INTRODUÇÃO


Hoje se reconhecem mais de 20 peptídeos produzidos por células do sistema imune, que se imaginava serem de fabricação exclusiva do sistema neuroendócrino. Esta síntese, acoplada à presença de peptídeos neurotransmissores e de receptores hormonais nas células do sistema imune, sugere que hormônios que regulam o sistema endócrino podem ter atividade imunomodulatória, bem como podem ser os mediadores da comunicação bidirecional entre o sistema imune e o neuroendócrino. A inter relação entre o HPA e a resposta imune talvez seja o melhor exemplo desta interação (GUYTON & HALL, 2002).

Assim, sabe-se que linfócitos iniciam a síntese de GH espontaneamente em meio de cultura, e que esta secreção é inibida, a síntese de DNA é bloqueada, sugerindo que o GH funciona com fator de crescimento autócrino para os linfócitos. Outro exemplo diz respeito à síntese de prolactina e sua captação via receptor específico em linfócitos. O complexo prolactina-receptor é translocado para o núcleo, e quando este transporte é bloqueado a proliferação linfocitária estimulada por IL-2 é inibida (GUYTON & HALL, 2002).

Por outro lado, a ação parácrina destes hormônios imunoderivados pode ser exemplificada pelo incremento da atividade das células NK induzidas pela beta-endorfina, produzidas pelos linfócitos B ou pela produção do TSH estimulada por TRH obtida em células T, e que acabam por aumentar a produção de anticorpos em células B, e também pela analgesia obtida na artrite como resultado da interação entre as terminações nervosas com os opióides secretados por células imunocompetentes no local. Quanto à ação endócrina propriamente dita dos hormônios imunoderivados, embora vários grupos tenham descrito a esteroidogênese induzida em animais hipofisectomizados por ACTH derivado de leucócitos, o papel fisiológico deste achado em termos endócrinos é discutido (AIRES, 1999).

O que é curioso é que a produção e a regulação destes imunohormônios é semelhante à observada em células neuroendócrinas, só que em vez de induzidas por um fator neurohipotalâmico, sua secreção é também estimulada por mitógenos e superantígenos. Além disso, existem outras diferenças, como por exemplo: glicocorticóide inibe, enquanto o CRF induz peptídeos derivados da POMC leucocitária. O CRF provoca a produção de IL-1 no macrófago, que então induz a produção de POMC pelo linfócito B, enquanto os de corticóides inibem a produção de IL-1, bloqueando a produção de POMC nestas células (ROZMAN, 1999).

Além dessa, há outras diferenças notáveis entre a produção de hormônios no sistema endócrino e no sistema imune: 1- o sistema imune não é capaz de responder imediatamente aos estímulos, contrariamente ao que ocorre na hipófise, por não estocar hormônio; sua liberação está condicionada à síntese “de novo” dos mesmos. 2- assim, a produção hormonal no sistema imune necessita ser continuamente induzida, e, portanto não compensa a falta da hipófise do ponto de vista hormonal. 3- Pelo mesmo motivo, um estímulo agudo não elevará os níveis plasmáticos hormonais ao nível obtido quando se estimula a hipófise. Porém, a produção hormonal do sistema imune pode levar à deposição hormonal local, pois as células que os produzem são móveis. 4- quando comparados em base celular, os leucócitos produzem hormônios em quantidade menor que as células da hipófise, porém esta diferença não leva em conta que o número de células do sistema imune é muito maior que o das glândulas. Por outro lado, células do sistema imune têm receptores específicos para peptídeos neuroendócrinos, semelhante aos das células neurohormonais. Assim, na insuficiência adrenal devida a um receptor não funcional do ACTH, este fato se espelha na ausência deste receptor em leucócitos do sangue periférico (COTRAN et al. 2000).


A RESPOSTA IMUNE

Se células imunes produzem hormônios e seus receptores, também as células do sistema neuroendócrino são sensíveis as citoquinas produzidas pelo sistema imune. Este fato foi inicialmente sugerido porque os níveis hormonais se alteram em resposta ao estímulo antigênico, atingindo o seu máximo quando a resposta do sistema imune a um determinado antígeno atinge o seu maior grau. Das citoquinas, os intérferons foram os primeiros a terem seu efeito no sistema endócrino conhecido: estimulam esteroidogênese, melanogênese, captação de iodo, entre outros efeitos. IL-1 e IL-6 causam a liberação de ACTH e de beta-endorfina da hipófise, agindo como fatores liberadores hipotalâmicos além da ação direta nas adrenais (STITES & TERR, 1996).

