Autor: Emerson Tardieu Pereira Júnior (Diretor Clínico da Superintendência de Organização Penitenciária SJDH/MG, Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da FCH/FUMEC

A extensão do título deste pequeno artigo talvez traduza para o leitor a complexidade que envolve tão apaixonante temática: as instituições oficiais de acautelamento e tratamento (nosocômios judiciais), os hospitais psiquiátricos forenses e os produtos e subprodutos gerados pelas condições de tratamento ali dispensadas ao paciente psiquiátrico a quem é imputado o instrumento jurídico da Medida de Segurança.

 

Inicialmente, devemos observar a finalidade da aplicação da Medida de Segurança, assim como as expectativas depositadas nesse instrumento e as condições mentais de quem a ele é submetido. Trata-se de um instrumento jurídico derivado do Código Penal Brasileiro, constituído e sancionado na década de quarenta, que tem como função primária a proteção ao cidadão que, acometido por estados de adoecimento mental, declina de suas funções psíquicas adaptativas e, ato contínuo, passa a apresentar distúrbios de comportamento recorrentes, caracterizando situações típicas de desvio social, delito ou situações que caracterizem sua incapacidade de adaptação ao viver normativo social.

 

Portanto, devemos entendê-la como um mecanismo jurídico de proteção e tratamento ao doente mental infrator, e não como condição de pena imposta, como infelizmente tem sido compreendida por parte significativa de nossa sociedade.

 

A condição de sanção jurídica de pena imposta, restritiva da liberdade do indivíduo, deriva de um sistema social constituído por inúmeros mecanismos de controle, que, em última instância, refletem um padrão ideológico de dominação.

Compreendida dessa forma (anacrônica) a Medida de Segurança, travestida pelo, Emerson Tardieu explica o significado de acolhimento e tratamento,  impõe ao portador do sofrimento mental sofrimento ainda maior, na condição de criminoso, de perigoso, de portador de periculosidade pessoal, danosa ao meio social, que deverá ser confinado aos nosocômios judiciários, em certas situações, no imaginário popular, por tempo indeterminado (prisão perpétua), como se isto fosse possível.

O Prof. Emerson Tardieu explica também que esta modalidade de compreensão social sobre a imposição da Medida de Segurança como ato jurídico (determina ação) definitivamente não corresponde às reais necessidades do doente mental, do sistema social no qual se encontra inserido e dos executores da medida.

 

Quando realizamos uma detalhada avaliação dos resultados apresentados por esse modelo, sob os aspectos das diversas modalidades de tratamento mental hoje disponibilizadas, inclusive na rede pública, vemos que é parcialmente inócuo, uma vez que não cumpre sua função básica.


Aqui devemos ainda enfatizar o sub-produto ou os efeitos colaterais dessa terapêutica, a provável cronificação de parte significativa das pessoas submetidas a longos períodos de internamento.

 

Analisando essas resultantes, devemos, invariavelmente, submeter todo o processo a um estudo aprofundado, a um extenso diagnóstico, para levantarmos as causas que acarretam a perda de sua eficácia.

 

Inicialmente, devemos nos ater às questões relativas às expectativas sociais depositadas no confinamento do louco infrator; é preciso resgatar os princípios da fundamentação científica do tratamento dos estados de adoecimento mental e de sua humanização, contrapondo-os à condição simples da reclusão. Nenhuma pessoa realiza a opção pelo adoecimento mental, muito menos utiliza-se dessa condição para praticar delitos. Devemos observar que, por si só, estar doente traduz também o estado de sofrimento, de dor emocional, de marcas significativas, como o preconceito social ainda existente sobre a loucura.

 

Conceituados sob o paradigma da ciência (psiquiatria, psicologia, sociologia, etc.), como modelo científico, desenvolvido através de construtos e métodos, pelas práticas empíricas, os estados de adoecimento mental ganham outra compreensão, outro juízo de valor social, portanto, outras expectativas de terapêutica, diferentes da cronificação, do abandono afirman Emerson Tardieu Pereira

 

Nessa mesma modalidade, devemos avaliar os princípios técnicos utilizados hoje na realização das avaliações, laudos e diagnósticos que posteriormente subsidiarão a magistratura no processo de imposição da Medida de Segurança. Temos a convicção de que, com a atual estrutura, o Poder Judiciário não possui peritos em número e com a formação  adequada para a realização dos estudos dos casos existentes. Da mesma maneira, devemos referenciar que esses profissionais, por mais brilhantes e preparados que possam ser, não se encontram habilitados tecnicamente com os instrumentos hoje disponibilizados para a realização das perícias.

