O princípio do concurso público está consagrado na Constituição da República Federativa de 1988. O art. 37, II, dispões, in verbis:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

            O concurso público é uma forma de garantir que o princípio da impessoalidade e moralidade entre outros sejam efetivados no trato da coisa pública. O critério da meritocracia permite que pessoas alcancem uma carreira pública sem necessitar de apadrinhamentos, trocas de favores ou quaisquer outros meios escusos para exercer um cargo ou emprego público, a não ser do seu próprio esforço.

            José dos Santos Carvalho Filho, comentando sobre o fundamento dos concursos públicos, aduz: “O concurso público é o instrumento que melhor representa o sistema do mérito, porque traduz um certame de que todos podem participar nas mesmas condições, permitindo que sejam escolhidos realmente os melhores candidatos”. 1

                        Os concursos públicos, assim, são marcados pela intensa competitividade. Dessa intensa competitividade decorrem diversos conflitos que, por vezes, são levados ao Judiciário, a fim de que sejam solucionados.

            Diversos são os conflitos que podem surgir na seara da aplicação dos concursos públicos. Para realização dos certames, na grande maioria das vezes, são contratadas empresas especializadas na realização de provas e organização de concursos públicos. E não são raros os casos em que ilegalidades são praticadas por essas empresas, delegadas do Poder Público, na condução desse procedimento administrativo chamado concurso público.

            Dessa forma, baseados na possibilidade de controle jurisdicional sobre a Administração Pública e no princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, consagrado no art. 5º, XXXV, esses conflitos acabam chegando ao Judiciário, que tem, sim, a prerrogativa de controlar ilegalidades que possam surgir no decorrer da aplicação desses certames.

            A súmula 473 do STF pacificou o supracitado entendimento de que o Judiciário, além da própria Administração Pública, exercendo o seu Poder de Autotutela, pode apreciar os atos administrativos eivados de ilegalidades, exercendo o seu controle, in verbis:

Súmula 473/STF - “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. (grifos nossos)

           

Nesse sentido, Clarissa Sampaio Silva afirma: “A invalidação tutela, pois, a ordem jurídica com suas regras e princípios, como o da legalidade, um dos princípios basilares do Estado de Direito, podendo ser feita tanto pelo Poder Judiciário, quando provocado, ou pela própria Administração, por intermédio de seus sistemas de controle interno”2

            Dos vários vícios relacionados ao tema que podem ser controlados e sanados pelo Poder Judiciário, a análise do critério de correção de questões de concursos públicos é uma situação bastante controvertida.

            Um exemplo, em que se tem aceitado que o Poder Judiciário anule a questão em proveito de todos os candidatos, é quando o regulamento do concurso prevê que a prova objetiva deverá apenas uma resposta correta e restam identificadas mais de uma, nenhuma ou todas as questões corretas.

            No entanto, o Poder Judiciário encontra dificuldades de ordem prático-processual para que esse controle seja efetivado, e situações de injustiças e ilegalidades sejam de fato solucionadas.

             Um exemplo pode ilustrar bem a dificuldade acima citada. Suponhamos que uma candidata X se inscreva e preste concurso público para um cargo federal, para o qual concorrem milhares de pessoas de todo o Brasil. O edital do concurso prevê que 10 matérias vão ser cobradas na prova, e, para que o candidato consiga aprovação, ele deve atingir o perfil da metade das questões em todas as matérias. A candidata X fez a prova e obteve uma alta pontuação em todas as matérias, exceto em raciocínio lógico, umas das matérias cobradas.

Por uma questão, ela não logrou êxito no concurso e não ficou dentre as vagas previstas no Edital. No entanto, incentivadas pelos profissionais do raciocínio lógico, ela impugnou uma questão, uma vez que, baseados nos pareceres de vários professores de matemática, uma questão da prova de raciocínio lógico não tinha nenhuma resposta possível (prova de múltipla escolha), passível, assim, de anulação pela própria organizadora.

A organizadora do certame insistiu em manter a questão, e a candidata X, por ser questão de lógica, matéria de ordem objetiva, em que não cabem respostas divergentes, fora, assim, do âmbito da discricionariedade da banca examinadora, ajuizou uma ação ordinária na Justiça Federal pleiteando que fosse nomeado um perito oficial para certificar que a questão era passível de anulação.

Se fosse certificada que a questão deveria ser anulada, e o Judiciário de fato anulasse a questão impugnada, a candidata X ganharia os pontos necessários para sua aprovação e poderia, enfim, exercer o cargo público almejado.

No entanto, dessa ilustração, surge um questionamento sobre a necessidade dos outros concorrentes do certame participarem como litisconsortes necessários no referido processo judicial, uma vez que a sentença influenciaria na órbita jurídica de todos os outros candidatos.