Esta resposta as citoquinas se deve ao fato de que células endócrinas exibem receptores semelhantes aos existentes nas células do sistema imune.

É muito provável que no futuro se demonstre à produção de citoquinas pelo sistema neuroendócrino, do mesmo modo que se verificou a produção de hormônios pelo sistema imune e que estes têm uma função basicamente parácrina neste sistema.

Finalmente, citoquinas produzidas ou liberadas no sistema neuroendócrino podem ter a função endócrina propriamente dita. Assim, por exemplo, a IL-2 é o secretagogo mais potente em relação ao ACTH hipofisário, sendo várias vezes mais ativa que o fator liberador clássico CRF. Assim, inadvertidamente, os imunologistas acabaram descobrindo um fator liberador hipotalâmico muito potente (STITES & TERR, 1996).

Um outro ponto de inter-relação entre o sistema neuroendócrino e o sistema imune diz respeito ao timo. Sabe-se que os hormônios tímicos são moduladores da diferenciação das células T. A influência endócrina na função tímica se dá na medida em que T3 estimula a síntese “de novo” de timulina, e que hormônios hipofisários clássicos tais como a prolactina e GH são capazes de modular sua secreção “in vivo” tanto no homem com nos animais. Na acromegalia, por exemplo, são elevados os níveis de timulina, enquanto que no nanismo estes níveis estão deprimidos. Esta ação parece ser mediada por IGF-1 em humanos. Uma ação moduladora em relação a este hormônio também tem sido proposta para ACTH, beta-endorfina e encefalina (GUYTON & HALL, 2002).

Entretanto, também é fato que os hormônios tímicos podem modular a liberação de hormônios hipofisários. Assim, a timectomia neonatal diminui o número de grânulos secretórios na adenohipófise. O camundongo “nude”, que é atímico exibe níveis baixos de prolactina e GH, além de FSH e LH. Também se demonstrou que a infusão de timosina beta 4 (componente da timosina) é capaz de produzir a liberação de LH hipofisário e LHRH hipotalâmico, enquanto que a timopoietina estimula a produção dos peptídeos derivados da POMC (ACTH, beta-endorfina e betalipotrofina)(GUYTON & HALL,2002).

Tomados em conjuntos, estes dados sugerem um circuito complexo bidirecional envolvendo neurohormônios e peptídeos tímicos.

Outros pontos de interação dizem respeito à influência dos mediadores neuroendócrinos na migração linfocitária, à interação entre as células imunologicamente competentes habitantes das mucosas e à secreção de hormônios locais, como por exemplo, os hormônios da parede digestiva, a atividade dos hormônios sexuais no timo, na gravidez e fora dela.

Mas enfim, como nos bons casamentos, este entre o sistema imune e endócrino é para a saúde e para a maioria das doenças endocrinológicas tem base imune, e então vale a pena discutirmos um pouco da fisiopatologia das doenças auto-imunes e de como os hormônios podem influenciá-la (OTSUKA, 2004).

