O MITO DA NEUTRALIDADE DO JUIZ NA DECISÃO JURÍDICA [1] 

Adriana Alberto[2]

Eduardo Fellipe Silva Ribeiro[3] 

SUMÁRIO: Introdução; 1 Papel do juiz e sua funções;  2  Fundamentação e Argumentação na decisão judicial; 3 O mito da neutralidade do juiz; Considerações Finais; Referencias. 

RESUMO: 

O presente trabalho traz uma reflexão acerca do mito de neutralidade que se atribui ao juiz, determinando o fim de um conflito originado através de sua interpretação da lei que já é posta por um legislador e representante de uma coletividade. Até que ponto há objetividade e desfaz-se a subjetividade de uma pessoa com seus princípios e crenças próprias, ao decidir de forma justa, ainda que valorativa, o desfecho de uma questão que envolve pessoas (partes) em sua complexidade e direitos.

PALAVRAS CHAVE:

Juiz. Decisão Jurídica. Fundamentação. Argumentação. Neutralidade.

INTRODUÇÃO

A partir de um conflito jurídico instaurado, um processo é formalizado e passando por todas as etapas ou instâncias, culmina-se nas mãos de uma autoridade que tem por função principal, interpretar a lei em seu sentido mais amplo a fim de finalizar esse conflito e ainda atribuir a esta decisão o senso de justiça estabelecida para ambas as partes envolvidas.

Dessa forma, entende-se que o juiz precisa decidir a partir de princípios de ordem geral e não próprios como a neutralidade e a imparcialidade, mantendo sua opinião de fora e, assim tentar analisar a situação de forma ampla e a partir de então decidir de maneira fundamentada.

Porem há que ressaltar dentro deste estudo, o fato de que mesmo baseando-se numa lei pré-existente, até que ponto se pode entender essa neutralidade e imparcialidade, já que como sujeitos, o homem é dotado de subjetividades e como Freud mesmo menciona em sua teoria psicanalista da personalidade, dotados de conflitos latentes em nosso inconsciente que de certa forma nos conduz no dia a dia, independentes. Portanto, como um ser tão complexo como o ser humano, psiquicamente falando em sua subjetividade, pode ser tão objetivo ao analisar um fato e decidir sobre tal? Seria, assim, a neutralidade um mito?

   

1          PAPEL DO JUIZ E SUAS FUNÇÕES

Na sociedade medieval o direito não era posto pelo Estado, mas sim pela sociedade civil, sendo que nessa sociedade o Estado não se preocupava em fazer e criar normas jurídicas. Nesse sentido o juiz ao resolver um caso concreto não buscava as normas do Estado, assim poderia resolver o caso por regras de costume, por critérios equitativos (razão natural), ou seja, nas fontes do direito (BOBBIO, 2006. p.27-28).

No Estado moderno o direito era posto pelo Estado, pois nele que se concentravam os poderes do direito, assim determinava uma sociedade monista. Dessa forma o juiz era um órgão do Estado onde tinha a obrigação de aplicar as normas postas pelo Estado, ou seja, o judiciário é subordinado ao legislativo (BOBBIO, 2006. p.27-28).

“O juiz serve, como representante democrático do Poder Público, com investidura legitimada pela vontade popular por intermédio do concurso ou nomeação públicos”. Dessa forma o juiz ainda é um político, pois tem um comportamento direto na sociedade. (BENETI, 2000, p.149).

O Estado tem poder de administrar a justiça, com o dever de julgar. “Se o juiz que recusar a julga, a pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei poderá ser processado como culpado de denegação de justiça”, de acordo com o código civil, art. 4 (BERGEL, 2000, p.418). Tendo o juiz à missão direcionada as condições históricas e ideológicas de cada caso. O seu papel é de criador do direito, pelo fato que resolver os casos concretos através da lei em virtude de propor uma justiça efetiva (BERGEL, 2000, p.421).