 

Segundo o Professor Emerson Tardieu, a realização do diagnóstico, fundamentado pelo princípio da interdisciplinaridade e com as técnicas hoje disponibilizadas, consiste no mais legítimo de todos os instrumentos para evitarmos erros de avaliação e, por consequência, a injustiça.

 

Nesta última década, a evolução da criminologia, da psicologia jurídica e da psiquiatria forense foi notável, na condição de objeto de pesquisa de diversos centros internacionais, face à preocupação global com a criminalidade e a violência urbana. Seu conhecimento, através de pesquisas teóricas e práticas, foi notadamente ampliado. Sua aplicação, ainda hoje, é objeto de capacitação contínua dos técnicos que integram as equipes multidisciplinares encarregadas de realizar avaliações, tais como: de interdição, mensuração de periculosidade, dependência toxicológica e cessação de periculosidade. A preocupação dimensiona-se forma que hoje se exige do perito, além da graduação específica no  campo de atuação e da especialização na área, a conclusão de pós-graduação, como condição mínima para a prática do diagnóstico judicial.

 

Para Tardieu, no Brasil, infelizmente, esses requisitos mínimos de qualificação profissional não vêm sendo observados.  Especificamente em Minas Gerais, que se destaca no cenário nacional em matéria de criminologia, são poucos os técnicos que possuem essa formação. Estes encontram-se, quase em sua totalidade, trabalhando apenas nos hospitais psiquiátricos forenses ou em penitenciárias, responsabilizando-se somente pelo tratamento dos pacientes internados ou
pela elaboração de perícias dos casos, quase sempre de pessoas que já foram objeto de sentença judicial.

 

É fundamental termos a consciência da importância do momento do diagnóstico, pois aqui se estabelece a porta de entrada para a rede de tratamento nosocomial. Aperfeiçoando este importante instrumento, o "diagnóstico", teremos a oportunidade e as condições técnicas adequadas, a prescrição de tratamentos eficazes, que, como veremos adiante, nem sempre requerem a condição de acautelamento.

 

Abordada a formulação do diagnóstico, resta-nos descrever a condição de acautelamento, de internação seja na rede pública de saúde ou nos estabelecimentos penitenciários/hospitalares.

 

Nos últimos anos, esta temática tem sido objeto de diversos debates, parte deles acalorados, permeados por conteúdos de características ideológicas, que, como sabemos, às vezes fogem à esfera do tecnicismo, transformando--se em paixão, perdendo seu vínculo com a racionalidade que a ciência nos cobra.

 

Através de seus dirigentes, inclusive das áreas clínicas, a rede de saúde mental tem formulado, publicamente, insistentes protestos contra a obrigação de receber, através de mandado judicial, pacientes sentenciados à Medida de Segurança, ou ainda em processo de julgamento, para guarda provisória e tratamento. Parte significativa do corpo funcional e clínico aponta problemas de segurança e até mesmo desqualificação técnica e estrutural para receber e manejar essa clientela. Normalmente, em virtude da superlotação dos hospitais penitenciários do Estado, resta ao juiz responsável pelo processo acautelar o paciente na rede pública, uma vez que sua permanência em uma delegacia de polícia seria muito danosa.

 

As delegacias de polícia, distritos policiais e casas de detenção, além do grave quadro de superlotação, geralmente não possuem corpo técnico adequado, principalmente na área de saúde mental. Restaria ao paciente, além dos riscos do ambiente, o sofrimento contínuo potencializado pela incapacidade de compreensão de sua situação e até mesmo de defesa frente à hostilidade do meio.

 

A incoerência desse processo reside não na atitude do magistrado, que procura proteger o portador de sofrimento mental, demonstrando coerência nessa atitude, mas na postura da rede pública, que nessa situação desconhece os princípios básicos da clínica de saúde mental, resgatada pela reforma anti-manicomial. É preciso ter a percepção de que, anterior ao estado de delinquência, está presente o estado de adoecimento mental, condição básica para o tratamento. Grande parte das pessoas acauteladas nos hospitais penitenciários de Minas estiveram registradas em estabelecimentos público manicomiais antes do processo de transgressão. Devemos ainda registrar que outra parte significativa dessa clientela, se tivesse tido acesso à rede pública, não teria o quadro de nosologia agravado e, por consequência, provavelmente não teria com tido os delitos a ela imputados, afirma Emerson Tardieu Pereira

  

Tratar de doentes mentais e readaptá-los ao meio é missão institucional da rede pública de saúde mental. A escolha da clientela a ser atendida traduz preconceito ou desconhecimento da situação desse segmento de doentes mentais. As
constantes argumentações de falta de segurança, de necessidade de reformas estruturais que aumentem a segurança dos hospitais, para atender essa clientela, refletem os princípios tão propalados de constrição dos doentes mentais, de seu confinamento ou até mesmo da pura e simples reclusão.

