1. Introdução
Segundo o Dicionário Aurélio, pródigo é o termo empregado "aos indivíduos que dissipam a fortuna loucamente ou a compromete com gastos excessivos; perdulário ou dissipador". [1]
Aristóteles na sua obra "Ética a Nicômacos" define bem a prodigalidade: "Em relação ao dinheiro que se dá e recebe, o meio termo é a liberalidade, e o excesso e a falta são respectivamente a prodigalidade e a avareza. Nestas ações as pessoas se excedem ou são deficientes de maneiras opostas; o pródigo se excede em gastos e é deficiente em relação aos ganhos, enquanto o avarento se excede em ganhar e é deficiente em relação aos gastos (...)". [2]
O Direito, como sendo instrumento de regulação e proteção da sociedade, conceitua a prodigalidade de forma avessa ao conceito da ética aristotélica, o qual encontra-se diante da tarefa de conferir novos significados aos conceitos éticos herdados da tradição aristotélica.
Nesta obra, buscamos conceituar juridicamente a prodigalidade, tendo em vista a inserção deste tema em nosso ordenamento jurídico, que gradativamente foi modificando seu conceito e, consequentemente, trazendo importantes alterações na forma de atuação neste instituto.

2. A Prodigalidade e a sua interdição como proteção dos interesses da família no Código Civil de 1916.
O Código Civil de 1916 Adotou conceito distanciado do sentido aristotélico de prodigalidade. Ele, agora, tornou-se característica pessoal, semelhante a doença mental.
Clóvis Bevilaqua, em seu projeto de Código Civil, exclui os pródigos do rol dos relativamente incapazes e, conseqüentemente, a prodigalidade, do rol de motivos da curatela. Após discorrer sobre a história do Direito no que importa a interdição por prodigalidade, acompanhando-a desde sua origem, no Direito Romano, como proteção da propriedade familiar, até as Ordenações do Reino, conclui:
"Atendendo a essas ponderações, reconhecendo a necessidade de garantir o direito individual contra as maquinações da ganância, da preguiça e da imoralidade, o jurista deve declarar: ou a prodigalidade é um caso manifesto de alienação mental, e não há necessidade de destacá-la, para constituir uma classe distinta de incapacidade, pois entra na regra comum; ou tal não é positivamente, e não há justo motivo para feri-la com a interdição. Os alienados pródigos sejam interditos, porque são alienados; os pródigos de espírito lúcido e razão íntegra sejam respeitados na sua liberdade moral, pois, sob color de proteger-lhes os bens, faz-se-lhes gravíssima ofensa ao direito de propriedade e à dignidade humana.". [3]
Infelizmente, não alcança sucesso a posição de Clóvis Bevilaqua. Submetido o projeto de Código Civil a Comissão Especial da Câmara, propõe-se emenda substitutiva ao título II pela qual se incluem os pródigos entre os relativamente incapazes. Acrescentam-se também os artigos 459, 460 e 461, que regulam, no âmbito da curatela, a interdição específica dos pródigos.
A mesma tese também é defendida por Caio Mário da Silva Pereira:
"O que mais modernamente predomina é que, se a prodigalidade vem associada a um processo de patogenia mental, criando efetivamente uma síndrome degenerativa ou distúrbios psíquicos, comporta interdição. Mas se o pródigo mostra apenas tendências aos gastos imoderados, não deverá de se lhe retirar o poder de ação no mundo civil, reduzindo-o a uma situação próxima à psicopatia.". [4]
Notoriamente, o Código Civil, preocupou-se em proteger à Família, coadunando-se com à Constituição Federal Brasileira.
Isto porque o artigo 460 do Código Civil de 1916 condicionava a interdição do pródigo à existência de cônjuge, ascendentes ou descendentes legítimos que a promovam, portanto, condiciona a prodigalidade à inserção do pródigo em uma família. Esse entendimento é ainda reforçado pela leitura do artigo 461, que faz cessar a interdição caso ocorra o desaparecimento dos parentes relacionados no artigo 460. Disso decorre que prodigalidade, em sentido jurídico, e não meramente em sentido comum , é, portanto, fenômeno exclusivamente familiar.

