O Lobisomem da Vila Pega com Deus
No vaivém das grandes cidades de hoje quase não temos tempo para religiosidade, superstições e às vezes não temos tempo nem mesmo de sentir medo, mas vou lhes contar uma história que vale a pena ser lembrada, foi um acontecido que se passou anos atrás quando não existia internet, televisão era coisa de gente rica, e divertimento para as pessoas era se assentar ao redor do fogão a lenha e prosear com os amigos e familiares. Um pequeno povoado denominado "Pega com Deus", abrigava poucas famílias, todo mundo se conhecia, gente guardadora dos bons modos e costumes de família, sem eletricidade e sem muito o que fazer, após um dia de laborioso trabalho braçal, o canto do galo avisava que já era hora de se recolher.
Mas a superstição desse povo devoto tem um período especial, a quaresma. Na verdade era uma demonstração de respeito e disciplina devido a sua religiosidade. A quaresma é um período que antecede a grande festa do cristianismo: a ressurreição de Jesus Cristo, comemorada no Domingo de Páscoa e simboliza o sofrimento de Jesus no deserto de jejum e em oração, sendo assim é um período de penitência para os cristãos onde devem abdicar-se de coisas que lhes dão prazer como forma de se mostrarem puros diante de Deus, coisas pequenas como jejuar, dormir menos, orar mais, ser mais caridoso, enfim, estar mais próximo de Deus. Mas o que se ouvia mesmo era que na quaresma era mais propenso a aparição de almas penadas e assombrações.
Dois vizinhos, já velhotes, rabugentos e mais chatos que cabeça de prego, que viviam a se exibir um para o outro eram, Juca Pito-de-palha, assim era chamado pois nunca era visto sem um longo e esfumaçante pito de palha entre os dentes, e Pedro Paulada ? ninguém nunca soube o porquê de ele ser chamado assim, pois Seu Pedro era dócil como gatinho manhoso, e nunca teria coragem dar paulada nem mesmo em estaca de aroeira para fazer cerca, muito zelosos com suas pequenas chácaras e modestas casinhas, se orgulhavam muito de suas criações, exibiam tudo o que tinham de melhor para passar "figa" no outro compadre, não demorou para que essa prática gerasse no coração de ambos uma inveja descontrolada, sua vaca era mais gorda, seu jardim florescia mais, cada um contava mais papo que o outro.
Numa noite dessas Juca Pito-de-palha, não suportou o sentimento de inveja de seu compadre que vivia a se gabar de ter comprado um Fusca 77, cor azul calcinha, faróis "Fafá", e decide ir até as dependências do velho amigo e lhe aprontar uma para ver se ele aprende ? bem, era o que dizia a si mesmo a todo o momento, em pensamentos. Então na volta da noite pegou uma velha capa toda feita de lã já desgastada pelo tempo, peluda, toda desfiada, mas que ainda servia para espantar o frio das noites de quaresma, e foi até a chacarazinha do compadre Pedro Paulada e fez a maior zona, quebrou porteiras, derrubou vasilhas do jirau, destruiu todo o jardim, e ao sair passou no galinheiro e sorrateiramente "fez um vale" de meia dúzia de galinhas. Uma bagunça bem feita!, era como ele a avaliava. O que não contava era que passava por lá Dona Glorinha a vagar pelas beiras dos aposentos de seu Pedro para se encontrar às escondidas com inhô Bento, seu capataz, e que a mesma ao ver seu vulto ficou histérica e mudinha da silva de tanto medo, naquela época de quaresma qualquer vulto era assombração e com aquela capa peluda não demorou para que nos boatos da vila o vulto visto por Dona Glorinha, e que aprontou aquela destruição na humilde mas bem cuidada casa de Seu Pedro Paulada fosse o lobisomem. Pronto, esse era o assunto da pequena vila, e se fosse realmente o lobisomem ele não iria se contentar com apenas algumas franguinhas, ele iria voltar para uma presa maior, talvez alguém que perambulasse pelas escuras estradas da noite de quaresma, na vila mal assombrada, que agora já não eram mais tão escuras devido a fase de lua cheia. Neste ponto da história nem mesmo homem valente se atrevia a sair andando sozinho pela noite, e a pobre Vila de Pega com Deus se via tomada pelo medo e o desespero de ser novamente atacada pelo homem lobo. Para agravar ainda mais a situação, seu Juca que não gostava de pouca encrenca tomou gosto pela coisa e aproveitou a oportunidade para pregar umas peças nos velhos compadres. O pânico estava instalado. A população de Pega com Deus, estarrecida com a situação não agüentava mais arcar com os prejuízos provocados pela besta que agora não se contentava com as pobres galinhas, mas também levava pertences que apareciam dando sopa nas casas vítimas de sua algazarra.
Desesperados para por um fim no caos que viviam no assombrado povoado, os corajosos homens da vila que mais do que nunca precisava "Pegar com Deus" resolveram juntar-se para ficar de plantão à noite, de tocaia, com o fim de prender a besta e restaurar a paz da velha vila.
Seu Juca que havia ido a cidade grande para vender alguns de seus pertences recentemente adquiridos, ficou de fora da trama, e só pensava em voltar ainda durante o dia para sair novamente a noite e espalhar mais terror e anarquia. Após se preparar, quando o relógio batia meia-noite em ponto Seu Juca saiu de casa envolto na pele do animal, pronto para aprontar mais algumas, e quando vagava pelas desertas e escuras encruzilhadas de Pega com Deus, escolhendo a casa alvo da noite, foi surpreendido por uma multidão de pás, enxadas e toda sorte de ferramentas perigosas, enfurecidas, com o fim de dar cabo da besta meio homem meio fera, mas ao ser alcançado pela luz das tochas e lampiões dos valentes caçadores foi descoberto, mais do que isso, foi desmascarado e Seu Juca foi condenado a restituir a todos suas perdas, e a ser aprisionado para sempre a sua maldição, que é um coração invejoso e um gênio de moleque levado e travesso.