Os deveres que o juiz estabelecem-se sobre o termo da magistratura, pois constitui um campo vasto da ética, moral ou  deontologia da magistratura. Sendo esses deveres decorrentes sobre as normas legais que são: “as prescrições da Constituição Federal, da Lei Orgânica da Magistratura, das Normas Processuais Federais, das Constituições dos Estados, das Leis de Organização Judiciária e das Normas Administrativas dos Tribunais” (BENETI, 2000, p.150- 151).

“Os deveres jurídicos do Juiz estão nas normas postas pelo direito positivo”. Já os morais estão na função jurisdicional, que constituem a moralidade. (BENETI, 2000, p.153-169). Para Beneti um bom magistrado tem que constituir algumas virtudes essenciais que vão se expressar por quatros deveres sendo: deveres pessoais, deveres sociais, deveres organizacionais e deveres jurisdicionais.

Assim o primeiro proporcionar a cordialidade no trato pessoal, o sentimento de justiça, a firmeza ao decidir um caso, a independência (sua própria consciência), a prudência no decidir e no executar, o senso crítico, a ausência de preconceito no agir, a obediência á lei, a comunicabilidade com o pessoal judiciário, a coragem pessoal e a perseverança ao decidir. O segundo referir à sintonia social, desvinculação (direito e justiça), imagem pública, atuação comunitária e a igualdade de tratamento. O terceiro expressa a pontualidade (nas decisões, nas audiências), o senso de direção, a justiça na direção organizacional, liderança do pessoal cartorário (severidade). E o quarto se corresponde à presteza nas decisões e providências, a motivação das decisões, a aplicação aos casos (um bom julgamento), e a disposição de justiça (BENETI, 2000, p.169-173).    

“Um bom juiz é aquele que na atividade jurisdicional, se dedique á busca da justiça”. “Todo o poder do juiz esta na ponta da caneta com que se escreve e assina” (BENETI, 2000, p.226).    

O juiz ao decidir um caso concreto busca através da aplicação da lei e ainda pela sua experiência como magistério, resolve de forma justa e honesta perante a justiça.              

Norberto Bobbio destaca a decisão do juiz como fonte do direito a partir do princípio da eqüidade:

No juízo de eqüidade, o juiz decide “segundo consciência” ou “com base o próprio sentimento de justiça”. Poder-se-ia dizer também que ele decide aplicando normas de direito natural, se concebemos este último como conjunto de regras preexistentes. Ao prolatar o juízo de eqüidade, o juiz se configura como fonte de direito, mas não como fonte principal, mas apenas como fonte subordinada, porque ele pode emitir tal juízo somente se e na medida em que é autorizado pela lei e, de qualquer maneira, nunca em contraste com as disposições da lei (BOBBIO, 2006, p.172).  

Entendo a partir dessa análise feita, que o direito, enquanto normas positivas e postas, realmente pretende englobar de forma completa, tudo que faz parte do conflito jurídico, porem vê-se que em alguns casos as lacunas que impedem o juiz de apenas se ater á lei postulada e formulada pelo legislador em sua integra, apesar de basear-se nelas para incluir seu valor. Como por exemplo, o art.5º da Lei de Introdução ao Código Civil, postular que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e ás exigências do bem comum” (PAUPÉRIO, 2002, p.313).

“As lacunas ou os vazios da lei devem ser supridos, pela analogia, pelos costumes e pelos princípios gerais do direito” (PAUPÉRIO, 2002, p.313). Sendo assim o juiz vai decidir o caso de acordo com essas perspectivas mencionadas.

“Nos casos não previstos na lei, o juiz decidira segundo o costume e, na falta deste, conforme regras que estabeleceria se fosse legislador. Inspirar-se-á na doutrina e na jurisprudência mais autorizadas á aquele caso” (PAUPÉRIO, 2002, p.313).  

 

 

2 FUNDAMENTAÇAO E ARGUMENTAÇAO NA DECISAO JUDICIAL

Dentro do contexto de uma decisão judicial é muito importante a fundamentação, ou seja, a partir de quê o juiz tomou sua decisão que precisa ser devidamente explicada, com base na lei positivada, postulada. Evidentemente que há casos de conflitos jurídicos que a lei não alcança, onde já foi exposto anteriormente, o caso das lacunas deixadas, entretanto, ainda assim a própria lei obriga o juiz a decidir, com base em outras fontes como os costumes, a jurisprudência o senso popular. Ao decidir, é necessário fundamentar, demonstrar o porquê daquele posicionamento.

