O Milagre da Criação e o Poder Constituinte Originário

Por
Ângelo Dassayeve Baliza Almeida
Luiz Lucas Libânio do Carmo


O Ordenamento jurídico pode ser considerado o conjunto de todas as leis e atos normativos que regulam o Estado. Todo o ordenamento deriva em última instância da norma maior do Estado, ou seja, a Constituição Federal. Partindo do pressuposto de que a Constituição é a base do ordenamento, conclui-se que o fato criador da Constituição é, também, fato criador de todo o ordenamento. No caso, o Poder Constituinte Originário é “o Criador” da ordem constitucional do Estado.
O Poder Constituinte Originário é aquele que tem a legitimidade de criar a Constituição, ele determina o alicerce da pirâmide que representa a ordem constitucional e, por conseguinte, todo o restante. Nenhuma lei ou ato normativo que contrarie a Constituição deve permanecer no ordenamento, portanto, o Poder Constituinte não se prende a nada, nada o determina, nada o limita, ele é a fonte primária que dá validade a toda e qualquer disposição jurídica. Neste sentido, o Poder Constituinte Originário representa o “milagre da criação”, segundo Carlos Ayres Britto “Temos, portanto, dois poderes que tudo podem: Deus no céu e o Poder Constituinte na terra” (Britto, p. 26).
Sempre que surge uma Constituição é o Poder Constituinte Originário que está se manifestando. A titularidade desse poder cabe ao povo e não há divergência quanto a isso; “Contemporaneamente, é hegemônico o entendimento de que o titular do poder constituinte é o povo, pois só este tem a legitimidade para determinar quando e como deve ser elaborada uma nova Constituição” (Paulo, p. 76). Porém, não é sempre que o poder é exercido de forma correta, não são poucos os casos na história em que pessoas que visavam apenas saciar sua fome de poder usaram das atribuições do Poder Constituinte Originário para alcançar esse objetivo. Quando o exercício desse Poder se dá por seus detentores legítimos, no caso o povo ou seus representantes legais, o que se tem é uma grande vitória da democracia, como no caso da promulgação da Constituição Federal de 1988.

A outorga constitui, portanto, a criação autocrática da Constituição, um exercício do poder constituinte pela única vontade do detentor do poder, sem a representação nem participação dos governados, do povo, destinatários do poder. Temos, nesse caso, o que a doutrina chama de poder constituinte usurpado (Jorge Miranda; Paulo Bonavides).
O exercício democrático do poder constituinte ocorre pela assembléia nacional constituinte ou convenção: o povo escolhe seus representantes (democracia representativa), que formam o órgão constituinte, incumbido de elaborar a Constituição do tipo promulgada. (Paulo, p. 76-77)

Como já foi dito acima, o Poder Constituinte é ilimitado e onipotente, é a partir da sua atuação que se inicia a existência da Constituição e do ordenamento. Somente o Poder Constituinte Originário tem a legitimidade de criar uma Constituição, no entanto, discute-se que o Poder Constituinte Derivado também tenha a atribuição de criar normas constitucionais, porém este poder opera apenas nos limites e espaços que foram concedidos pelo Poder Originário.
O poder de reformar a Constituição não é igual à ideia de criar a Constituição, existem mecanismos de controle de constitucionalidade e de reforma que limitam a aplicação do poder reformador, como no caso das cláusulas pétreas, por exemplo. A limitação material impede que se altere um artigo que possui este “título”, diferente do Poder Originário ilimitado. Não há como falar em poder ilimitado, sem falar em Poder Constituinte Originário, da mesma forma que não se pode falar em divisão desse poder. Ele é solitário, não divide com ninguém suas atribuições, e não poderia fazê-lo mesmo se quisesse. A onipotência e a unipotência são características irrevogáveis do Poder Constituinte.