 

Para Emerson Tardieu Pereira, nesse contexto, percebe-se uma incoerência na recusa de internação desse paciente e na feroz crítica aos hospitais psiquiátricos jurídicos, por receberem e disponibilizarem tratamento à mesma clientela.

 

O desconhecimento dás condições de acautelamento desses doentes mentais retrata o desconhecimento do seu diagnóstico e das formas de manejo adequado, criando e acentuando um clima favorável ao preconceito. O louco infrator, visto na esfera da psiquiatria e da psicologia forenses, constitui-se, via de regra, em um indivíduo portador de quadro de adoecimento mental agudo, estando o quadro primário associado ao quadro de agressividade patológica - condição que, como sabemos, requer atenção e tratamento especializado. O prognóstico para a remissão do quadro, quando o doente é bem tratado, geralmente é favorável. Os índices registrados pelas instituições hospitalares/penitenciárias comprovam essa condição. Normalmente 2/3 da clientela, quando submetida a tratamento adequado, responde favoravelmente, recebendo alta nos primeiros anos de internação.

 

Para Emerson Tardieu Pereira outro grave problema a ser equacionado, quando pensamos na condição exclusiva do tratamento, são os prazos mínimos estabelecidos pelos juízes responsáveis pela imposição da medida para permanência dos doentes nos estabelecimentos oficiais. Acredito que no estabelecimento do prazo mínimo esteja a causa fundamental da definição da Medida de Segurança como confinamento, como cadeia a ser cumprida, desvirtuando-se qualquer princípio que possa fundamentá-Ia como tratamento.

 

A mudança de expectativa deveria ter início não no questionamento desprovido dos conhecimentos técnicos necessários, quanto à condição da medida, pois, como afirmamos, existe a real necessidade de proteção e tratamento a esse paciente portador de quadro grave. Em condições agudas, desprovido de tratamento e da proteção oferecida pelas instituições de tratamento, poderá cometer atos que atentem contra a própria vida, contra a vida de terceiros ou contra o patrimônio alheio. A revisão desse danoso conceito ocorrerá quando não forem mais estabelecidos prazos mínimos. Para isso, acredito, seria necessária uma mudança na legislação vigente.

 

Quando é definido o tempo mínimo de permanência nas instituições oficiais, automaticamente associa-se a medida do tratamento à condição de pena imposta, algo a ser obrigatoriamente cumprido. Essa associação contribui em muito para que ocorra o desvirtuamento da condição de tratamento para pena.

 

Devemos informar aos desavisados que tal ideação sobre a medida não é formulada apenas pelos responsáveis pelo tratamento, mas, principalmente, pelo indivíduo a quem é imposta a situação. Esse fator reduz as expectativas de estabelecimento de bons vínculos terapêuticos e as probabilidades de restabelecimento da saúde mental, uma vez que é definido um tempo mínimo para a cura. A cronificação de um segmento da clientela pode e deve ser justificada, em parte, pela expectativa de pena imposta, que propiciará a substituição do diagnóstico nosológico correto pela condição de agressividade portada e pelos danos causados pelo sujeito ao meio social no cometimento de delitos.

 

A importância do quadro clínico declina-se em função das expectativas emocionais formuladas, que deverão ser alvo de correspondência do sujeito e do meio no qual se encontra inserido. Exemplificando, diríamos que um paciente portador de transtorno psicótico agudo, passará à condição de indivíduo que poderá matar sua irmã com mais de quarenta facadas, criminoso perigosíssimo, que deverá ser confinado sob condições de extrema segurança. O portador do quadro agudo, também introjetará esse novo status de delinquente e, associando-o à condição de tempo mínimo de tratamento, tenderá a acreditar que nunca sairá do manicômio, sentindo-se desestimulado para o tratamento oferecido. O grande número de pacientes abandonados pelo núcleo familiar também deverá ser compreendido pela mesma ótica das desvirtuações de sua condição de doente, sendo inserido no mundo da criminalidade, devendo, portanto, ser evitado como algo danoso a todos.