Alguns tradicionalistas costumam mencionar o uso do silogismo na sentença judicial, ou seja, atribuir a lógica na sentença, um argumento onde a conclusão é inferida em duas premissas, de acordo com Irving M. Copi. Portanto, entende-se que a sentença, na sua formação, aparece como silogismo na medida em que a premissa maior é a regra do direito e a premissa menor a situação de fato. A conclusão é extraída da aplicação da regra legal à situação de fato (NOJIRI, 2000, p.75-76).

Outros autores, porem, criticam a fundamentação de uma decisão com base no silogismo, como Tercio Sampaio Ferraz Jr. mencionando que a doutrina pode inicialmente entender a decisão jurídica como uma construção de juízo deliberativo do juiz, do administrador, ou ainda do legislador. Porem reduzir o processo decisório à lógica da dedução o restringe e não revela sua real complexidade (FERRAZ JÚNIOR, 2010, p.315).

Em relação a complexidade do processo decisório podemos enfatizar que a força argumentativa é tão importante que nos leva a entender que a decisão por mais que não seja, de fato é justa. Ressalta-se ainda que a dogmática contida na decisão judicial, também se torna importante devido ao fato de ter uma função social importante: a do respeito à ordem jurídica e consequentemente do controle social.

Segundo Tercio Sampaio Ferraz Junior, os argumentos jurídicos nos levam a tomar o direito como uma ordem de distribuição de forma que se pode admitir duas possibilidades tipológicas: o sistema formal e o material. O sistema formal é o tipo que organiza as normas em termos de generalidades, buscando a extensão normativa da lei. O sistema material organiza as normas conforme sua uniformidade, ou seja, a universalidade significa intenção normativa.

Dessa forma, a força argumentativa usada pelo juiz em seu processo decisório nos leva a idéia de justiça como justeza, ou seja, essa força normativa carregada de dogma, no sentido de não haver questionamento sobre essa autoridade bem como à competência atribuída, o que nos remete ao fator social de controle e ordem jurídica. Entretanto, apesar de caber recurso, a decisão não é invalidada, apenas revista, em alguns casos e reafirmada em outros.

 

3 O MITO DA NEUTRALIDADE DO JUIZ

A imparcialidade do juiz como uma exigência fundamental para a realização do devido processo legal, é garantida através da segurança do princípio do contraditório, sendo assegurado conforme menciona o art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

O juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas eqüidistante delas:é dever do mesmo ouvir ambas as partes bem como receber suas provas e documentos. Somente pela soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra, a antítese), o juiz pode corporificar a síntese, em um processo dialético. É por isso que foi dito que as partes, em relação ao juiz, não têm papel de antagonistas, mas sim de colaboradores necessários cada um de acordo com seu interesse, contribuindo com a resolução do conflito. (CINTRA;GRINOVER;DINAMARCO, 1993, p.53).

Assim a imparcialidade se trata de regra técnica observada no âmbito processual, enquanto que a neutralidade diz respeito à medida e a objetividade do juiz ao analisar o caso em questão. Em termos de objetividade de analise do conflito, seria possível para o juiz manter-se neutro?

A princípio a resposta é não. Não porque o juiz é um homem, carregado de subjetividade, conflitos internos, princípios morais, que o impedem de tomar uma decisão sem que para tal acabe por se expressar. Para clarear esta idéia pode-se tomar como exemplo um caso real, a citar o caso Isabela Nardoni. Este foi um caso de comoção nacional, onde a mídia e a opinião pública demonstram claramente o pesar de uma mãe que perdeu sua filha através do assassinato na mesma na casa de seu pai e madrasta e onde estes se tornaram os principais suspeitos. Pesa ainda que as provas periciais apontem para os suspeitos que já estavam presos durante o julgamento. Assim o que se quer demonstrar é que num caso como esse, com um forte apelo de justiça, o juiz apesar de tentar se manter neutro diante do caso, torna-se impossível ao sentenciar de forma escrita, a expressão de sua opinião, de seus princípios e de seu pensar enquanto pai, diante da situação do próprio pai da menina tê-la assassinado.

