O legado do Plano Real para a economia brasileira


1. A conjuntura pré-Real

No início dos anos 1990 o Brasil passava por graves problemas macroeconômicos: estagnação, aumento brutal da dívida externa, expressiva dívida interna e, sobretudo, a inflação, que vinha há mais de uma década sendo sucessivamente arrolada. O final dos anos 1980 e início dos 1990 marca uma época em que a inflação destrói qualquer tentativa de crescimento econômico. Ou seja, caso não se resolva a inflação, o país não crescerá de maneira sólida e sustentada.

Sucederam-se então inúmeros planos com a finalidade de debelar a temida inflação. O primeiro deles foi o Plano Cruzado, no governo Sarney, ainda em 1985, baseado em políticas heterodoxas elaboradas por um grupo de economistas da PUC-Rio . Depois, com o fracasso desse programa, vieram o Plano Cruzado II, Bresser, Verão (esses ainda no governo Sarney) e Collor.

Nenhum deles foi eficiente em conter a inflação. Alguns tinham um sucesso efêmero de poucos meses enquanto outros já mostravam sinais de desgaste logo que eram lançados. A população, inclusive, já não depositava confiança nos gestores das finanças públicas. A inflação brasileira chegou a atingir 1.764.86% no ano de 1989, 1.585,18% em 1990 e 1.149,06% em 1992 . A atividade produtiva saía extremamente prejudicada enquanto a especulação só piorava a situação. A pasta da Fazendo e do Planejamento mudavam constantemente de mãos, passando desde acadêmicos renomados ao estilo Bresser Pereira até ilustres desconhecidos fora do meio acadêmico, como Zélia Cardoso de Mello .

Internacionalmente, a globalização ganhava corpo e o neoliberalismo era a ideologia da vez. Os fluxos de mercadorias, produtos e serviços aumentavam freneticamente bem como a inovação tecnológica. O Estado passou a ser visto como sinônimo de má gestão e de práticas administrativas inescrupulosas. Propagou-se a diminuição da esfera de ação dele através do neoliberalismo, inaugurado por Friedman. Equilíbrio do orçamento público, corte na emissão de moedas, superávit primário, privatização de empresas estatais com desempenho abaixo do esperado eram as medidas propostas pelos neoliberais.

O Brasil, com inúmeros problemas estruturais e imerso numa crise inflacionária, assumiu o discurso neoliberal e já no governo Collor começou a implantar medidas conforme essa ideologia. A abertura comercial e as privatizações que se iniciaram com o "caçador de marajás" seriam amplificadas e levadas a cabo no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Esse sociólogo, por sinal, assume a pasta da Fazenda em 1993 no governo Itamar Franco e, apoiado em novas receitas macroeconômicas, lança um novo Plano econômico, o Plano Real, cuja lógica diferia dos anteriores. Era uma forma inédita de se combater a inflação brasileira.

2. O Plano Real e seus objetivos

O Plano Real objetivava o combate à inflação e promover a estabilidade monetária. Ele previa criar um indexador econômico, a URV (Unidade Real de Valor), corretor de salários, preços e aluguéis. Como o cruzeiro estava se derretendo devido às taxas astronômicas de inflação, esse indexador surgiu como uma moeda virtual provisória que faria a transição entre o cruzeiro em decomposição e o real. Assim, toda a atividade econômica brasileira foi indexada e diariamente corrigida, de modo que a URV absorvia a inflação, a fim de eliminar o caráter inercial da mesma (a inflação de hoje é reflexo da inflação passada).

Num primeiro momento, o cruzeiro real foi atrelado à URV e foi diariamente desvalorizado, idêntica à taxa de inflação, o que significava a manutenção do poder de compra da moeda. Exemplificando: se temos uma taxa mensal de inflação de 10% e a desvalorização da moeda, no mesmo período, também é de 10%, o poder de compra se mantém. Em uma segunda etapa, o cruzeiro real desapareceria e seria substituído pelo real, a uma taxa paritária com o dólar, ou seja, R$ 1,00 = US$ 1,00 = 1 URV (que equivalia a CR$ 2.750,00- inflação acumulada no período). Como a inflação inercial já tinha sido absorvida pela URV, o Real estaria livre de pressões inflacionárias.

3. Conseqüências

"O Plano foi extremamente bem sucedido em debelar o processo inflacionário, apoiando-se também em duas âncoras, ou pontos de apoio: a manutenção de uma taxa de juro real elevada (em torno de 20% anuais) e uma taxa cambial da ordem de R$ 1,00 = US$ 1,00" (BARROS & FILHO, 1999, p.190).