Agapito Machado Júnior, em sua tese de mestrado, cujo tema é Controle Jurisdicional nos Concursos Públicos, comentando sobre a necessidade de litisconsórcio nesses litígios, preleciona (2006, pag. 242):

“Não é difícil de identificar que os demais candidatos do concurso público são litisconsortes necessários em causas que envolvam a revisão de questões de provas, haja vista o vínculo jurídico iniciado entre eles e a Administração Pública por ocasião da inscrição do certame (regime jurídico especial). Ou seja, todos estão submetidos à relação jurídico-administrativa do concurso público (pois se inscreveram no certame), de tal forma que a decisão da Banca Examinadora ou do Juiz acerca de determinada questão de prova certamente trará a repercussão na situação jurídica de todos os candidatos.

Outrossim, faz-se mister que todos participem da relação processual, para que tenham a possibilidade de defesa e manifestação acerca da situação jurídica que será estabelecida após revisão de prova. Assim, em havendo a revisão, todos deverão suportar os benefícios ou prejuízos decorrentes de tal decisão. Ademais, como todos os candidatos integrando a lide, certamente, os critérios adotados para a revisão administrativa ou judicial da prova serão isonomicamente suportados. A jurisprudência dos tribunais sempre foi atenta ao necessário respeito à isonomia.”3

             Data vênia a opinião abalizada do autor, o entendimento no sentido de que só é viável o controle judiciário de questões passíveis de anulação, em casos semelhantes ao supracitado caso sejam trazidos ao processo todos os candidatos nos leva a uma situação de aberração, em desobediência total ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF/88).

            Seria o mesmo que negar ao Poder Judiciária a possibilidade de sanar injustiças decorrentes de arbitrariedades das Bancas Examinadores na feitura de questões com vícios teratológicos, uma vez que é totalmente impraticável a citação de todos os candidatos de concurso aplicado nacionalmente, uma vez que são várias pessoas, de todos os lugares do brasil.

            É inviável, dessa forma, que centenas de pessoas sejam obrigatoriamente partes do processo, desobedecendo, também, o princípio da celeridade processual, insculpido no art. 5º, LXXVIII, CF/88, in verbis: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

            O cerne do presente estudo é, em síntese, apresentar meios de como operacionalizar, em termos processuais, casos como o exemplo supracitado, compatibilizando o princípio da inafastabilidade da jurisdição, o princípio da celeridade e o princípio da isonomia.

            Há dois meios processuais idôneos para que o princípio da isonomia seja aplicado aos processos em que se discutem ilegalidade nas realizações das provas, sem comprometer o princípio da celeridade e da inafastabilidade da jurisdição: intervenção do Ministério Público e publicação de editais para o conhecimento dos interessados a participarem do processo.

            O art. 127 da Constituição Federal expressa a função do Ministério Público, in verbis: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”

            Assim, o Ministério Público, como defensor da ordem jurídica, concederia ao processo uma legítima representação, sem a necessidade de que centenas de pessoas – às vezes milhares – necessariamente devam participar do processo.

             O outro meio processual no sentido de dar representação aos possíveis interessados é a publicação de editais, para, caso queiram participar do processo, o quesito comunicação processual seja preenchido.

            Esses meios são usados no processo judicial de desapropriação, previsto no Decreto-lei nº 3.365/41.

            A desapropriação é o procedimento de direito político pelo qual o Poder Público transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade pública ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização.4

                        Ocorre a utilidade pública quando a transferência do bem se afigura conveniente para a Administração. Já a necessidade pública é aquela que decorre de situações de emergência, cuja solução exija desapropriação do bem5

            Assim, como é uma ação por meio do qual se pleiteia a aquisição sui generis de uma propriedade, direito real, exercido, como a doutrina clássica ensina, em face de todos, faz-se necessário que seja dada oportunidade a quem interessado for de participar do processo.

            Dessa forma, analogicamente, importar-se-iam os meios da ação de desapropriação para os casos em que se pleiteia, através de um processo judicial, anulação de questões de concursos.

            Com isso, todos os outros candidatos teriam seus interesses representados, através do Ministério Público, e, caso quisessem participar diretamente, a eles seria dada oportunidade, pois, por meio dos editais, eles poderiam integrar ao processo.

            No entanto, não haveria caso de litisconsórcio necessário, e, sim, um litisconsórcio facultativo, a fim de que o princípio da inafastabilidade e da celeridade fossem respeitados, sendo o processo judicial eficaz como instrumento para atingir o seu objetivo final: sanar as ilegalidade e injustiças que possam surgir na condução dos concursos públicos.

 

1 – FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual do Direito Administrativo. 20ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.

2 – SILVA, Clarissa Sampaio. Limites à invalidação dos atos administrativos. São Paulo: Max Lomonad, 2001, p. 16.

4 - FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual do Direito Administrativo. 24ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 20011

5 – HELY LOPES MEIRELLES (OB. Cit. P. 514)