O desdobramento de ideia que nos esforçamos por transmitir é simplesmente este: a onipotência não é só o poder de tudo poder. É também o poder de não deixar que outro poder tudo possa. É, a um só tempo, onipotência e unipotência. Poder único, absolutamente inconvivível com outro poder de igual ontologia. Deus, na Sua onipotência, está condenado à solidão.
É próprio do Ser onipotente, portanto: primeiramente, permanecer como a força que tudo pode; segundamente, existir em absoluta solidão. Não há como duas ou mais onipotências ocuparem o mesmo espaço, e por isso voltamos a ajuizar que a natureza de Deus está em ser o poder que tudo pode, menos deixar de tudo poder. Nem de forma direta, nem pela convocação de um êmulo, um sósia, um clone, enfim. (Britto, p. 17)

Há uma parte da doutrina que afirma a existência de limitações ao Poder Constituinte Originário, essa limitação viria do Direito Natural e do Direito Internacional. O Direito Natural pode ser definido como aquele advindo de fontes superiores, como a própria natureza ou mesmo Deus. Ele regulamenta princípios éticos superiores dirigidos a todos os homens e tem por objetivo o bem comum, direitos como a vida, a propriedade e a felicidade.
O Direito Internacional imporia, também, limites ao constituinte originário devido aos tratados internacionais e aos Direitos Humanos que são internacionalmente reconhecidos (em muito se parecem com o Direito Natural), como a vida, a propriedade, a dignidade da pessoa humana.
De acordo com a obra de Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino existiria, ainda, a possibilidade de uma terceira limitação ao constituinte originário, se a Constituição estabelecesse o fim do Estado. Essas possíveis limitações ao Poder Constituinte Originário parecem descabidas. Se o objetivo é findar o Estado não é muito lógico fazê-lo por meio de um instrumento que visa unicamente instituir um Estado (seja ele democrático ou de exceção).
O papel do Direito Internacional é buscar uma ideia comum de justiça no mundo e melhorar o relacionamento entre os países. A soberania de um país é a regra, se determinada nação constitucionaliza um princípio tido como desprezível pelo restante da humanidade (ou por sua parte mais “forte”) ela provavelmente sofrerá sanções internacionais e possíveis intervenções. Mas isso é uma outra discussão, o constituinte originário não é limitado pelas convenções internacionais.
Quanto ao Direito Natural, a tendência é que ele seja positivado com a Constituição, mas o constituinte originário não tem a obrigação de fazê-lo ou direcionar suas ações para que esses princípios não sejam feridos. Cabe ao povo, como titular do Poder Constituinte, legitimar ou não as decisões do constituinte originário. Pois é este povo que irá gozar das virtudes ou sofrer com os defeitos de seu ordenamento jurídico.

No Brasil predomina a doutrina positivista, segundo a qual não há limites à atuação do poder constituinte originário. Com isso, pode-se dizer que, teoricamente, o poder constituinte originário, em nosso País, é ilimitado na sua função de iniciar a ordem jurídica do novo Estado, não devendo obediência ao direito internacional, tampouco a considerações de ordem suprapositiva, advindas do direito natural, ou a quaisquer outras. (Paulo, p.80)

Logo, ao Poder Constituinte Originário tudo é possível, e é a partir dele que se manifesta, no plano jurídico, o “Milagre da Criação”. A prerrogativa de fundar o ordenamento e estabelecer seus limites futuros, assim como o modo pelo qual será complementado ou até mesmo revogado pertence ao Poder Constituinte, ele não desaparece depois que conclui seu trabalho de criado, fica ao longe observando sua criação, até o momento em que ele precise se manifestar novamente. Assim como Deus para aqueles em que nele acreditam. Pode-se resumir bem este trabalho nas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto quando esse afirma: “Temos, portanto, dois poderes que tudo podem: Deus no céu e o Poder Constituinte na terra. Um, a dar início à criação do mundo em geral. Outro, a dar início à criação do mundo jurídico em particular e a prescrever o modo pelo qual esse mundo jurídico vai receber seus necessários e infinitos complementos”. (Britto, p. 26).

Referências:

Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

Britto, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forence, 2006.

PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 4. ed.rev.ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2009.