O MELHOR INTERESSE DO MENOR: uma análise acerca do atual Paradigma de Socioafetividade em face da Súmula 301 do STJ

 

Ana Carolina Gragnanin²

Marynelle Leite³

 

Sumário: Introdução; 1. O paradigma da socioafetividade; 1.1 A família para o Código Civil de 1916; 1.2 O novo Código Civil e o paradigma da socioafetividade; 2. Súmula 301; 2.1 Aspectos Gerais; 2.2 Retrocesso ou Avanço?; 3. O princípio do Melhor Interesse do Menor; 3.1 Aspectos Gerais; 3.2 O melhor interesse do menor: vínculo afetivo ou consanguíneo? Considerações Finais; Referências.

 

RESUMO

O presente trabalho pretende discutir o atual Paradigma da Socioafetividade em face da Súmula 301 do STJ, tendo em vista as possíveis contradições entre os mesmos. Para tanto, além de discorrer acerca dos seus aspectos gerais, será feita uma contraposição entre o Paradigma e a Súmula considerando o contexto atual, os conceitos de verdade real adotados por cada um e, principalmente, o Princípio do Melhor Interesse do Menor diante de conflitos envolvendo a paternidade socioafetiva e paternidade biológica.

 

Palavras-chave: Família. Socioafetividade. Menor. Súmula 301.  

INTRODUÇÃO

O Código Civil de 1916 estava recheado de concepções arcaicas e preconceituosas que defendiam uma rígida e injusta diferenciação entre os filhos. Essa visão retrógrada, entretanto, foi abandonada com a Constituição de 1988 e, posteriormente, com o Código de 2002. Em resposta à ideia patriarcal e autoritária de família instituída, a CF/88 passa a tratar o tema com base em princípios como igualdade, dignidade e solidariedade. Assim, dentre outras inovações, se reconhece a união estável, a igualdade entre homens e mulheres e a igualdade entre os filhos (sejam eles originados ou não de um casamento ou de uma adoção). O afeto, por sua vez, passa a ser considerado como fator determinante na instituição das relações familiares, afastando-se aí o laço sanguíneo como sendo o único meio formador da família.


¹ Acadêmica do 10° período noturno do Curso de Direito

² Acadêmica do 10° período noturno do Curso de Direito

  1. 1.      O PARADIGMA DA SOCIOAFETIVIDADE

            1.1. A Família para o Código Civil de 1916

            O Código Civil de 1916 tinha como um dos seus pilares fundamentais a ideia da família patriarcal, aquela na qual o homem era visto como o chefe da estrutura familiar e a mulher, considerada uma pessoa relativamente incapaz, a ele devia obediência e tinha como função apenas colaborar nos encargos da família. Ademais, a referida legislação considerava o casamento como o único meio pelo qual uma família poderia ser constituída, sendo por isso um instituto indissolúvel. O máximo que se permitia à época era o chamado “desquite”, que equivale hoje à separação judicial. O legislador então buscou ao máximo perpetuar o casamento ao afastar o reconhecimento de toda e qualquer outra forma de relação afetiva que não aquela proveniente dele. Assim, ignoradas foram as relações de cunho convivencial, não sendo conferido nenhum direito às pessoas que mantinham união estável ou concubinato.

Nesse sentido, irreconhecíveis eram os filhos provenientes de relações incestuosas ou adulterinas e dificultada era a realização da adoção, que somente passou a ser entendida como meio de formação de parentesco em 1957. Matheus Antônio da Cunha (2010) destaca que “até 1977, o adotado só tinha direito a metade da legítima, quando em concurso com filhos ditos legítimos, em nítido detrimento do parentesco formado pelo afeto em relação ao formado pela consanguinidade.”. Entende-se que, ao fazer isso, o legislador buscou “castigar” àqueles que procriavam fora do casamento – tido como instituto sagrado.

Assim é que o Código de 1916 conferiu extremo valor aos laços sanguíneos e afastou o afeto como elemento determinante nas relações familiares – havendo clara distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, naturais e adotivos. “As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, numa vã tentativa de preservação do casamento” (DIAS, 2010, p. 30). Com relação à paternidade, o antigo Código a atrelava unicamente à relação biológica entre pai e filho, não sendo reconhecida, assim, a paternidade socioafetiva (não-biológica), constituída a partir da convivência familiar, e não da origem do filho.