A partir de observações clínicas e estudos experimentais tornou-se claro que não há um único mecanismo responsável pelo desenvolvimento de doenças auto imunes em geral e nem de uma doença autoimune em particular. Mais do que isso é a inter-relação de um grande número de fatores que finalmente emerge na forma de uma doença autoimune. O conceito atual multi-fatorial da patogênese da doença endócrina auto-imune pode ser resumido do seguinte modo: o pré-requisito para que um indivíduo desenvolva uma doença autoimune sistêmica ou órgão-específico é a presença de dois “stress” de gens que codificam para 1- uma reação anormal do sistema imune e 2- uma suscetibilidade da estrutura alvo ao ataque dos mecanismos efetores humorais e/ou celulares. Apenas quando ambos estão presentes é que a doença autoimune tem possibilidade de se estabelecer.Dados os pré-requisitos, o evento final, ou seja, o aparecimento da doença, é então determinado pela presença de fatores modulatórios adicionais tais como sexo, dieta, capacidade de secretar hormônios glicocorticóides, etc. Por outro lado, é importante distinguir fenômenos auto-imunitários demonstráveis pela presença de auto-anticorpos, porém sem a presença de alterações clínicas ou histopatológicas de doença autoimune. Autoimunidade não é sinônimo de doença autoimune. Assim sendo, pacientes portadores de tireoidite autoimune freqüentemente exibem auto-anticorpos dirigidos contra antígenos não tireoideanos, tais como anticorpos anti-adrenal ou anti-células parietais da mucosa gástrica, mesmo na ausência de adrenalite autoimune (síndrome de Schmidt) ou de anemia perniciosa. Portanto não basta a alteração da resposta autoimune. É necessária também a presença de suscetibilidade do órgão alvo geneticamente determinada, que permita o estabelecimento da doença autoimune dirigida contra estes órgãos. No caso em questão, o paciente teria herdado gens de suscetibilidade em relação à tireóide, enquanto que a ausência de gens de suscetibilidade em relação ao estômago e à supra-renal os tornaria refratários a desenvolver lesões nestes órgãos. Quando várias glândulas são atingidas, como na poliendocrinopatia autoimune, a presença de um fator de suscetibilidade comum é suspeitado (ex: infecção viral ou fatores adicionais modulatórios atuando no sistema imune ou nas estruturas dos órgãos-alvo) (FORBES &JACKSON, 1997).


ETIOLOGIA AUTO IMUNE

A etiologia das doenças autoimune pode conceitualmente ser inscrita na fisiopatologia do sistema imunológico. O sistema imune é provido de vários mecanismos que tendem a assegurar que respostas auto-agressivas não surgirão em circunstâncias normais. Está estabelecido que linfócitos geram receptores de membrana ou solúveis por mecanismos de rearranjo gênico e mutação. Assim, uma imunoglobulina ou um receptor de célula T são capazes “a piori” de reagir tanto com o antígeno estranho quanto com um autoantígeno. Para se precaver da possível ação deletéria de linfócitos auto-agressivos, existem diferentes mecanismos para eliminar, paralisar ou suprimir a função das células T e B (ROIT, 1999).

Como um primeiro mecanismo de tolerância, linfócitos potencialmente auto-agressivos podem sofrer morte programada (apoptose celular) provocada por interações com o autoantígeno. Este é um processo que é também determinado pelo estágio de diferenciação do linfócito (timócitos e células B imaturas são mais sensíveis a deleção clonal que linfócitos maduros) e também pelas circunstâncias em que ocorre a ativação. Se células T ou B, com alta especificidade, escapam da deleção clonal, pela ausência de apresentação de autoantígenos nos sítios linfopoiéticos, um segundo nível de indução de tolerância entra em ação: na maioria dos eventos, a interação de um linfócito com um autoantígeno não resultará em ativação celular completa com a conseqüente efetivação da resposta imune. Ao contrário, na maioria das vezes esta interação resultará numa estimulação incompleta que levará o linfócito a um estado de impossibilidade de resposta, fenômeno conhecido por anergia.(STITES & TERR, 1996).

Como regra, a anergia é o resultado da estimulação do linfócito apenas pela interação com o antígeno, na ausência de outros fatores coestimuladores ainda não completamente identificados.

Num nível posterior, linfócitos T não deletados e não anérgicos ainda podem ser impedidos de desencadear uma resposta autoimune por mecanismos imunossupressivos inespecíficos, tais como: citoquinas produzidas por clones de células T antagonistas, TGF, IL-10 ou glicocorticóides secretados durante a resposta ao “stress” (BENNETT & PLUM, 1997).

A supressão específica envolve o reconhecimento dos receptores que interagem com os autoantígenos via rede idiotípica.

