Um Lugar Comum para se visitar

"A presença a si se realiza sobre um fundo essencial de ausência, pois só
estamos junto a nós estando entre as coisas e com os outros".

(Chauí, 2002: 23)

Hoje, descobri um lugar especial pra se visitar. Cá entre nós, lugar interessante é o que não falta de São Paulo, a Visconde de Mauá, de Belém a Brasília, de Veneza a Canadá. Encontramos muitos lugares desconcertantes, exóticos, pitorescos para nos embrenhar. O mundo globalizado não apresenta mais fronteiras. Se você tiver uma boa dose de senso de aventura e dinheiro o Sistema Solar pode ser seu limite. Ouvi dizer que a NASA tem excursões especiais ao redor da Lua e quem sabe de algum planeta do ainda não conhecido, totalmente, Sistema Solar. Aliás, lugares diferentes a se conhecer é o chamaris das rotas alternativas ao turismo de massa.
Recentemente, conheci uma pessoa, um tipo de aura conhecida, que logo nos faz sentir em casa, logo ficamos amigos. Foram tantas as coincidências de gostos, de visão de mundo, de política e de sentimentos que se não fosse pela preferência homossexual, eu diria que havia encontrado minha alma gêmea. São muitos os lugares, as pessoas e as culturas que visitamos quanto temos uma atitude fraternal para com o mundo. O convívio do diferente, mas tão igual a nós, a possibilidade de mergulhar na vida do outro, um outro diferente de mim. De viver suas dores e prazeres e se deixar ser guiado por essa mão desconhecida, na base da confiança, se permitindo ser apresentado a mundos distantes dos quais não se poderia ter acesso se não houvesse essa entrega nos dá uma família bem maior do que aquela que ganhamos ao nascer.
Esse meu novo amigo adora visitar cemitérios. Como boa amiga sempre que posso o acompanho nos finais de semana. Aprendi a achar informação nos lugares menos esperados. O jazigo da família Lenore Ramos, o mesmo da Rua Consuelo Martino Lenore Ramos, lá do centro da cidade. O Edifício Aparecido José Lenore Ramos onde fica a Associação Comercial. A família deve ser antiga, a julgar pela data do falecimento do patriarca que data do período de fundação da cidade. E, pela quantidade de sobrenomes japoneses, portugueses, espanhóis e italianos neste cemitério deduzo que estou numa cidade de pioneiros. De Akamura, a Bertocelli, de Machados a Carvalhos, todos parecem ter encontrado um lugar só seu debaixo do céu que parece proteger a todos nós. Com certeza, todos tiveram uma vida para contar, para chorar, para amar e se alegrar. Feita toda ela de escolhas, de dores, amores, sabores e odores. E, desse roteiro nunca ouvi dizer que ninguém saísse vivo.
Aquele lugar que havia visitado provocou em mim um sentimento de admiração e respeito, de estranhamento e surpresa do tipo que temos quando nos deparamos ao virar a esquina. Aquela esquina de todos os dias, sempre igual e, de repente, sem mais nem menos, tão diferente. Comecei a reparar em curvas, cores, nuances, cheiros que não havia percebido até então. Algo semelhante acontece quando recebemos os parentes ou amigos, naquele feriado. E, somos levados, pela qüinquagésima vez, a visitar o mesmo museu, o mesmo zoológico, a mesma praia, o mesmo parque. E, sem que nada de extraordinário aconteça você é tomado por uma incrível atmosfera de surpresa e de íntimo agradecimento. Conduzida pela destreza e pela rapidez de um desconhecido você é apresentado a um outro lugar. Na verdade é o mesmo lugar, mas uma nova perspectiva no olhar tomou posse de sua visão e sentimento e, você, se deixa ser levado pela beleza do lugar, sem preconceitos, sem julgamento, sem expectativas. É este sentimento que me arrebateu há pouco e, até agora, me acompanha quando conheci aquele lugar.
