Este fato deu-se no ano de 2008 da era Cristã, no sábado de aleluia, em Vargem Grande Paulista, às 21 horas e 50 minutos. Tinha ido acompanhar um amigo numa reunião para doutores especializados em assuntos atemporais. Chovia. Já estávamos nesta experiência desde às 3 da tarde, pois antes fomos à Santa Casa de Misericórdia, onde ele muita necessidade expressava de visitar uma interna. Como é possível constatar, estava eu definitivamente sem programa para tal data, e se antes soubesse o quão longe fica Vargem Grande, ter-me-ia quedado em minha residência, local de abluções e meditação, ao invés de transladar-me nos confins metropolitanos, fazendo uso de todo tipo de transporte público conhecido e admirando paisagens nunca dantes admiradas. 

Às 21 horas e 30, depois de 136 minutos ininterruptos de discussão, registrada em áudio e vídeo na bitola miniDV, com saída NTSC, para os devidos fins, e na presença de 68 presentes, entre idosos e varões, constatei a necessidade de uma paciência paquidérmica para enfrentar fosse o que fosse, que pudesse ainda surgir na referida data, além da desalentada e inexorável viagem de volta, e desci um vão de escada, cujo término fazia-se em plena calçada, tendo ao lado uma humilde botica, com escassa freguesia e iluminação precária.

- Gostaria, por obséquio, de 3 ovinhos (de codorna) e duas fatias (de queijo), disse eu,  apontando para as especiarias expostas na vitrine, sendo que por trás dela se achava um fiel atendente, que talvez com um misto de resignação e boa vontade, trouxe tudo no mesmo prato, com 3 palitinhos.

Teria sido esse o grande gozo na mencionada data, não fosse a aparição de um  homem de idade indefinida, vestimentas de além uso e aquém zelo, puxando uma carroça, tendo esta ficado na calçada, juntamente com 2 cães, devidamente a ela atrelados.

Sem ao menos me cumprimentar, ou evidenciar algum conhecimento prévio e ou parentesco entre nós, simplesmente armou-se com um dos palitos, e, dos 3 ovinhos comeu 2, das duas fatias comeu uma, não sem minha ajuda, pois ficou constatado que o referido homem quiçá estivesse sob efeito de embriaguez alcoólica, mostrando mesmo certa dificuldade em se movimentar, segurar o prato, que fora então por mim alicerçado, até que ele conseguisse utilizar com alguma destreza o último palito, pois dois caíram no chão. Como havia uma porção miúda de molho vinagrete, que acompanhava os ovinhos, bastou apenas um olhar para que eu compreendesse seu pedido, que por sua vez foi  solicitado ao atendente, como há de constar nos autos, duas fatias de pão, sendo esta a quantia total de pão disponível, de acordo com a versão do atendente.

Ao término do manjar o homem gesticulou, com os dedos anular e indicador, pois vislumbrara no bolso de minha camisa o objeto de sua satisfação. Lhe forneci o cigarro, e ainda com a mão, embora noutra gesticulação, ficou pois evidenciado sua necessidade em acender o cigarro, pois efeito algum surtiria o mesmo em seus dedos, se não houvesse algum artefato para, a partir de uma faísca, produzir uma diminuta chama.

- Eu sou o melhor escritor brasileiro – disse ele, após a terceira baforada, sem no entanto me fitar de frente. Como eu nada dissesse, pois nada havia indagado, e com o olhar angustiado pela subtração da refeição, à esmo simplesmente olhava, ainda que nesta direção se encontrasse a carroça, juntamente com os cães.

- Ah...isso – disse o homem, baforando – vazia pesa 100 quilos. Mas vazia não me tem serventia. Chego a rodar 40 quilômetros por dia. Quando chove os papéis ficam pesados. Nem sempre há plásticos e latas suficientes. Você é mudo?

Disse-lhe que não. Mas que nem sempre me sentia animado para conversar, ou quando me sentia faltava assunto, e com o tempo aprendi que na falta é preferível calar.

- Foi justamente por isso – exclamou ele – que eu comecei a escrever. Achava melhor do que falar. Mesmo quando não há assunto. Pois ao escrever não há retorno. Já está escrito.

Um tanto perturbado, tive vontade de fumar.


- Comecei muito cedo, a escrever – prosseguia o homem – acho que foi produto da minha criação. Nasci para ser o gênio da família. Quando criança, se eu rezava o terço, achavam que eu iria ser Papa. Se fazia observações políticas, supunham-me já Primeiro Ministro, se assoviava uma melodia, ficavam encantados e vislumbravam um Maestro. Mas quando comecei a escrever...

- ?

- Me odiaram. Passaram a me odiar em silêncio. Quanto mais eu escrevia, mais aquilo crescia dentro deles. Tive de sair de casa. Com os meus rascunhos debaixo do braço, evidentemente.

Aquiesci.


- Daí corri mundo, mas sempre escrevendo. E um dia um amigo me disse: se você continuar escrevendo, vais terminar carroceiro.

Do outro lado da avenida, com estranhas lâmpadas amarelas ao redor, havia uma paróquia, e naquele instante celebrava-se a missa.