Finalmente, um outro mecanismo responsável pela tolerância imunológica é a compartimentalização dos linfócitos T, que faz com que apenas células T tolerantes aos autoantígenos disponíveis num determinado local permaneçam nele. Os diferentes mecanismos responsáveis pela tolerância imunológica estão dispostos em uma hierarquia ontogenética, e somente a falha simultânea destes permitirá a eclosão da doença autoimune. Ou seja, linfócitos T capazes de desencadear resposta autoimune, como por exemplo, células Th1, produtoras de IL-2 e expressando receptores de células T específicos para autoantígenos, somente mediarão a doença se: 1- escaparam da seleção clonal durante a fase tímica e pós-tímica de seu ciclo vital, 2- não forem submetidos a nenhum dos sinais supressivos ou indutores de energia, 3- expressarem as moléculas de adesão adequadas que permitam sua migração aos tecidos que contêm os autoantígenos, com os quais sejam capazes de interagir, 4- sejam ativados pelos autoantígenos como se fossem antígenos comuns, ou seja, na presença dos outros sinais coativadores e 5- e uma vez ativadas, sua ação não seja contrabalanceada por mecanismos imunossupressivos (AIRES, 1999).

Alterações nos órgãos-alvo, que podem envolver tanto a construção antigênica de alguma estrutura específica do tecido quanto o modo com que estes antígenos são apresentados ao sistema imunológico, contribuem para o processo patogênico (COTRAN et al. 2000).


A TOLERÂNCIA IMUNOLÓGICA

Esta introdução a respeito da manutenção da tolerância imunológica se faz necessária porque, se por um lado diversas doenças endocrinológicas são autoimunes por natureza, a própria manutenção da tolerância imunológica é influenciada por fatores hormonais além dos fatores genéticos. Dentre os fatores genéticos que se acreditam influenciem a auto-reatividade anormal da resposta imune são: 1- aqueles que determinam a hiperprodução de citoquinas imunoestimuladoras, especialmente a IL-2, 2- os que determinam o haplótipo do MHC, 3- mecanismos ineficientes de seleção das células T, tanto dentro do timo quanto fora dele, 4- ativação dos genes de senescência, levando a um perda da tolerância imunológica idade-independente. Alguns destes fatores genéticos, por influenciarem a resposta imune, estão intimamente ligados à predisposição de desenvolver endocrinopatias autoimunes, órgão-específicas ou poliglandulares.

Assim, a presença de HLA-DR3 confere um risco 4 vezes maior de desenvolver tireoidite de Hashimoto. Todd e col. Verificaram que a presença de ácido aspártico na posição 57 da cadeia beta do HLA-DQ2 confere proteção contra o desenvolvimento do diabete tipo 1, enquanto que a troca deste aminoácido por outro neutro, como leucina, navalia ou fenilalanina, tornam o indivíduo mais suscetível a esta doença. Entretanto, é de se notar que esta correlação não é absoluta na população caucasóide e é completamente ausente na japonesa (ISSELBACHER et al. 1995).

Uma outra questão diz respeito ao papel da assim chamada expressão aberrante das moléculas MHC de classe II nas células alvo na presença de doenças autoimunes (ex: tireócitos ou célula beta pancreática). Não se sabe se esta expressão é um fenômeno primário desencadeador da autoimunidade pela apresentação de autoantígeno, ou apenas um fenômeno secundário, que ocorre pela produção local de gama-intérferon após o influxo de células linfóides auto-reativas(THOMPSON et al.,1993).

Outros fatores genéticos, que ao invés de atuar na resposta imune determinem a suscetibilidade por alterações da estrutura do órgão têm relevância menos definida. Assim, apenas experimentalmente, se encontra correlação entre a presença de um determinado tipo de tireoglobulina e suscetibilidade à tireoidite autoimune provocada pela injeção deste antígeno (THOMPSON, 1998).

Vírus também têm sido incriminados como possíveis desencadeadores de doença autoimune, tanto diretamente, por alteração de componentes do órgão, como indiretamente, levando à quebra da tolerância por mimetismo molecular. Mas, por ora, apenas na tireoidite autoimune aviária é que o limiar para expressão de MHC de classe II, induzida por intérferon-gama se mostrou muito reduzido pela presença de um vírus tireotrópico. Na verdade, alterações de autoantígenos induzindo respostas autoimunes podem ser induzidas por uma grande variedade de agentes, que incluem também irradiação, lesões químicas,térmicas e mecânicas (COTRAN et al.,2000).

