O “MARTELO DAS BRUXAS”: a perseguição às mulheres durante o Processo Inquisitório realizado pela Igreja Católica Romana 

Lucas Magalhães

Mariana Oliveira[1] 

RESUMO

No presente trabalho, adentraremos em um campo amplo e complexo, mas de extrema importância. A partir da releitura de teses, obras e artigos o foco será a análise do método inquisitório direcionado as mulheres e como esse método se diferenciava dos demais, desde as diretrizes perpassando pelo processo de acusação até a aplicação da pena. Por conseguinte será feita uma crítica à função escamoteada da Santa Inquisição em purificar e livrar o mundo das “entidades malignas”. 

Palavras-Chave

Mulheres. Martelo das Bruxas. Santa Inquisição

INTRODUÇÃO

     Inicialmente faremos uma explanação do que se trata a obra O Martelo das Bruxas e como ela regia os processos inquisitórios durante a Idade Média a cerca da mulher e também quais eram os verdadeiros interesses mascarados neste documento pela Igreja Católica Romana, que tinha a exclusividade destinada aos procedimentos de interrogatório das mulheres.

Coloremos em foco a perseguição às mulheres mediante as falsas acusações imputadas sobre elas que, em verdade, impunham limites as instâncias do clero e seus interesses. Por fim, traremos em nosso trabalho como a mulher desempenhou um importante papel dentro do método inquisitório e, consecutivamente, para que ele chegasse ao seu declínio.

  1. MARTELO DAS BRUXAS: o início da perseguição

      No início do século IX, havia a crença popular sobre a existência de bruxos que, através de artifícios sobrenaturais, eram capazes de provocar discórdia, doenças e morte. Por sua vez, a Igreja não aceitava a existência de bruxos e ainda, baseado no Conselho eclesiástico de São Patrício (St. Patrick), afirmava que "um cristão que acreditasse em vampiros, era o mesmo que declarar-se bruxo, confesso ao demônio" e "pessoas com crenças não poderiam ser aceitas pela Igreja a menos que revogue com suas palavras o crime que cometeu".

     Na segunda metade do século X já havia penalidades severas para quem fizesse uso de artes mágicas. No século XIV (por volta de 1326) a Igreja autoriza a Inquisição a investigar os casos de bruxaria. Pouco mais de cem anos depois, em 1430, teólogos cristãos começam a escrever livros que "provam" a existência de bruxos. O livro Formicarius, escrito por Thomas de Brabant, em 1480, aborda a relação entre o homem e a bruxaria.

     Em uma sociedade na qual a religião, a política, a sexualidade e as artes estavam interligadas e sob o domínio da Igreja, transgredir as normas de conduta em apenas um desses campos, acarretaria, por conseqüência, numa transgressão generalizada e direta sobre o poder do clero. Dessa forma, sob o papado de Inocêncio VIII, o Malleus Maleficarum nasceu da necessidade que a Igreja Católica tinha de organizar e legitimar suas práticas, principalmente quando relacionadas à Santa Inquisição, que já atuava desde o final do século XII. Até aquele momento, não havia uma referência oficial que abordasse a questão da bruxaria. Fazia-se necessário um documento escrito, aprovado pelo corpo eclesiástico, que tivesse valor legal e determinasse com maior precisão possível, as práticas de feitiçaria e suas respectivas punições.

     Heinrich Kramer e James Sprenger, através de uma bula de Inocêncio VIII, foram nomeados inquisidores para que investigassem as práticas de bruxaria nas províncias do norte da Alemanha e incumbidos de produzir a obra que institucionaliza e legitima a ação da Igreja. Por aproximadamente dois anos, encarregaram-se da produção do espesso trabalho de mais de quatrocentas páginas. Por fim, o Formicarius foi acoplado e passou a fazer parte do tratado eclesiástico intitulado Malleus Maleficarum. A imprensa, recém surgida, facilitou a divulgação da campanha movida pela Igreja contra as feiticeiras.

 2.      DOCUMENTOS DE PERSEGUIÇÃO

     O Martelo das Bruxas, que tem como nome original Malleus Maleficarum[2], é um livro escrito em 1484. A criação do livro deu-se com o Papa Inocêncio VIII, que ao assinar um documento que mostrava a sua preocupação com o aumento dos casos de bruxaria na Europa incumbiu dois monges: Heinrich Kramer e James Sprenger, a iniciar uma Guerra Santa contra as bruxas. Os dois monges alemães dominicanos escreveram o que se tornou uma espécie de "manual contra a bruxaria". O livro foi criado em forma de diretrizes que regeriam a forma com a qual seria instaurado o método inquisitório e como os procedimentos de tortura deveriam ocorrer para que houvesse a confissão das feiticeiras. O livro foi amplamente utilizado pelos inquisidores por aproximadamente duzentos e cinqüenta anos, até o fim da Santa Inquisição, e servia para identificar bruxas e os malefícios causados por elas, além dos procedimentos legais para acusá-las e condená-las.