Mesmo que de forma contraditória, reconhece-se que a neutralidade do juiz, apesar de considerada um mito, possui grande importância para a manutenção da credibilidade do Poder Judiciário.

Essa credibilidade está relacionada com o exercício de papéis sociais e a crença na figura da Justiça, pois, conforme comenta Luiz Antônio Nunes, é preciso ressaltar a necessidade que a sociedade tem de manter valores fundamentais que precisam ser fortes e não demonstrar fraquezas ou falhas como a justiça. (NUNES, p.127-128).

Evidentemente que apesar de não considerar a neutralidade possível a um sujeito em sua complexidade psíquica, é importante ressaltar que o juiz conhece técnicas que o ajudam a interpretar a lei e tomar uma decisão que finalize o conflito e ainda exerça por força da dogmática o seu papel social de credibilidade do poder judiciário enquanto aplicador do direito e conseqüente tradutor da justiça.

CONSIDERAÇOES FINAIS

Como se vê através do exposto entende-se que a neutralidade do juiz é um mito, porém um mito necessário ao bom funcionamento do Poder Judiciário no que envolve a resolução dos conflitos jurídicos. É necessário, pois como sociedade organizada, ao se fazer parte de um Estado Democrático de Direito, Estado enquanto instituição e, portanto que necessita de regulamentação aos que o integram, bem como em torno de seu poder propriamente dito, democrático porque se pede uma maior participação dos cidadãos nas decisões a serem tomadas dentro desse contexto institucionalizado e de direito porque se formula e se aplica o direito de forma sistematizada, mantendo-se ainda, uma força de dogmas que controlam esses cidadãos, assim como a sociedade em geral. Um dos papeis desses dogmas se faz em torno da função do juiz de direito. É ele a autoridade que interpreta a vontade do legislador e aplica a lei efetivamente na ânsia de justiça para o conflito jurídico iniciado. É ele que exerce o papel de mediador do conflito e sua autoridade e competência é algo que não pode ser questionado, pois em torno de sua função já está determinado esse quê de neutralidade e sua imparcialidade diante das partes.

Entretanto essa neutralidade se torna frágil diante de uma ciência como a Psicologia, que ao estudar o comportamento humano, entende que este não consegue se desprover de si mesmo ao abordar questões que ainda que não sejam suas, acabam por envolvê-lo nelas. É a tal subjetividade humana, que diante de tanta complexidade e, apesar de haverem técnicas que o auxiliam nesse embate, não conseguem manter esse sujeito apenas objetivamente em relação a um fato e como decidir sobre ele.

 

 

 

REFERÊNCIAS

BENETI, Sidnei Agostinho. Da conduta do Juiz. 2 ed.rev. São Paulo: Saraiva, 2000.

BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 9º ed. 2º tiragem. São Paulo: Malheiros editores, 1993.   

 

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação / Tercio Sampaio Ferraz Junior. – 6 ed. 2 reimp. São Paulo: Atlas, 2010.

NOJIRI, Sergio. O dever de fundamentar as decisões judiciais / Sergio Nojiri. – 2 ed. ver. Atual e ampl. – São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2000. – (Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman; v.39).

NUNES, Luiz Antônio. O Poder Judiciário e o Papel do Empresariado Nacional: uma nova Ética para o juiz. São Paulo: Revista dos tribunais.   

PAUPÉRIO, Artur machado. Introdução ao estudo do direito. 3ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.



[1] Paper elaborado para disciplina Introdução ao Estudo de Direito II, ministrada pela professora Luiza Oliveira;

[1] Aluna do 2º Período do curso de Direito Vespertino da UNDB

[2] Aluno do 2º Período do curso de Direito Vespertino da UNDB