De qualquer modo, a verdade é que uma grande variedade de doenças glandulares têm como causa básica alterações da resposta imune, tornando a integração endocrinolgia-imunologia um assunto inevitável na prática clínica diária. Este fato pode ser observado nas endocrinopatias autoimunes mais freqüentes. As doenças glandulares causadas por autoimunidade podem se apresentar como doenças órgão-específicas, em que clinicamente apenas uma glândula é afetada, ou na forma poliglandular, tal como descrito por Schimidt em 1926. Esta identidade, atualmente conhecida como síndrome autoimune poliglandular tipo II, compreende o envolvimento de pelo menos duas das seguintes patologias simultaneamente: hipertireoidismo, hipotireoidismo primário, diabetes tipo I, insuficiência adrenal, miastenia gravis, doença celíaca, hipogonadismo primário, vitiligo, anemia perniciosa e alopécia. Como se pode verificar, tanto órgãos endócrinos como não endócrinos são acometidos, e o intervalo de tempo que decorre entre a primeira manifestação clínica e a patologia subseqüente pode variar de semanas a décadas (FORBES & JACKSON, 1997).

Além dessa, os endocrinologistas podem diagnosticar uma outra síndrome poliglandular autoimune denominada tipo I, que compreende pelo menos duas das seguintes patologias: hipoparatireoidismo, candidose oral e vaginal decorrentes da insuficiência de IgA, insuficiência adrenal, hepatite crônica ativa, síndrome de má-absorção, hipogonadismo primário, vitiligo, anemia perniciosa, alopecia, hipotireoidismo primário(ROZMAN,1999).


NEOPLASIAS ASSOCIADAS

Além disso, produtos elaborados por neoplasias do sistema imunológico podem causar endocrinopatias. Um exemplo disso é a síndrome de POEMS (discrasia de células plasmáticas com polineuropatia, organomegalia, endocrinopatia, paraproteína e alterações cutâneas). Acredita-se que esta síndrome seja causada por uma imunoglobulina circulante produzida por mieloma, que em geral causa preferencialmente lesões ósteo-escleróticas ao invés de lesões líticas. Daí a outra denominação de mieloma ósteo-esclerótico também usada para identificar a síndrome. Os pacientes se apresentam com polineuropatia progressiva e severa, hepatoesplenomegalia, linfoadenomegalia, hiperpigmentação, usualmente com hirsutismo, hipogonadismo primário (70% dos pacientes), diabetes mellitus (50% dos pacientes), além das lesões ósseas, sobre as quais a radioterapia tem a propriedade de produzir remissão parcial da síndrome.(BENNETT & PLUM, 1997).

Também neoplasias tímicas, os chamados timomas, se associam a doenças semelhantes àquelas vistas na síndrome autoimune poliendócrina tipo II, embora com uma freqüência diferente no que diz respeito às diversas doenças. Aqui a miastenia gravias ocorre em 44% dos pacientes, a aplasia da série vermelha em aproximadamente 20%, a hipoglobulinemia em 6%, o hipotiroidismo em 2%. A insuficiência adrenal está presente em 0,25%. A candidíase mucosa cutânea em adultos também se associa aos timomas, e a ressecção destes tumores leva pelo menos a uma remissão temporária das doenças autoimunes associadas.

Mas a interação entre sistema imunológico e endócrino é biunívoca. Se, por um lado, alterações do sistema imune podem ocasionar doenças hormonais, por outro lado os hormônios também podem influenciar o sistema imunológico, atuando como fatores modulatórios (AIRES, 1999).

O sistema imune é modulado por hormônios protéicos como GH e prolactina, peptídicos como T4 e esteróides como os hormônios sexuais e os glicocorticóides.
Existe a preponderância, das doenças autoimunes no sexo feminino é um fenômeno bem estabelecido. A relação mulher homem é de 10:1 na tireoidite de Hashimoto e de 20:1 no lupus eritematoso sistêmico. Experimentalmente, o lupus murino pode ser prevenido ou melhorado com a castração ou tratamento com andrógenos das fêmeas afetadas, fenômeno semelhante ocorre com a tireóide aviária. Discute-se se este efeito dos andrógenos não é indireto, via a diminuição da síntese de proteína ligadora de corticosterona, permitindo o aumento da fração o livre de cortisol que seria responsável pela atividade imunosupressora. A administração de corticóide exógeno em doses moderadamente suprafisiológicas serve como exemplo-chave de sua ação imunossupressora inespecífica, razão pela qual são tão usadas no tratamento das doenças autoimunes. O importante é observar que, do mesmo modo, o cortisol secretado endogenamente exerce uma função imunomoduladora, que pode ser importante em conter certas respostas auto-agressivas, estando, portanto envolvido na homeostase imune (STITES & TERR, 1996).