O Malleus Maleficarum traz inúmeras e exageradas descrições e, até certo ponto, apelativas e incoerentes. O livro divide-se em três partes distintas, sendo que cada parte subdivide-se em capítulos chamados de Questões. A primeira parte, que contém dezoito questões, ensina a reconhecer bruxas em seus múltiplos disfarces e atitudes. A segunda parte traz apenas duas questões, mas a primeira está subdividida em dezesseis capítulos e a segunda em oito capítulos. Esta segunda parte expõe os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os detalhadamente, e os métodos para desfazê-los. A terceira e última parte, que contém uma introdução geral e trinta e cinco questões subdivididas, condiciona as formalidades para agir "legalmente" contra as bruxas, demonstrando como inquiri-las e condená-las, tanto nos tribunais civis como eclesiásticos.

As teses centrais do Malleus Maleficarum fundamentaram-se na ideia de que o demônio, sob a permissão de Deus, procura fazer o máximo de mal aos homens para apropriar-se de suas almas. Este mal é feito prioritariamente através do corpo, único canal em que o demônio pode predominar. A influência demoníaca é feita através do controle da sexualidade, e por ela, o demônio se apropria primeiramente do corpo e depois da alma do homem. Segundo o livro, as mulheres são o maior canal de ação demoníaca.

Ainda, a primeira e mais importante característica descrita no livro, responsável por todo o poder das feiticeiras, é copular com o demônio. Portanto, Satã é o "senhor do prazer". Dessa forma, uma vez obtida à relação com o demônio, as feiticeiras são capazes de desencadear todos os males, especialmente impotência masculina, impossibilidade de livrar-se de paixões desordenadas, oferendas de crianças à Satã, abortos, destruição das colheitas, doenças nos animais, entre outros. Porém, no próprio livro é citado que o coito com o demônio não seria exatamente carnal, já que estas criaturas eram espíritos, mas ocorria através de rituais orgíacos. 

  1. 3.      OS OLHOS DA INQUISIÇÃO SOBRE AS MULHERES

     Tradicionalmente, nas culturas pré-cristãs, a mulher era objeto de adoração e respeito. Era a fonte doadora da vida e símbolo da fertilidade. Porém, mesmo sob a alegação formal de combater a heresia em todas as suas variações, as descrições contidas no Malleus Maleficarum, fundamentadas em conceitos de uma civilização patriarcal, contribuíram para construir uma idéia fantasiosa e infamante sobre as mulheres.

Esta ideia poderia ser legitimada através do preceito que, Eva surgiu de uma costela torta de Adão. Logo, ocorreu a associação que, conseqüentemente, todas as mulheres não podiam ser retas em sua conduta. Ainda, o pecado original ocorreu através do ato sexual (na metáfora de Adão e Eva comendo a maçã) e, assim, a sexualidade era o ponto mais vulnerável do ser humano.

“As bruxas depravam-se através do pecado, logo, a causa de sua depravação não há de residir no diabo e sim na vontade humana... os atos das bruxas são de natureza tal que não podem ser realizados sem o auxílio de demônios... Bruxas são assim chamadas por causa da atrocidade de seus malefícios; perturbam os elementos e confundem a mente dos homens sem se utilizarem de qualquer poção venenosa, apenas pela força de seus encantamentos — a destruir almas e a provocar toda sorte de efeitos que não podem ser causados pela influência dos corpos celestes com a mera intermediação de um homem... Parece assim que a vontade maligna do diabo é a causa da vontade maligna no homem, e especialmente, nas bruxas.” [3]

Desse modo, qualquer mulher que se dispusesse a tratar pequenas enfermidades ou ferimentos com preparados domésticos à base de ervas, morasse sozinha e tivesse um animal de estimação (um gato, por exemplo), tivesse comportamento pernicioso, entre outras alegações superficiais, podia ser acusada de bruxaria.

A tortura, como é sugerida no próprio Malleus Maleficarum, era o método utilizado para extrair as confissões das supostas bruxas. Além de torturas menos sofisticadas, como aquecimento dos pés ou introdução de ferros sob as unhas. Deste modo, a ré passava por tantos suplícios que acabava por admitir as sentenças elaboradas pelo inquisidor.

Ainda, as lendas em torno das supostas bruxas propagavam-se entre o povo. Através da ação demoníaca, uma mulher podia ser capaz de transformar-se em animais, voar e manipular a vontade, confundir o pensamento e a atitude de outras pessoas. Provocar ereção masculina ou a impotência sexual; além de inibir ou aumentar a libido de suas vítimas. As bruxas, em seus rituais, dançavam nuas nos campos e se alimentavam de fetos e cadáveres.

Atualmente, aos olhos da ciência moderna, principalmente da psicanálise, diversos "sintomas e indícios" de possessão demoníaca descritos no Malleus Maleficarum são apenas disfunções mentais, como histeria e alucinações. Ainda sob o olhar dos historiadores modernos, os motivos que levaram à produção do Malleus Maleficarum não são mais que artimanhas políticas com pouca ou nenhuma argumentação religiosa.