- Escrevi tanto, mas tanto – prosseguiu o homem – que me condenaram à extinção cívica. Fui interditado, fui lançado à sarjeta,
sujeito à toda ordem de processos, impedido de votar,  obter certidões e freqüentar cartórios, desproveram-me de todos os documentos necessários à cidadania.

Olhei para ele, atônito e penalizado, já lhe oferecendo outro cigarro, que de bom grado aceitou.

- E publicaste alguma coisa?

- Nem uma página – lamentou-se ele, baforando – não percebes como a carroça está cheia? Todos os dias escrevo, e coloco as folhas na carroça. Depois circulo pelas vielas, observo o casario, e tento deixar com o proprietário, em troca de uns vinténs, o fruto do meu raciocínio. Ninguém se interessa. Quando chove, é um desastre, pois a escrita esmaece, diluindo assim o registro de boas idéias.

- Haroldo, vamos homem, já estamos atrasados.

Era o meu amigo, o Moura, que a contragosto acenou para o tipo
da carroça, e me disse:

- Temos de tomar a condução que conterá os caracteres “Term. Jabaquara”.

Falei ao Moura para seguir na frente, pois queria me despedir do gajo com propriedade. Cumprimentei-lhe com respeito merecido, forneci-lhe mais dois cigarros e umas moedas, e, sob o pretexto de despedir-me dizendo qualquer coisa, indaguei:

- E os cães?

- São boa companhia. Não reclamam dos meus rascunhos. Ademais, “gosto dos cães, porque os cães perdoam”.

O Dr. Wells nos esperava no citado destino, onde novamente adentramos no trem infernal que trafega sob a superfície, e chegamos onde a máquina estava escondida.

O Dr. Wells, e o Dr. Moura, num átimo de inspiração, desenvolveram um invento que permite viajar pelo tempo. Os créditos dessa invenção, todavia, nunca mencionaram o Moura.

Chegamos na Lisboa de 1885 a tempo para jantar na casa do Braga.
Ali  estavam, portanto, o próprio  Braga, o Agostinho e o Loureiro, todos ansiosos por saber como fora nossa missão, a nona deste ano.
O Dr. Wells, que  apresentava sinais de cansaço,  retirou-se para o quarto de hóspedes, não sem antes solicitar um cortinado.
Foi mais ou menos na hora dos charutos e dos licores, que o Moura, na minha opinião sem um pingo de delicadeza, teceu o seguinte comentário, em tom de escárnio:

- Pois vocês não sabem? O Haroldo repartiu o pão com o melhor escritor brasileiro.

- Estás louco, Haroldo? – e eles gargalhavam, fato que me ofendeu profundamente.

- O melhor escritor brasileiro se chama Eça de Queiroz – exclamou o Braga, em tom de troça.

- Cala-te, homem, nem brinca com isso. O Eça é português – disse o Loureiro.

- Então? – instigou o Braga – e que língua se fala no Brasil? Aquela colônia empertigada...

Todos riram da piada, o que me deixou ainda mais encolerizado, pois conversara isso com o Moura em particular, sendo mesmo assunto da mais alta gravidade.

- Acontece, senhores – exclamei, batendo com a mão na mesa – que era justamente o Eça que estava lá.

Pelo tom de minha voz e o furor no meu olhar eles se aquietaram.

- O Eça tem participado do experimento, de tempos em tempos – esclareci - Acho que está louco, pois assim demonstra, e com as bochechas extremamente inchadas. Demorei para reconhecê-lo. Foi na hora de partir, quando ele fez uma citação.

- O Eça? No experimento? Por isso anda sumido...- disse o Agostinho.

- Foi então, reconhecido pela palavra – o Loureiro coçou a cabeça, com olhar perdido – pobre do Eça...
 
- E que citação foi essa? – indagou o Agostinho.

- “Gosto dos cães, porque os cães perdoam” – bradei, triunfante.

Todos se entreolharam. Houve silêncio, seguido de alvoroço. Fui para a janela observar as águas do Tejo, tão insípidas nessa época do ano.

- Óh Haroldo – agora todos riam à larga. Fosse o que fosse, devia ter ficado em casa, pois eles não se davam por vencidos.

- Haroldinho, vem cá, homem, quanto licor tomaste? O Loureiro e o Braga, que conhecem a obra do Eça como o rabino conhece os escritos dos profetas, estão dizendo que essa frase não é dele, e sim de um argelino.

- Isso – irrompeu o Agostinho, que se especializara nos autores vindouros – um argelino, chamado Albert Camus.

Danei-me, pensei, vai ser um mês de troça.

Disseram que essas viagens estão me causando alucinações, pois onde já se viu, em pleno século 21, um homem puxando carroça para sobreviver.

- Só se for louco! Ou escritor! – e todos gargalharam, e minha sorte foi que o Moura estava junto, tendo também visto a cena e agora confirmado.

- O melhor escritor brasileiro – emendou o Agostinho – vai se chamar Carlos. Carlos de Andrade. Tem mais um nome no meio, mas agora me foge.

- Andrade – exclama o Braga – português. Não disse? Que língua se fala no Brasil?