MODULAÇÃO INDUZIDA


Segundo FORBES e JACKSON (1997) o efeito imunossupressor dos corticóides não é direto, mas se faz através da ativação de genes silentes que codificam moléculas importantes na imunoregulação.

Em resumo, o corticóide se liga a receptores citosólicos, ativando-os e tornando-os capazes de migrarem ao núcleo celular, onde se ligam a seqüências de DNA corticóide-sensíveis, estimulando ou inibindo a expressão de genes. A ação imunossupressora do corticóide se dá em vários níveis:

1- induzindo a apoptose, imita o mecanismo da deleção clonal. Este efeito se dá em várias células imunologicamente relevantes, tais como: precursores de células T e B, células T maduras e linfomas T e B. O mecanismo da apoptose induzida por corticóide é a ativação dos genes que codificam para endonucleases, levando à fragmentação do DNA em fragmentos de cerca de 200 pares de bases, correspondendo ao comprimento das alças de DNA que envolvem o núcleo de histona nos nucleosomas. Entretanto os corticóides não induzem apoptose em todos os tipos celulares, na verdade até inibem-na em algumas células, como ocorre nas células epiteliais do palato embrionário. A indução da apoptose pelo corticóide é receptor-dependente, pois é inibido por antagonistas como o RU486. É importante notar que algumas linfocianas inibem a morte celular induzida por corticóide em célula T diferenciadas; é o caso da IL-2, que resgata timócitos e células TH1 maduras, e da IL-4, que antagoniza a apoptose induzida por corticóide em células TH2. Em resumo, glicorticóides podem induzir uma inibição da linfopoiese, bem como depletar a periferia de linfócitos induzindo programas metabólicos suicidas. A receptividade dos linfócitos a apoptose induzida por corticóides depende do estágio de maturação (timócitos maduros são particularmente sensíveis), do grau de ativação (células T intensamente ativadas se tornam resistentes) e das concentrações locais de linfocinas.

2- num segundo nível, glicocorticóides inibem a transição de citocinas, como IL-2, e itérferon gama, de um certo modo mimetizando anergia, no sentido da transição do gene para estas linfocinas, que é essencial para a proliferação autócrina e dos T helper.

3- corticóides também potencializam circuitos imuno-supressores, desviando a resposta da célula T do tipo inflamatório TH1, suprimindo a secreção da linfocina pró-inflamatória e pró-autoimune IL-2 e aumentando a produção de IL4 secretada pelas células TH2. Isto pode ser importante no controle das reações inflamatórias, porque as células TH2 antagonizam as TH1 e podem realmente funcionar como células supressoras na prevenção de doenças autoimunes. Como os corticóides não inibem a secreção de imunoglobulinas, não interrompem o controle antiidiotípico.

4- e finalmente, corticóides inibem inúmeros processos envolvidos na inflamação em geral e na destruição celular autoimune em particular. Corticóides inibem a apresentação de antígenos, a quimiotaxia de linfócitos, monócitos e granulócitos suprimem a função citotóxica inespecífica, antagonizam a expressão de moléculas de MHC de classe II induzida por intérferon gama em células alvo de processos inflamatórios, inibem a migração de várias células inflamatórias. Além disso, corticóides suprimem a produção e a ação de mediadores inflamatórios locais (IL-1, IL-6, e TNF alfa).

Em resumo, de diversos modos à ação dos corticosteróides imitam os mecanismos fisiológicos da manutenção da tolerância imunológica (deleção clonal, anergia, imunossupressão periférica e compartimentalização).