1.2.  O novo Código Civil e o paradigma da socioafetividade

Como visto anteriormente, o Código Civil de 1916 adotava uma visão patriarcal e preconceituosa de família que, em atendimento aos anseios e desenvolvimento da sociedade, sofreu sensíveis modificações. Um pouco antes da CF/88, essa mudança de percepção pode ser sentida a partir da criação de leis como a Lei da Adoção (Lei n. 3.133/57), Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/77) e o Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121/62).

A regulamentação dessa nova visão a respeito da família – agora baseada no afeto entre os seus membros e na igualdade entre homens e mulheres e entre os filhos – somente foi feita, em âmbito infraconstitucional, pela promulgação do CC de 2002. O novo diploma, em consonância com os valores da CF/88, passa a reconhecer várias novas formas de família. “O legislador voltou-se para o bem-estar do menor e para a satisfação de seus reais interesses. Dessa feita, desvinculou-se o instituto da guarda à questão da culpa dos pais na separação” (DILL e CALDERAN, 2009). Sabe-se também que, com o novo Código, houve a extinção do poder patriarcal, a permissão da dissolução do casamento, a atualização da adoção, a regulamentação da união estável e o reconhecimento das relações de concubinato.

Assim, o novo paradigma instituído no Direito de Família (em contraposição ao da consanguinidade) é o da afetividade. O sangue deixou de ser elemento de união e o afeto, agora dotado de valor jurídico e entendido como um direito natural dos homens, tornou-se aquilo que dá base a toda e qualquer relação entre duas pessoas, seja ela proveniente ou não de um casamento. A partir disso é que atualmente a doutrina defende a socioafetividade, pois entende que “o elemento material da filiação não é somente o vínculo de sangue, pois, atrás disso, existe também uma verdade socioafetiva.” (LUZ, 2009, p. 162).

O reconhecimento do afeto como aspecto fundamental e determinante nas relações familiares é refletido nas decisões dos magistrados, principalmente no que concerne à paternidade socioafetiva, como pode ser observado nos Enunciados nº 103 e 108 da I Jornada de Direito Civil (promovida pelo CJF e aprovada pelo STJ) que “não apenas reconheceram a instituição da parentalidade socioafetiva, como demonstraram o valor do afeto no ordenamento jurídico brasileiro” (CUNHA, 2009). Desse modo, a paternidade não mais depende unicamente da relação biológica entre pai e filho. O afeto é hoje visto como um princípio que baseia e norteia todo o Direito de Família “e o Direito, enquanto ciência humana e instrumento do povo, não pode ignorá-lo ou diminuir sua importância” (idem).

 

2. SÚMULA 301

            2.1. Aspectos Gerais

            A súmula 301 do Supremo Tribunal de Justiça prevê que a negativa de fornecer material para o exame de DNA induz a presunção de paternidade ao suposto pai na ação investigatória. Ocorre, portanto, uma presunção juris tantum de paternidade que, do ponto de vista processual, deveria se ater apenas ao campo da produção de provas. É valioso ressaltar, no entanto, que esta presunção atinge diversos outros campos, gerando efeitos sobre todos os envolvidos no processo e, sobretudo, ao direito material (LOBO, 2006).

            Assim, embora esteja previsto em nossa Carta Maior que não se faz diferenciação entre os filhos e, por analogia, entre os pais, a súmula parece adotar o pressuposto que paternidade é apenas a biológica. Ora, não se pode esquecer a paternidade civil e a socioafetiva, igualmente importantes e reconhecidas na legislação brasileira, ainda que, decepcionantemente, por vezes esquecidas.

            Além disso, a súmula induz a produção de provas contra si mesmo, confrontando outro pressuposto constitucional – o Nemo Tenetur se Detegere. O referido dispositivo cria “mais uma presunção no Direito de Família: a da confissão ficta ou da paternidade não provada” (LOBO, 2006, p.18) e afronta pressupostos fundamentais, criando presunção que não visa a resolução do problema em si, mas simplesmente o encerramento da questão jurisdicional.

            A Lei nº 12.004/09 veio regular a súmula 301, modificando o texto da Lei 8.560/92, que é a Lei de Investigação de Paternidade, inserindo o parágrafo único ao Art.2º-A. Por meio do parágrafo único, reconhece a presunção de paternidade diante da recusa do suposto pai em fornecer material para o exame. Considere-se, no entanto, que esta presunção é relativa, pois “não basta a simples recusa, por si só, sem o exame do contexto probatório dos autos, para que um determinado réu seja declarado pai de um determinado autor de ação investigatória.” (GARCIA, 2009, p. 1). Não obstante a isso, seguem as inúmeras discussões questionando o avanço ou retrocesso que representa a medida. A respeito disso, siga-se ao próximo subtópico.