De qualquer forma, o Malleus Maleficarum é um produto religioso e político dos mais significativos da Idade Média. Não é possível dissociá-lo do contexto histórico da Santa Inquisição, da Igreja Católica medieval, tampouco dos principais acontecimentos daquela época, como a peste negra, a queda do sistema feudal, a invenção da imprensa e o início da Renascença. Isto porque, de forma direta ou até mesmo contraditória, um acontecimento impacta sobre outro. Assim, o Malleus Maleficarum é mais que um "código penal eclesiástico" utilizado na Idade Média; é um registro fiel do que foi parte do pensamento da Igreja Católica medieval, com uma imensa oposição à figura da mulher e um desejo ensandecido de manter a autoridade política, econômica e religiosa e, desse modo, de todo um contexto deste capítulo da história da humanidade. 

3.1  MÉTODOS DE INTERROGATÓRIO ESPECÍFICO PARA MULHERES

     Se uma mulher fosse acusada de bruxaria, ficaria na iminência de sofrer uma tortura muito especial por parte do clero. No Malleus Maleficarum, o manual operacional da Inquisição, as mulheres eram especialmente visadas para perseguição como prováveis bruxas. Se uma mulher fosse meramente lançada de um lugar alto, podia chamar a si mesma de sortuda por ter uma morte relativamente rápida e com pouca dor diferente da maioria das mulheres que eram torturas, abusadas e violentadas pelos próprios membros do clero durante os interrogatórios. Essa obsessão sexual rapidamente cresceu ao ponto em que uma mulher vivia com medo de que um dia, a partir do nada, pudesse ser acusada por alguém de ser uma bruxa; visto que a acusação era equivalente à culpa, aquela mulher podia esperar uma morte lenta sob tortura nas mãos de sacerdotes celibatários.

Diante da inerente acusação que poderia surgir a qualquer momento e diante de um processo de acusação infundado Foucault, em seu livro Vigiar e punir cita:

(...) era impossível ao acusado ter acesso às peças do processo, impossível conhecer a identidade dos denunciadores, impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusar as testemunhas, impossível fazer valer, até os últimos momentos do processo, os fatos justificativos, impossível ter um advogado, seja para verificar a regularidade do processo, seja para participar da defesa.[4]

3.2  MULHERES OU BRUXAS?

As mulheres tomadas pela Inquisição sofriam torturas inimagináveis que violavam desde o corpo até a mente, chegando algumas, a admitir a culpa de algo que não fizeram para livrar-se da tortura, entretanto diferente do que acontecia com os homens. Diante da confissão da mulher as torturas não cessavam. Elas aconteciam em calabouços ou publicamente até a morte ou até que fosse saciada a vontade dos inquisidores.

O Malleus Maleficarum ainda mencionava que as bruxas carregavam em seu corpo o símbolo da besta. Esta era mais uma forma que os sacerdotes utilizavam para aproveitar-se do corpo da mulher alegando buscar a marca demoníaca. Era citado ainda que onde houvesse esta marca no corpo da mulher a pele estaria adormecida e que esta região quando perfurada não sangrava e nem doía, logo os inquisidores criaram um mecanismo singular que era utilizado para detectar esse marca, o chamado “fura-bruxas”. Uma espécie de faca com uma ponta retrátil, ou seja, quando pressionada sobre a pele ela se retraia dando a ilusão para quem assistia a tortura e para a própria torturada de que a faca havia perfurado o corpo, mas não havia sangue e nem gritos de dor. Normalmente esse procedimento era feito em público para que a própria população condenasse a bruxa.

As mulheres condenadas por bruxaria e feitiçarias em grande parte não se utilizavam de bruxarias e as que se utilizavam não eram pra fins maléficos, mas a Igreja Católica Romana forjou provas, confissões e até mesmo acusações que levassem a esta matança.

Um número estimado de 75 milhões de pessoas pagou o preço final, enquanto milhões de outras foram intimidadas, torturadas, e forçadas a manter relações sexuais com sacerdotes que manejavam essa arma terrível contra as mulheres. 

CONCLUSÃO

     Diante das informações supracitadas, torna-se notório afirmar que a Inquisição teve um papel de grande valia para a história da humanidade e principalmente para a história da mulher, gênero mais perseguido durante o processo inquisitório. Trouxemos para o trabalho as formas veladas com o qual a Igreja valia-se de seu poder de dominação através da fé para punir e alcançar todos os seus interesses explícitos e implícitos e como a mulher foi alvo constante deste mecanismo e o por quanto ela passou para alcançar o que foi alcançado por elas na sociedade hodierna. 

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 9. Ed. Petrópolis: Vozes, 1991

KRAMER, Heinrich; SPRENGER James. O martelo das feiticeiras. 5.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991

LEVACK, Brian. A caça as bruxas na Europa moderna. 2.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1988.

LIMA , Maurílio Cesar de. Introdução à história do direito canônico. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1999.



[1] Acadêmicos do segundo período de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[2]  KRAMER, Heinrich; SPRENGER James. O martelo das feiticeiras. 5.ed., Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991.

[3] KRAMER, Heinrich; SPRENGER James. Op. Cit., p. 96-97.

[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 9. Ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 35.