A síntese de corticóides na adrenal (corticosterona em aves e roedores) e cortisol em primatas (incluindo o homem) é estimulada pelo ACTH, hormônio peptídico produzido principalmente pela adenohipófise, por sua vez sob o estímulo do CRF secretado pelos neurônios hipotalâmicos dos núcleos paraventriculares e supraóptico. Por sua vez, o hipolálamo sofre o controle do hipocampo, que tem sobre o hipotálamo uma ação essencialmente inibidora. Mas se por um lado os corticóides influenciam profundamente a resposta imune, por outro lado à ativação do sistema imune também influencia de modo marcado a síntese e liberação do cortisol (GUYTON &HALL,2002).

Assim, a estimulação hiperaguda do sistema imune, provocada pela injeção de endotoxinas que ativam os macrófagos e células B, é seguida de um grande incremento nos níveis plasmáticos de ACTH e cortisol após 2 horas de injeção. Estímulos menos agudos, como os provocados pela injeção de microrganismos infectantes, provocam um incremento nos níveis de corticóides dias após a sobrecarga antigênica. O mecanismo pelo qual estes estímulos levam ao aumento dos níveis de cortisol está demonstrado tanto clínica quanto experimentalmente, e é devido ao papel indutor de secreções, representado pelas citoquinas liberadas durante a resposta imune (AIRES,1999).



CITOQUINAS


Citoquinas como a IL-1, IL-6, TNF alfa têm um potencial de ativar o eixo hipotálamo-pituitário – adrenal (HPA) de modo muito agudo (20 a 60 min). Outras citoquinas como IL-2 e intérferon gama têm potencial estimulador mais lento (maior que 2 horas). Estudos levados a efeito através da injeção de sobrenadante de cultura de células mononucleares de sangue periférico revelaram que a IL-1 era a citoquina com poder liberador mais potente. Inicialmente a IL-1 é liberada pelos macrófagos, com estímulo mais intenso e prolongado. A IL-1 liberada por outras células também tem papel estimulador relevante. Foram também descritas substâncias “ACTH-like” nos linfócitos, entretanto parece que sua presença ocorre em quantidade muito pequena para desempenhar papel sistêmico, mesmo na presença de doenças infeciosas. Porém, em leucemias, a quantidade de ACTH ectópico secretado pode ser suficiente para provocar uma síndrome paraneoplásica. Assim, parece que a IL-1 produzida pelos macrófagos e por outras células imunologicamente ativas fora do sistema nervoso central é a principal responsável pelas ativação do HPA na resposta imune. O mecanismo pelo qual a IL-1 ativa o HPA tem sido estudado. IL-1-alfa e IL-1beta, as duas IL-1 que embora compartilhem apenas 26% da seqüência de aminoácidos, têm a mesma estrutura terciária e se ligam ao mesmo receptor. Ambas chegam ao SNC por transporte ativo ou por locais onde há falhas na barreira hemoliquórica (eminência média, da lâmina terminal do hipotálamo, órgão subfornical, área posterior na base do 4º ventrículo) (ROIT, 1999).

A ação estimuladora de IL-1 no hipotálamo se dá pela liberação local de norepinefrina e epinefrina, e talvez pela secreção local de prostaglandinas. Além disso, a IL-1 exerce um papel estimulador direto na liberação de ACTH na hipófise, ação que é inibida pelo cortisol. Um efeito direto da IL-1 na adrenal foi aventado, mas não convincentemente demonstrado (AIRES, 1999).

Além do papel clássico atribuído a IL-1, estudos recentes têm demonstrado o papel desta citoquina como neurotransmissor: o “stress”, doses convulsivanrtes de ácido caínico, isquemia transitória cerebral e a administração de anfetaminas causam a indução de IL-1 beta mRNA no hipotálamo. Fibras imunoreativas a IL-1 beta têm sido detectadas imunohistoquimicamente nas regiões hipotalâmicas que regulam a hipófise anterior. Além disso, receptores para IL-1 têm sido localizados no SNC. O RNAm que codifica o antagonista do receptor de IL-1 também tem sido identificado no hipocampo. Assim, inibidores locais de IL-1 podem modular os efeitos centrais de IL-1(GUYTON & HALL, 2002).

