O monstro está em nós

Esta reflexão já é antiga, mas dada à sua atualidade, mantenho-a, neste contexto não apenas para evocar o passado, mas para refletirmos sobre o presente. Para constatarmos que aspectos do passado continuam se manifestando no presente... e não se alterarão, essencialmente, nos futuros...

vejamos, então, de que se trata:

A situação era bem cotidiana. Junto com meus filhos assistia um filme qualquer em que apareciam aqueles monstros criados pela imaginação do cineasta. Uma situação sem maiores implicações não fosse uma frase proferida pela sabedoria infantil de minha filha de 10 anos.

É claro que a pirralha estava com medo das cenas de terror do filme. Mas na sua cabecinha de criança ela buscou um argumento racional, e definitivo, para superar seu medo. E com coragem afirmou: “Os monstros não existem de verdade, né, pai? Eles só estão dentro da gente!” Mal ela terminou a frase meu filho, 12 anos, contra argumentou: “Claro que existe! Não vê essa guerra? Só um monstro provoca uma guerra assim!”. Não houve tréplica, mas os argumento dos dois são perfeitos para uma reflexão...

Olhei para ambos e admirei-lhes a profundidade do pensamento: “O monstro não existe. Ele está dentro de nós!” “Só um monstro provocaria uma guerra!”

É claro que nem todos dão muita atenção ao que dizem as crianças. Mas também é verdade que elas dizem verdades. Falam daquilo que lhes vai na alma, sem a preocupação de ser agradável ou agredir alguém: apenas falam aquilo que pensam, sem máscaras!

Diante do medo das cenas da ficção que assistia no filme, e para superá-lo, nada mais óbvio do que criar uma racionalização: monstro não existe! E o que ela afirma é verdade, pois aquele personagem horroroso do filme só existe na película como resultado de algo que estava dentro da imaginação do cineasta. Ele só se corporificou porque o artista lhe deu uma forma. Mas, terminada a projeção do filme ele deixa de existir na tela passando a existir na imaginação – portanto dentro de nós! E o restante da explicação deixo por conta dos psicólogos!

Mas antes de passar a bola podemos olhar para “dentro da gente”. E para isso invoquemos a resposta à primeira frase. “só um monstro provoca uma guerra assim!”, referindo-se é, claro, à agressão norte-americana ao Iraque. Mas o principio é o mesmo que alimenta a intolerância de Israel em relação aos palestinos; que mantém as brigadas assassinando pessoas das comunidades... e a lista poderia se estender...

Com o argumento de não havendo o monstro não haveria guerra, está reforçada a afirmação de que ele, realmente, está dentro das pessoas. Ou você não acha monstruosa a situação em que inocentes são atingidos por bombas que nem se imagina o potencial destruidor? É claro que o ser humano não é, literalmente, um monstro, mas em muitas situações age como tal.

E com isso poderíamos sair pelas ruas buscando as monstruosidades que se praticam por aí: é o crime organizado mandando mais do que as autoridades constituídas e dando as ordens no Rio de Janeiro e São Paulo. Mas não só lá! O tal crime “organizado” se ramifica pelo mundo afora e estica seus tentáculos até pela nossa região. Ou será que por aqui não existem traficantes, passadores e viciados que, como lá, matam pais e mães e avós? e do outro lado, como reação desesperada, não vemos pais tirando a vida de filhos monstruosamente devorados pelo vício?

E não é só. Tem muito mais monstruosidade nossa de cada dia, rondando por aí. Deixar que as estradas se transformem em peneiras e provoquem acidentes fatais, também é monstruoso. A fila quilométrica na porta do hospital público, fazendo com que muita gente morra nos corredores, sem atendimento, também é ato monstruoso. A negligencia de muitos funcionários públicos que se acham os bons e por isso se atribuem prerrogativa de atender mal com desdém, com descaso...

E assim poderíamos enumerar incontáveis situações em que o homem, setores de uma administração pública, ou grupos determinados, agem com o fim claro de prejudicar outras pessoas e, com isso, tirar proveito pessoal. E isso é desumano. É monstruoso!

E o que move alguém a agir prejudicando, premeditadamente, outras pessoas?

Não é, com certeza, um sentimento de “amor ao próximo”. Não faz parte das características humanas de bondade, solidariedade... Essas atitudes não são valores humanos.

É verdade que alguém poderia dizer que isso de solidariedade, bondade... são atributos cristãos e quem não é cristão não estaria sujeito a eles. Mas não. Esses valores são éticos. São humanos. E na medida em que a humanidade menospreza esses valores permitindo que a vontade e as vantagens pessoais se sobreponham ao bem coletivo estamos não num campo religioso, mas ético. E a ética, como realidade humana, tem uma palavra a dizer sobre esses atos que chamamos monstruosos. Atos dessa natureza desumanizam o homem. E se o homem se desumaniza transforma-se em um monstro! Um monstro que habita dentro de nós.

Esse monstro tem por vezes, uma dimensão psicológica ou a cara feia duma guerra.

E então minha filha e meu filho, e as outras crianças, em sua sabedoria infantil anteciparam a reposta: o monstro está dentro de nós. E só uma “cruzada” ética pode resgatar e restaurar a humanidade atacada pelos monstros que habitam em nós...

Neri de Paula Carneiro – Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo, Historiador.

Rolim de Moura – RO