 

            2.2. Retrocesso ou Avanço?

            Segundo o autor Marco Túlio Murano Garcia (2006), essa medida veio em uma boa hora, já que presumir a paternidade não significa admiti-la de modo completamente descontextualizado. Em absoluto. Essa presunção de paternidade deve ser apreciada em conjunto com as demais provas disponíveis, de modo a não ferir a segurança jurídica e preservar o menor. Além disso, pretende estabelecer a isonomia entre as partes, já que nas ações negatórias de paternidade, a recusa da mãe em permitir o fornecimento de material do filho pode ser considerada uma presunção de que o suposto pai não o é.

            Em contrapartida, entende-se que a adoção da presunção de paternidade desqualifica a paternidade socioafetiva, ignorando este atual paradigma. Sendo assim, a isonomia prevista constitucionalmente seria mera ilusão. Se não há um modo de paternidade em detrimento do outro, por que preferir a biológica? O exame genético nada mais é que um atestado para fins biológicos. Do ponto de vista científico basicamente não abre margem a dúvidas. Já do ponto de vista social, no entanto, não se pode dizer o mesmo.

            Sendo assim, independe a origem da paternidade (se biológica, civil ou social). Cabe, no entanto, em ação de investigação partir do paradigma da paternidade socioafetiva para, só então, investigar sua origem, que pode ou não ser a mesma da biológica. Nas palavras de Marcelo Di Rezende Bernardes (2005, p.1), “amor, dedicação e assistência são elementos tão importantes na identificação da real paternidade quanto um sobrenome proveniente de uma relação consanguínea”. Não se pode ignorar, contudo, o interesse do maior interessado em toda essa discussão e é exatamente isso que se pretende analisar no tópico seguinte.

  1. 3.      O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR

3.1 Aspectos Gerais

O princípio do melhor interesse do menor é decorrente da valorização dada pela CF/88 à afetividade como cerne da estrutura familiar. Partindo-se da reconhecida vulnerabilidade do menor (criança e adolescente), entende-se que o mesmo necessita de uma maior proteção, pois devido à pouca maturidade que possui, ele não tem plenas condições de tomar as rédeas da própria vida. Busca-se, portanto, fazer com que o menor tenha todas as condições necessárias para um satisfatório desenvolvimento físico, moral, mental e social.

Por se tratar de um princípio e, consequentemente, possuir caráter abrangente, o conceito daquilo que seja o melhor para o menor vai depender do caso concreto e das suas circunstâncias, de modo que não há um padrão pré-definido a esse respeito. Apesar da crítica de que, por não ter um conceito pronto, esse princípio é adotado com muita discricionariedade, entende-se que essa aparente vagueza de definição é favorável, já que permite uma ampliação no âmbito de aplicação do princípio – aumentando-se, assim, o atendimento aos direitos do menor.

Devido à sua imensa importância, o princípio do melhor interesse deverá nortear toda e qualquer medida direcionada ao menor, o que implica que toda vez que alguma solução tiver que ser escolhida nesse aspecto (em especial nos tribunais), somente poderá ser aquela que, no momento, constituir a melhor para a criança ou adolescente – essa mesma premissa também é válida no momento de elaboração das leis. De acordo com Edgard de Moura Bittercourt (2002, p. 189), “se há um terreno onde a Equidade (...) é a regra de ouro, que os juízes devem ter sempre presente, tal será aquela relativa à felicidade de uma criança. Decorre, aliás, da própria regra legal, ao ditar que o interesse do menor é sempre primordial”.

 

3.2. O melhor interesse do menor: vínculo afetivo ou consanguíneo?

            A paternidade é reconhecidamente uma conceituação complexa, haja vista que inclui muito mais elementos a serem considerados do que meramente o ponto de vista científico. Em toda a questão de paternidade, visa focar principalmente no menor, que é o maior interessado na relação. O que seria mais aproveitável: um pai de mesmo sangue que não se importa com o filho, servindo como mero provedor de seu sustento, ou o pai presente, que, embora não compartilhando de relação consanguínea, é o companheiro, que está sempre do lado, servindo de apoio, alicerce e modelo ao menor? Desse modo, não parece justo a discrepante desigualdade do ponto de vista prático que ocorre entre as duas formas de paternidade, ainda que nem mesmo a Constituição Federal faça essa distinção.