 

Segundo Emerson Tardieu Pereira, o fenômeno da cronificação tarnbém deve ser alvo de análise como próprio do quadro nosológico portado, pois sabemos que ainda hoje, apesar dos avanços das técnicas de tratamento, em alguns casos o doente não responde às terapêuticas disponíveis. Não ocorrendo resposta, e principalmente com a ruptura do vínculo familiar, a cronificação surge como decorrência natural.

 

Quando percebemos a situação do louco infrator de forma diferenciada, não ideológica, percebendo-o como pessoa portadora de um quadro nosológico agudo que cometeu um delito, ou vice-versa, constatamos a existência de um desconhecimento do quadro e, a meu ver, de erros ou envelhecimento da legislação. Os preconceitos sobre a doença mental, que acreditávamos estar superados em função da reforma psiquiátrica, ainda permanecem

 

Como agravante, vemos que parte significativa desse preconceito está presente na própria rede pública de saúde mental. Para se defender e se resguardar da condição de co-responsabilidade pelo tratamento dessa clientela, passa-se a atacar frontal e desordenadamente as instituições que têm como missão acautelar e tratar dos portadores de doença mental que cometeram delitos, independentemente destes e da forma como ocorreram.

 

O quadro descrito vem se agravando nos últimos anos. A recusa de tratamento e a diminuição do número de leitos psiquiátricos disponibilizados, como resultante da reforma psiquiátrica e da paralisação das reformas da estrutura física dos estabelecimentos oficiais, têm levado um grande contingente de doentes mentais a delegacias de polícia, aguardando, na condição de presos comuns, uma vez que não estão sendo tratados, vagas nos estabelecimentos penitenciários/hospitalar.

 

Por ficarem acautelados em delegacias de polícia ou casas de detenção, onde normalmente não existem profissionais especializados, o nível de sofrimento mental deles será aumentado, e o quadro portado quase sempre acentuado. O preconceito torna-se ainda mais claro quando percebemos que outros presos, portadores de outras doenças, como os cardíacos, são prontamente atendidos pela rede pública, jamais Ihes sendo negado o tratamento necessitado, como prerrogativa de direito constitucional.

 

Como vivemos em um país de exceções, vemos que a mesma legislação, .associada ao quadro descrito, promove uma verdadeira situação de aparteid, definida pela condição econômica do louco infrator ou daquele que se faz passar por tal para driblar as imposições legais.

 

Na ausência de leitos para internação dos loucos infratores, aqueles que possuem melhores condições financeiras solicitam do Poder Judiciário, fundamentados no princípio sagrado e universal de acesso ao tratamento, o direito de se internarem em clínicas particulares - estabelecimentos cinco-estrelas, que ofertam modalidades de tratamento avançadíssimas, com respeitáveis índices de remissão e reintegração da pessoa ao meio social. Não gostaria de discutir o mérito da condição de tratamento ofertada, mas a segregação daqueles que não possuem aporte financeiro e que por isso devem permanecer em estado de sofrimento mental junto a outros presos, vendo dia a dia seu quadro clínico se agravar. Essa brecha na legislação, se assim podemos denominar, fez surgir outra condição de louco: a dos
.doentes mentais temporários - indivíduos pertencentes a abastados segmentos sociais que, presos por terem cometido delitos graves, utilizam-se da condição de loucos e de parte dos estabelecimentos citados para safar-se das sanções penais.

 

Infelizmente, a inexistência de peritos especialistas e de centros de diagnósticos oficiais capazes de atender à demanda existente, assim como de leitos na rede pública e nos estabelecimentos hospitalares/penitenciários, constitui terreno fértil para tais práticas.

 

O magistrado, diante da situação diagnosticada, quase sempre por especialista não pertencente ao sistema, de doença e sofrimento mental, e na ausência de vagas nos estabelecimento oficiais, se vê pressionado a autorizar a internação em estabelecimentos privados. São inúmeros em nosso Estado casos de pessoas nessas condições que, no retorno ao meio social ou no decorrer do tratamento, voltam a cometer delitos, alguns deles gravíssimos, até mesmo com grande repercussão na mídia. A responsabilidade social sobre essa questão cabe ao Estado, principalmente quanto aos estabelecimentos hospitalares penitenciários, que sequer tratam do sujeito, por não disponibilizarem vagas para internação.

