios e separatistas foram acentuando a não-familiaridade com as singularidades pessoais. Não é possível compreender aquilo de que nos afastamos por medo do desconhecimento. A desqualificação relegada a tudo que foge às regras estabelecidas conduziu ao desenvolvimento de relações sociais produtoras da interdição que negam acesso ao mundo para aqueles que são considerados diferentes. Essa interdição produz a limitação da possibilidade de compreensão das diferenças ou dos seres rotulados como diferentes. Há um preconceito imenso que nos impede de dar atenção à fala de uma pessoa com necessidades especiais. Não seria este o momento de invertermos os papéis e nos permitirmos exercitar a escuta e quem sabe focalizarmos nosso olhar de modo diferente?

Considerações finais

Em geral, esperamos que as pessoas com deficiência sejam menos capazes e, às vezes, conseguimos até criar "incompetências" nessas pessoas. Quantas vezes fingimos que não percebemos suas necessidades de compreensão e afeto, de um olhar mais atento, de um gesto de solidariedade. Atualmente, tem-se discutido sobre a necessidade de se construir uma sociedade para todos. Nesta sociedade, as pessoas com algum tipo de desvantagem deveriam contar com suportes para que pudessem participar de forma igualitária em todas as atividades disponíveis aos demais cidadãos. Segundo Rinaldo Correr (2003), a ciência e a tecnologia deveriam ser colocadas a serviço das pessoas com necessidades especiais, a diversidade deveria ser respeitada enquanto valor comunitário, a oportunidade de lazer, de trabalho e de educação deveria estar ao alcance de todos.

Em relação à educação, ainda é muito freqüente, a pessoa com deficiência se perceber alijada no contexto da sala de aula. Os colegas, em geral, os discriminam, não são aceitos nos grupos. Evidencia-se a percepção de que o sistema de ensino universitário e mesmo o nível fundamental não estão preparados para atender esses educandos. A educação inclusiva ainda não é bem compreendida no cenário da sala de aula e pelas demais instâncias da escola. Ela ainda se encontra envolta a muitos questionamentos, temores, o que sugere que há muito a ser feito para que a instituição educativa aprenda a acolher as diferenças. De acordo com Carvalho (2004, p.55), "permito-me reconhecer na normalidade de ser diferente, a igualmente normalidade: a diferença é a normalidade".

À guisa de conclusão, consideramos que a investigação realizada ao longo destes três anos, levou-nos a acreditar na possibilidade de superarmos a inércia, a acomodação no sentido de mobilizar todos os envolvidos na instituição educativa e acreditar no trabalho com estas pessoas. No esforço para superar a deficiência, é importante pensarmos que simples atitudes, como um olhar mais atento, uma palavra e um gesto de carinho podem tornar mais leve o peso da própria deficiência, o que não significa dizer, que essa seria a única alternativa para superarmos as dificuldades relativas à inclusão.

Referências

BAKHTIN, M.(Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992a.

__________ . Questões de literatura e de estética. São Paulo: Hucitec, 1988.

__________ . Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BRASIL, Ministério da Justiça/CORDE. Declaração de Salamanca e Linhas de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: MJ/CORDE, 1994.

CARVALHO, Rosita Edler. Educação Inclusiva: com os pingos nos "Is". Porto Alegre: Mediação, 2004.

FERREIRA, W. B.. Educação inclusiva:Será que sou a favor ou contra uma escola de qualidade para todos??? INCLUSÃO - Revista da Educação Especial – Brasília, p.40-46, Out/2005.

FERNANDES, I.. A diversidade da condição humana e a deficiência do conhecimento: no convívio com as diferenças e as singularidades individuais. Revista Textos & Contextos Ano IV - Nº4 – 2005.

KASSAR, M. de C. M. Marcas da história social no discurso de um sujeito: uma contribuição para a discussão a respeito da constituição social da pessoa com deficiência. Cad. CEDES v.20, n.50,  Campinas Abr. 2000.

MONTANARI, P. M.. Jovens e Deficiência: Comportamento e corpos desviantes. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Cadernos, juventude saúde e desenvolvimento, v.1. Brasília, DF, agosto, 1999. 303p.

OLIVEIRA, I. A. de . Espaço Escolar – Território de Construção de Representações e Identidades. 2000.

PADILHA, A. M. L. A construção do sujeito simbólico: para além dos limites impostos a deficiência mental. Campinas: UNICAMP, 2000.

VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas V – Fundamentos de Defectología. Madrid: Visor, 1997.

VYGOTSKY, Lev. S. (1988). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.