Outros efeitos centrais de IL-1 compreendem indução de febre, anorexia, catabolismo, imobilidade, sono, analgesia e inibição da função sexual via supressão da secreção de LH. A IL-1 é um dos principais pirógenos, e seu efeito é bloqueado pelo alfa – MSH, que é um antagonista natural da IL-1(ROIT, 1999).


O FEED-BACK

Para estabelecer um mecanismo de “feed-back” é necessário que um dos agentes envolvidos exerça função inibidora. Os corticóides suprimem a atividade do eixo HPA em 4 níveis, segundo DUNCAN et al. (1996):

Inibindo as células produtoras de IL-1;

Inibindo o hipocampo;

Inibindo os núcleos paraventriculares do hipotálamo;

Inibindo a hipófise anterior.

Além de inibir a produção de IL-1, os corticóides também inibem alguns de seus efeitos periféricos nas células mesangiais, em condrócitos, macrófagos, granulócitos, membrana sinovial, gânglios simpáticos, células gliais, células endoteliais e tecido ósseo. É interessante que corticóides não inibem a síntese hepática das assim chamadas proteínas de fase aguda do soro induzidas por IL-1, o que pode explicar a presença prolongada dos mesmos no soro.

Além do cortisol , o próprio CRF e ACTH também podem mediar efeitos imunossupressivos. O CRF administrado só induz a secreção de beta-endorfina em linfócitos de baço e gânglios linfáticos, por sua vez a beta-endorfina afeta a migração de neutrófilos, a atividade dos NK e a produção de intérferon. Bem como a secreção de IL-1 e IL-6 em monócitos estimulados por endotoxina. Por outro lado, o ACTH inibe a secreção de intérferon gama em células de baço de camundongos. A despeito destes dados, a concentração de CRF e ACTH é provavelmente baixa demais para permitir esses efeitos modulatórios “in vivo”.

Recentemente, demonstrou-se que linfócitos expressam na superfície a endopeptidase neutra 24.11 (NEP ou encefalinase), que converte ACTH em alfa MSH. Isto pode ser relevante em vista do efeito antiinflamatório e antagonista de IL-1 do alfa-MSH (OTSUKA, 2004).

Como se viu, citoquinas com atividade estimuladora de corticóide (IL-1, IL6 e TNF-alfa) produzidas durante a reação imune aguda mobilizam a cascata CRF-ACTH-cortisol, provocando a elevação dos níveis sistêmicos do corticóide. O cortisol age como um agente antiinflamatório e imunossupressivo, contendo reações exacerbadas do sistema imune que poderiam pôr a vida em risco, bem como bloqueando respostas autoagressivas. Isto se torna claro a partir de experimentos nos quais se bloqueia a ativação da HPA por diversos meios (ex: adrenalectomia) e se verifica que não ocorre mais recuperação espontânea do choque séptico e da doença autoimune experimental (ROIT, 1999).


CONCLUSÕES

Podemos intuir que corticóides estimulados no HPA realmente contribuem, mantendo a especificidade de reações imunes, o que seria obtido impedindo-se o recrutamento de linfócitos não específicos durante uma resposta imune específica. Posto que os linfócitos T são vulneráveis à supressão por corticóides, particularmente durante a fase de ativação, aquelas células T ativadas no início de reação (quando os níveis de cortisol ainda são baixos) poderiam continuar sua expansão clonal, enquanto que clones menos específicos ou auto-reativos estimulados em estágios posteriores (quando os níveis de cortisol sobem) seriam impedidos de proliferar.

Dados adicionais a favor desta teoria são fornecidos por modelos animais nos quais ocorrem doenças autoimunes espontaneamente e se verifica experimentalmente uma baixa resposta do eixo HPA ao estímulo imunológico, como por exemplo, na tireoidite autoimune aviária, no lupus espontâneo do camundongo NZB, nos diabetes do camundongo NOD, na esclerose sistêmica progressiva aviária, entre outros.

Assim, se parte importante das doenças endócrinológica, também é verdadeiro que hormônios, principalmente glicocorticóides, modulam a resposta imune, estabelecendo uma interação que segue um diálogo contínuo, sob pena de criar as condições para o estabelecimento de doenças autoimunes, endócrinas ou não.


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