Esse artigo tem por objetivo tratar da questão do nascituro à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, especialmente no que tange à antecipação terapêutica do parto em caso de feto anencefálico. Vejamos primeiramente o que prescreve o art. 2º do Código Civil de 2002:

Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

A partir do momento em que o embrião fecundado está no ventre materno, temos do ponto de vista jurídico o "nascituro", ou seja, aquele vai nascer. Eis a diferença do nascituro para o embrião fertilizado in vitro: enquanto aquele está sendo gerado e potencialmente pode vir a ser uma pessoa, ao nascer com vida, este não será implantando ao útero de uma mulher, pois são embriões que restaram de tratamentos de fertilização, ficando congelados em laboratórios.

O doutrinador César Fiúza explica:

O nascituro não tem direitos propriamente ditos. Aquilo a que o próprio legislador denomina "direitos do nascituro" não são direitos subjetivos. São na verdade, direitos objetivos, isto é, regras impostas pelo legislador para proteger um ser que tem a potencialidade de ser pessoa, e que, por já existir pode ter resguardados eventuais direitos que virá a adquirir ao nascer.[1]

O nascituro, prescreve de forma clara o diploma legal civil, tem seus direitos resguardados pela legislação, embora ainda não possua a personalidade jurídica. Observamos a proteção ao nascituro tanto no âmbito civil, quanto no penal. Na primeira seara encontramos, por exemplo, o direito do nascituro representado por sua genitora de receber alimentos e também o direito à herança.

O direito penal tutela a vida daquele que vai nascer, por isso é previsto como crime o aborto, no art. 128 do Código Penal Brasileiro. Há apenas duas situações em que o fato não é considerado típico: quando a gravidez resulta de estupro ou no caso do abortamento imprescindível para salvar a vida da mãe da criança.

Temos nesse momento uma questão pertinente: o nascituro é destinatário da dignidade da pessoa humana? A resposta é afirmativa. Explica-se: embora não seja ainda considerado pessoa humana, tampouco detenha personalidade jurídica, a legislação vigente de forma expressa e não ensejando quaisquer dúvidas, garante os direitos daquele que está no útero materno e que ainda vai nascer. E dentre tais garantias, encontra-se a dignidade. Trata-se até de uma conclusão lógica, afinal se a lei lhe assegura a vida, essa vida tem de ser digna.

Tem sido muito debatida no meio jurídico e também ventilada pela imprensa a questão do feto anencéfalico. Conforme o próprio nome sugere a anencefalia é a ausência do encéfalo, que é centro de nosso sistema nervoso, além do não surgimento também da caixa craniana. Trata-se, portanto, de uma vida inviável, pois segundo a literatura médica, ao nascer a criança sobreviverá poucas horas.

Tendo por base a certa não sobrevivência extra-uterina do feto anencefálico, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) ingressou no Supremo Tribunal Federal com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, sustentando que o aborto de tais fetos seria um fato atípico, não constituindo um crime. A ADPF ainda não foi julgada pelo Pretório Excelso, pois o Ministro Marco Aurélio pediu vista do processo.

Há muitos anos desembocam no Poder Judiciário pedidos de antecipação do parto de fetos anencefálicos, sendo que muitas decisões são favoráveis e outras contrárias. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal, guardião máximo de nossa Carta Magna é essencial para que se obtenha segurança jurídica em relação ao tema.

Convém investigar se o abortamento do nascituro anencéfalo constitui afronta aos princípios da dignidade e da vida. Entendemos que a refutação nesse caso é negativa. Explica-se: a dignidade visa preservar uma existência com respeito à integridade física e moral da pessoa. E nesse caso é preciso que se encare a realidade de que tais fetos não são passíveis de ter uma vida viável, pois o obstáculo para que isso ocorra (a existência da função cerebral) é intransponível em tais conjunturas. Vejamos um trecho do voto do Ministro Carlos Britto, na ADPF nº 54:

Pois bem, estados psico-físico-morais desse mesmo teor e magnitude costumam recobrir todo o processo da gravidez do tipo anencéfalo, desde a comprovação da anomalia. Anomalia que, se não está na conjunção carnal de que proveio o concepto, está no próprio fruto da concepção. Ele, ser ainda alocado no ventre "materno", é que padece de uma teratologia tal que antecipa esta dilacerante certeza: a certeza de que dele nem sequer é possível dizer que tem hora marcada para morrer... porque já vai nascer cerebralmente morto! Com o que se despedaçam por antecipação os mais dourados sonhos, as mais alentadoras expectativas, os mais afetivos planos, as mais lúdicas fantasias que soem permear o encantado universo da mulher às vésperas de ser mãe.[2]

Do voto do Ministro Carlos Britto pode-se extrair também que o preceito do direito à vida não estará violado em caso da referida antecipação do parto. Sem o centro de seu sistema nervoso não há possibilidade de vida exeqüível, então que existência é esta que estaria sendo protegida? Sem o encéfalo, não há que se falar em vida, ainda que as funções respiratórias e cardíacas resistam por algumas horas.

É ainda pertinente que se trate da dignidade da mulher que está gestando um feto anencefálico. Obrigar uma pessoa a dar continuidade a uma gravidez em que se sabe que a criança não sobreviverá é impor a esta mulher um sofrimento desumano. Como bem disse o Ministro Carlos Britto, estariam fulminadas todas as expectativas que rodeiam o desejo de ser mãe.

A situação pode ser comparada, guardadas as devidas proporções a uma gravidez resultante de um estupro. Nesse caso, o legislador sabiamente preocupou-se com a integridade moral daquela que é vítima de um crime sexual, uma das faces mais perversas do mal. Seria demasiado cruel, excedendo qualquer limite do bom senso, forçar essa pessoa, suficientemente traumatizada, a levar adiante uma gestação que fora concebida de maneira deveras monstruosa.

Na situação que colocamos em pauta aqui, é óbvio que não se trata de uma gravidez resultante do estupro. Todavia, não se pode olvidar que se trata de situação tormentosa para quem a vive. É verdade também que muitas mulheres optam por esperarem os nove meses e não pleiteam judicialmente a antecipação do parto. Mas diante desses casos difíceis, é necessário que se dê a devida liberdade para que cada um possa decidir da maneira que melhor lhe convier.

A concepção de um feto anencefálico constitui conjuntura anômala, excepcional e realmente dolorosa. É necessário que a lei, diante de tais ocorrências, lhe preste a devida atenção. Finalizamos com o entendimento de que, do ponto de vista do princípio da dignidade da pessoa humana não há óbice que impeça a antecipação terapêutica do parto.


[1] FIÚZA, César. Direito civil: curso complemento, 8ª ed. rev., atu. e amp. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 114.

[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Voto do Min. Carlos Britto em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, p. 18/19. Disponível em www.stf.jus.br. Acessado em 29/10/09.