Cabe que se aborde também a questão da paternidade genética em caráter substitutivo. A súmula do stj não menciona essa questão, que é garantir a paternidade ao pai socioafetivo se em batalha judicial com o biológico. O que se pretende dizer é que não se pode discutir paternidade de uma criança que já tem um pai socioafetivo (não-biológico). “É incabível o fundamento da investigação da paternidade biológica, para contraditar a paternidade socioafetiva já existente, no princípio da dignidade da pessoa humana, pois este é uma construção cultural e não um dado da natureza” (LOBO, 2005, p.1). É cabível sim, quando o menor não possui um pai, mas não quando este já tem a figura paterna a quem recorrer.

            Não se pode retirar do menor a possibilidade de viver uma relação paternal de fato, conforme comenta Vanessa Souza (2002, p. 21), ao argumentar que a simples caracterização da paternidade “é capaz de concretizar os valores que preponderam em nossa ordem constitucional, garantindo a possibilidade de manter-se o filho numa relação que o engrandece e que traz para ele todos os sentimentos necessários para o seu bem-estar e felicidade”.

           

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não obstante a Constituição Federal prever a isonomia de filiação e, por analogia, a de paternidade, não permitindo a diferenciação entre as paternidades existentes (afetiva, biológica e civil), a súmula 301 do STJ, ao permitir a presunção no caso de negativa do suposto pai em fornecer material ao devido exame, adotou o paradigma genético em detrimento do social, ferindo, portanto, o atual entendimento não só da Constituição Federal, mas também da do Código Civil.

É necessário, portanto, que nessas discussões envolvendo paternidade, o principal interessado seja realmente o cerne da questão. Não é justo que o menor se veja envolvido no centro de interesses puramente econômicos e egoísticos. O que se pretende na ação investigatória de paternidade deve ser resolver a questão em si da melhor forma e não a mera decisão judicial de um caso. Trata-se de pessoas. E, sobretudo, trata-se do futuro de uma criança. Trata de seus valores e princípios ainda em formação. Deve-se priorizar a verdade, mas que seja a verdade tendo o menor como maior atingindo pelos efeitos da decisão jurisdicional.

REFERÊNCIAS

 

 

BERNARDES, Marcelo Di Rezende. Pai Biológico ou Afetivo? Eis a Questão. IBDFAM – 2005. Disponível em: <http://ibdfam.org.br/?artigos&artigo=195> Acesso em: 18 mai. 2012.

BITTENCOURT, Edgard de Moura. Família. 5. ed. Campinas: Millennium, 2002.

CUNHA, Matheus Antonio da. O conceito de família e sua evolução histórica. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis/SC, 27 Set. 2010. Disponível em:<www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/historia-do-direito/170332>. Acesso em: 21 mai. 2012

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7. ed. rev., atual. e ampl.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

DILL, Michele Amaral; CALDERAN, Thanabi Bellenzier. Evolução histórica e legislativa da família e da filiação. Revista Âmbito Jurídico, Caxias do Sul, Jul. 2009. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9019>. Acesso em: 19 mai. 2012.

GARCIA, Marco Túlio Murano. Presunção de Paternidade pela Recusa ao DNA agora é Lei. IBDFAM – 2009. Disponível em: <http://ibdfam.org.br/?artigos&artigo=530> Acesso em: 21 mai. 2012.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. A Paternidade Socioafetiva e a Verdade Real. Revista CEJ, Brasília, n. 34, p. 15-21, jul./set. 2006. Disponível em: <http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/viewFile/723/903> Acesso em: 23 mai. 2012.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Paternidade Socioafetiva e o Retrocesso da Súmula nº 301 do STJ. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/8333/paternidade-socioafetiva-e-o-retrocesso-da-sumula-no-301-do-stj>. Acesso em: 15 mai. 2012.

LUZ, Valdemar P. da. Manual de direito de família. 1. ed. Barueri: Manole, 2009.

OLIVEIRA, Daniela Bogado Bastos de. Convivência familiar: necessidades de novos conceitos. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, RJ, v. 7, n. 8, p. 271-295, jan./jun. 2006. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/24689>. Acesso em: 3 mai. 2009.

SOUZA, Vanessa Ribeiro Corrêa Sampaio. A filiação entre a verdade biológica e afetiva. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, RJ, v. 2/3, n. 2/3, p. 543-598, 2001-2002. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/25496>. Acesso em: 22. Mai. 2012.