 

A condição financeira determinante da situação é logo esquecida, dando lugar a uma justificativa genérica para explicar a ocorrência. Cumprido o ritual, com o esquecimento público, tais práticas voltam a ocorrer, como tenho testemunhado nos últimos dez anos.

 

A deficiência de leitos nas instituições oficiais de acautelamento é de aproximadamente 700 vagas. Isto significa dizer que, nos mais de 800 municípios de Minas Gerais, esses contingentes de doentes mentais encontram-se, na sua grande maioria, acautelados provisoriamente em cadeias públicas, aguardando uma oportunidade de serem submetidos
a tratamento mental.

 

Tal situação, como já colocamos anteriormente, não deve ser vista como uma simples operação aritmética. Analisado de forma cartesiana, o problema seria de simples resolução. Bastaria construir novas unidades hospitalares/penitenciárias, mais especificamente duas unidades com o tamanho aproximado do Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz (de Barbacena).

 

Porém, a lógica real distancia-se das soluções técnicas que poderíamos dar ao problema. Uma análise detalhada dos casos nos apontaria um quadro bem mais ameno, com melhores possibilidades de resolução. Não gostaríamos, com esta afirmação, de reduzir as responsabilidades dos órgãos encarregados da administração do sistema, mas defendemos que a resolução do problema deve passar pela constituição de grupos interinstitucionais, envolvendo a Secretaria de Estado da Justiça e de Direitos Humanos, a Secretaria Estadual de Saúde e instituições da sociedade civil, especificamente aquelas constituídas em função da saúde mental.

 

A bem-sucedida reforma psiquiátrica nos ensinou que, ao construirmos simplesmente novas unidades e  disponibilizarmos novos leitos psiquiátricos, além de estarmos atendendo à demanda específica para a qual esses leitos foram criados, estaremos também criando novas demandas de institucionalização de um segmento de clientes que poderiam ser tratados em regime ambulatorial, mais adequado para a natureza da patologia portada.

 

A inadequação da aplicação da Medidas de Segurança, face a uma conceituação imprópria, motivo central deste artigo, sem sombra de dúvida em muito contribui para a existência de um número tão expressivo de doentes mentais aguardando a oportunidade de serem tratados. Da mesma maneira a situação decorre do fato de a rede pública de saúde mental não fornecer tratamento a esse enorme contingente de portadores de sofrimento mental. A paralisação das reformas dos hospitais penitenciários, também contribuiu para o agravamento do problema.


Porém, devemos alertar para a necessidade de realizarmos uma reavaliação geral dos casos. A prática cotidiana na Diretoria de Criminologia Clínica, órgão da Superintendência de Organização Penitenciária, por onde passam as solicitações judiciais de internação, nos aponta para essa solução.

 

Parte significativa dos sentencia dos submetidos à Medida de Segurança nas comarcas do interior do Estado encontra-se recebendo tratamento no próprio município, fornecido pelas Secretarias Municipais de Saúde, que não demonstram preconceitos contra os munícipes portadores de doença mental e sentenciados por cometerem delitos.

 

O exemplo, a ser seguido, evidencia que, ante uma distorção na compreensão do problema, triunfa o bom senso. Pacientes que possuem indicação de tratamento em ambulatório assim o devem fazer, não perdendo o vínculo com sua estrutura familiar, com a cultura local, enfim, com seu habitat. Essa simples prática, vista sob a ótica da clínica de saúde mental, em muito aumentará a possibilidade de sucesso no tratamento e, por conseqüência, de reinserção social.

 

Devemos resguardar aos estabelecimentos hospitalares/penitenciários aquele segmento da clientela que de fato solicita institucionalização, não em função de conceitos e preconceitos sociais, mas da patologia portada e dos riscos que apresenta para si mesmo e para o meio, solicitando, portanto, um manejo clínico diferenciado.

 

A construção de novas unidades não atenderia plenamente a essa demanda "desconhecida", muito menos estaria resolvendo uma situação que, antes de mais nada, implica distorção de conceitos, sejam estes de natureza ideológica ou administrativa. Estaria, sim, formulando novos casos de institucionalização. A existência de programas conjuntos envolvendo as secretarias de Estado responsáveis pela área de saúde mental e os responsáveis pelo acautelamento de sentenciados seria um grande passo para a resolução do problema.