Não saberia fornecer indicações em qual rua virar, ou esquina parar, em qual mão ficar para sair na preferencial de maneira a seguir a trilha que vai dar no caminho certo. Não saberia desenhar o local do endereço no mapa ou apontar estradas ou percursos. Talvez, dissesse que "depois de uma longa caminhada, lembrando que feri os pés ao caminhar, de ver montanhas e rio e de sentir a voz do vento falar", você chegasse por lá. Ouvi dizer que tem outras formas de se conhecer aquelas bandas. Você pôde chegar atravessando a nado uma margem extensa de um rio de águas profundas, ou percorrer os ares com um teco-teco em manobras difíceis e arriscadas. De qualquer forma, fica sempre a idéia de um esforço físico, mental e moral necessários para essa trajetória. Essa idéia bem lembra a busca desenfreada por esportes de aventura, esportes radicais, rafting e todos os ings da moda. A questão é que nos esportes radicais e conservadores o percurso já está traçado, milimetricamente, controlado, conhecido e bem estudado, um esforço cronometrado. Todos os passos são conhecidos, nada a esperar fora do combinado, da forma previamente definida todo o trajeto é marcado e seu objetivo estipulado previamente. Portanto, ganhos e perdas, custos e benefícios registrados.
Quando lembro do lugar que visitei, compreendo que o caminho pra se chegar lá vai depender muito do olhar de quem segue a trilha, pois cada um deve pavimentar seu próprio caminho. Observei isso quando cheguei por lá. É um lugar que nunca havia visto antes, que provocou meus sentidos, aflorou meu faro. Fiquei a pensar se havia escutado referência de alguém acerca daquele lugar. Caminhar por lá me fez sentir como gente grande dessas que a gente sempre ouviu falar em contos de estórias pra fazer dormir criancinhas. Estas pessoas passam por tantas coisas, se alegram, choram, amam, se desiludem, odeiam, se desesperam e no final, tudo acaba bem. Senão bem, pelo menos bem vivido. No final tudo faz sentido. Hoje, quando cheguei por lá, naquele lugar bonito, percebi que tenho muito a escrever e a contar ainda de minha estória. Não sei se haverá alguém a ler, mas o gesto da escrita já me liberta a alma e me conduz denovo a esse lugar.
Algumas histórias contadas por lá são com final feliz, outras nem tanto, mas todas são estórias pra se contar ou se escrever. O inusitado é que me dei conta de que existem estórias ainda a serem escritas. E, isso me deixou inflada, como clara em neve. Este lugar comum pode ser o lugar onde as estórias de todo o mundo são criadas. Como procurar esse lugar (aqui deveria ter um ponto de interrogação, mas o teclado está quebrado). Acho que quando menos esperamos o tal lugar aparece. É como uma iniciação você deverá estar pronto, senão não vai reconhecer a trilha ou saber como pavimenta-la para chegar lá.
Quando você sentir cheiro de papel molhado ou ver a cor de folha de árvore, preste muita atenção!!!! Alguma coisa deverá estar sendo mudada ao seu redor. A transformação é sutil, portanto olhos bem abertos, atenção redobrada, vigilância nos sentimentos, acuidade no que pensar. Eu percebi que cheguei quando refletia nas escolhas que fiz na vida, nas escolhas que vivi e senti. E, como se um véu fosse deslocado, compreendi que o único lugar onde tudo parecia fazer sentido era bem ali, aqui mesmo, isso, esse lugar comum, bem aqui, dentro de mim.
O que admiro e admirei nas pessoas mais próximas, amigas, mães, irmãs, professores, companheiro, pai, tios, avó, sogras, pessoas que são ou foram minhas referências e modelos foi a sua natureza singular e dispare suas idiossincrasias, o material do qual cada uma delas é ou foi feito. Admira-las ou segui-las como modelo me afastou desse lugar que agora encontro novamente. Nesse lugar vi uma beleza antes não conhecida. E, como um pintor que ao olhar a pintura ainda inacabada, fita o modelo e vislumbra sua interpretação compreendi que a obra e o modelo não são a mesma coisa. Foi assim que me dei conta de que existe um lugar de muita paz e beleza dentro de cada um de nós, dentro de cada obra, produto ou criação humana, a sua própria vida. E, que, não pode ser encontrada no seu modelo que racionalmente buscamos alcançar. A terra onde minhas raízes estão plantadas apresenta matas a desbastar, espécimes novas a catalogar, trilhas a realizar, vistas a admirar, montanhas a percorrer, mares para nadar, chão batido pra deitar e toda uma aventura a trilhar.