3. O Novo Código Civil e o desvirtuamento da Prodigalidade como instituto protetivo do direito familiar.
Com o Novo Código Civil, porém, a exegese acima apresentada encontra-se sob grave ameaça. A maior dificuldade decorre do alargamento do rol de pessoas autorizadas a propor a interdição por prodigalidade. Segundo Venosa:
"No Código novo, não existe disciplina específica para a curatela do pródigo, que é disciplinada pela regra geral. Dessa forma, a interdição em geral, inclusive aquela por prodigalidade, pode ser requerida nos termos do art. 1.768 (I ? pelos pais ou tutores; II ? pelo cônjuge ou por qualquer parente; III ? pelo Ministério Público). [5]
Com efeito, o artigo 1768 do código civil permite que qualquer parente, ou até mesmo o Ministério Público, pleiteie a interdição do pródigo, o que por via de conseqüência, torna-se insustentável a especificidade do conceito jurídico de prodigalidade pela sua intrínseca vinculação à família. Tem-se, portanto, mais uma vez, o caminho aberto para o desvirtuamento do instituto, na medida em que seu fundamento, que se encontrava na proteção da família, migra para a proteção do indivíduo.
Nesta nova visão, introduzida pela interpretação do Código Civil, o pródigo deve ser protegido, por meio de interdição, de si mesmo, podendo ser a prodigalidade definida exclusivamente em virtude de análise contábil. De modo que nas palavras de Venosa: "Se a mera dissipação de bens é suficiente para a definição do pródigo em sentido jurídico, mostra-se evidente o descompasso entre as normas desse instituto e aquelas outras, constitucionais, que garantem o direito fundamental à inviolabilidade da vida privada (Constituição da República, art.5o, inciso X), à propriedade privada (Constituição da República, art. 5o, inciso XXII) e o respeito, como princípio fundamental da República, da dignidade da pessoa humana (Constituição da República, art. 1o, inciso III)". [6]
Ademais, Segundo a Ministra do STJ Fátima Nancy Andrighi: "o Código faz crer que se trata de uma enfermidade autônoma, quando, na verdade, a prodigalidade não é uma doença mental e sim um sintoma que aparece em várias patologias mentais.". E complementa: " o Código erra, primeiro, porque a prodigalidade é um sintoma que pode dar em doente mental, que, teoricamente mereceria a interdição total. Em segundo lugar, porque o legislador, tendo estabelecido a interdição relativa ao pródigo, deveria tê-lo feito também para o avaro, tão nocivo quanto o pródigo." [7]

4. Conclusão
Seja como for, é inegável que teria sido melhor se o legislador tivesse seguido os conselhos de Clóvis Bevilaqua e Caio Mário, suprimido do Código a prodigalidade como causa de interdição.
Por outro lado, tendo em vista que a liberdade humana certamente é um dos maiores direitos protegidos pela Carta Magna, nada mais frustrante do que o cerceá-la, deixando de lado a essência do indivíduo, cortando-lhe o acesso ao mundo, afinal, se a prodigalidade é um vício, como já reparara Aristóteles, trata-se de um vício que se cura facilmente, se não pela idade, quase certamente pela pobreza. [8]

5. Bibliografia
AURELIO. O Dicionário da Língua Portuguesa ? Reforma Ortográfica, 6ª Edição, São Paulo, Editora Positivo, 2010.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3. ed. tradução Mário da Gama Kury, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil ? v. 1. 8 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1949.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil . v. 1. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.
VENOSA, Sílvio Salvo de. Direito civil: parte geral. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003.
FÁTIMA NANCY ANDRIGHI, em Palestra sobre: INTERDIÇÃO E CURATELA - proferida no seminário sobre Interdição, realizado no Superior Tribunal de Justiça, em 07/11/2005, texto extraído de http://diviliv.blogspot.com/2007/11/pesquisa-interdio-e-curatela-palestra.html, acessado em: 19/06/2010).
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[1] AURELIO, O Dicionário da Língua Portuguesa ? Reforma Ortográfica, 6ª Edição, São Paulo, Editora Positivo, página 798.
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3. ed. tradução Mário da Gama Kury, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, p. 1107.
[3] BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil ? v. 1. 8 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1949, p. 202.
[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil . v. 1. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 258
[5] VENOSA, Sílvio Salvo de. Direito civil: parte geral. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 182
[6] VENOSA, op. cit. p. 172
[7] FÁTIMA NANCY ANDRIGHI, em Palestra sobre: INTERDIÇÃO E CURATELA - proferida no seminário sobre Interdição, realizado no Superior Tribunal de Justiça, em 07/11/2005, texto extraído de http://diviliv.blogspot.com/2007/11/pesquisa-interdio-e-curatela-palestra.html, acessado em: 19/06/2010).
[8] ARISTÓTELES, op. cit. p. 1121.