 

Para Emerson Tardieu Pereira, a criação de centros de diagnósticos oficiais e sua plena operacionalização lançariam bases sólidas para o conhecimento real da situação e para a realização dos encaminhamentos técnicos necessários.

 

Finalizando, gostaria de analisar brevemente o conjunto de críticas que atualmente são direcionadas às instituições oficiais judiciárias de tratamento mental em nosso Estado. Não gostaria de prender-me aos aspectos anteriormente analisados, mas a situações práticas que insistentemente são cobradas dos membros do corpo clínico dos dois estabelecimentos, não possibilitando aos mesmos espaço para defesa.

 

As instituições hospitalares penitenciárias - a saber: o Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz (Barbacena) e o Hospital de Toxicôma - nos Padre Vale da Costa (Juiz de Fora) - são responsáveis (nos últimos 75 anos, no caso da primeira pelo fornecimento do tratamento psiquiátrico de todos os internos sentenciados com Medidas de Segurança.

 

Ali não existe possibilidade de recusar internação de paciente, muito menos de escolher a clientela a ser tratada.
Admite-se, trata-se, cumprem-se as determinações legais, inclusive admissão dos pacientes oriundos da rede pública de saúde mental que não se adaptaram a seus padrões, sendo conduzidos a esses hospitais para a preservação da integridade física e do ambiente institucional de outros estabelecimentos de saúde.

 

A simples correlação entre o número de profissionais de nível superior (psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, etc) lotados nas unidades da Secretaria de Justiça e da Secretaria de Saúde e a disponibilidade de recursos técnicos e materiais nos fornecerá importantes subsídios para a compreensão do problema e, por conseguinte, para sua resolução.

 

A reforma psiquiátrica, segundo Emerson Tardieu Pereira, além da drástica alteração na compreensão e tratamento das doenças mentais, trouxe para a rede pública a preocupação e a atenção dos órgãos gestores, face ao debate social e à conscientização em torno de um problema crônico. Foram revistos conceitos básicos, envolvendo a reforma das estruturas físicas, a alteração no número de profissionais disponibilizados para os hospitais, a capacitação do corpo técnico, a revisão do elenco de psicofármacos a serem utilizados, a adequação no fornecimento e manutenção dos estoques de medicação, dentre tantas alterações fundamentais realizadas

 

É inegável que, no bojo da reforma, a disponibilização de recursos financeiros em muito contribuiu para a concretização da mudança. Devemos citar, inclusive, uma remuneração mais adequada para os profissionais militantes.

 

No presente instante, hospitais penitenciários ressentem-se basicamente da existência de tais condições para que possam aumentar sua eficiência nos tratamentos oferecidos. A capacidade de atuação reduz-se drasticamente quando não se tem acesso a uma tecnologia adequada

 

Pode-se dizer que os tempo são outros, que a situação financeira do Estado é precária, e apresentar outros argumentos plausíveis, mas, a meu ver, isso não justifica a não resolução do problema. Um sirnples exemplo, a paralisação das obras de estrutura física de ambos os hospitais por 14 meses, retrata essa condição. Mesmo com as deficiências registradas, essas instituições e as pessoas que nelas trabalham resistiram, levando adiante o desejo de atender a um segmento rejeitado por todos.

 

A simples disponibilização de condições mais adequadas aos hospitais deverá ser tratada como um dos importantes aspectos do problema, pois, aumentando-se o índice de eficiência no tratamento, aumenta-se também a disponibilização de novas vagas.

 

Como Emerson Tardieu Pereira disse no início do artigo, a temática é complexa e paixonante não podendo ser esgotada em artigos ou opiniões isoladas. Porém, ao finalizar, novamente enfatizo a necessidade de abordamos o problema desprovidos de conceitos puramente ideológicos, para não correr o risco de abandonar os princípios da cientificidade, deixando-nos levar pela
afetividade, por opiniões pessoais ou de grupo, desconhecendo a amplitude e a complexidade do problema. A  postergação da resolução, quase sempre consequência do embate ideológico, somente contribui para acentuar o sofrimento mental de centenas de pessoas, acauteladas em delegacias de polícia no interior do Estado, em municípios e localidades desprovidos de rede pública e às vezes privada de saúde mental. Essas pessoas, por serem portadoras de distúrbios mentais, tendo sim cometido delitos, foram sentenciadas a tratamento, e não a constrição física e ao estado perpétuo de sofrimento, provocado pela ausência de recursos.