Esses fatores acabaram por acelerar a atividade produtiva nacional, com a ampliação do poder de compra da população de baixa renda, beneficiada pelo câmbio paritário. Esse tornava as importações excessivamente baratas e competitivas no mercado doméstico, o que forçava a indústria nacional a melhorar sua produtividade frente à concorrência estrangeira. Ocorreu então a popularização do consumo, em virtude da significativa ampliação das vendas do varejo, do aumento nas vendas a prazo, da elevada propensão marginal a consumir das famílias brasileiras (como tinham alta carência material, qualquer incremento na renda implica em aumento do consumo) e dos baixos rendimentos das aplicações financeiras, sobretudo as de renda fixa.

Se, no mês de junho de 1994, o INPC alcançava 48,24%, em setembro do mesmo ano, não passava de 1,4% . O Ministro FHC não podia esperar resultados melhores. Com tamanho sucesso, ele se lança como candidato pelo PSDB à presidência da República e vence as eleições, dando, a partir de seu mandato, continuidade ao Plano Real e à implantação das políticas neoliberais.

Entretanto, alguns desses benefícios imediatos do Plano gerariam contradições avassaladoras para o país nos próximos anos. Vejamo-nos de perto. Uma moeda supervalorizada em relação ao dólar gerou um choque de oferta na economia brasileira devido à enxurrada de produtos importados. Se, num primeiro momento, isso contribuiu decisivamente para debelar a espiral inflacionária, também foi responsável por "roubar" fatias de mercados da indústria nacional, pressionando-a a produzir mais e melhor (isso significa diminuir os custos de produção através da utilização intensiva de moderna tecnologia). As empresas que souberam e tiveram capacidade de se adaptar a esse novo cenário se sobressaíram, as que não tinham condições de acompanhar esse processo faliram ou foram incorporadas.

Desse modo, a falência de inúmeras empresas brasileiras e o subseqüente aumento dos índices de desemprego foram duas conseqüências nefastas das políticas do governo FHC. Com isso, também houve a terciarização da economia (inchaço do setor terciário) em razão da explosão da economia informal, além da banalização da violência e do crescimento espantoso de movimentos sociais, sobretudo o MST.

Não obstante, ocorreu uma progressiva desnacionalização da economia (BARROS & FILHO). A indústria nacional perdeu força frente à estrangeira. As privatizações do governo FHC foram significativas para elevar o grau de participação das empresas externas no Brasil. O Estado ficou então mais vulnerável aos fluxos de capitais, mercadorias e serviços internacionais. Ficamos mais vulneráveis à crises em outros países. Por isso, fomos tão afetados pela crise asiática (1997), russa (1998), argentina (1999), entre outras.

O Estado perdeu espaço e poder de pressão em muitas decisões econômicas, que passaram a ser determinadas pelo mercado globalizado, por bancos internacionais, por especuladores, por bilionários das comunicações, dos transportes, da energia, etc. Nós passamos a depender cada vez mais dos smart money e dos hot money, isto é, capitais voláteis de curto prazo de especuladores que só servem para cobrir o rombo de nossa balança comercial. Tais capitais vêm para cá em busca da alta rentabilidade proporcionada pelos títulos públicos .

Para piorar ainda mais a situação, com os sucessivos déficits na balança de pagamentos (devido à paridade dólar/real) e com a "queima" de nossas reservas internacionais, o governo foi obrigado a assumir e aumentar o financiamento externo. Nesse período nossa dívida externa deu mais um salto. Nosso passivo externo líquido atingiu nada menos do que 256 bilhões de dólares em março de 1998 .

3. Considerações Finais

Considerando-se todas as informações já apresentadas a partir do confronto entre diferentes autores do Plano Real, podemos estabelecer algumas conclusões. Se o objetivo da nova moeda era debelar o processo inflacionário, que já vinha obstaculizando o crescimento sustentado da economia desde meados de 1974, o Plano Real foi extremamente eficiente. Com a criação de um indexador que absorvesse as pressões inflacionárias e a conseqüente criação de uma nova moeda livre dos problemas da anterior, conseguimos superar esse problema. Entretanto, as condições que permitiram a superação da inflação geraram a médio e longo prazos outros tantos problemas, como falências em massa, desemprego, problemas sociais de todas as ordens, desnacionalização da economia, aumento da dívida externa, maior vulnerabilidade aos fluxos de capitais internacionais, etc.

Assim, o Plano foi ágil e rápido em findar um problema que asfixiava o crescimento econômico brasileiro há duas décadas. Todavia, estabeleceu condições para se incrementar outros tantos problemas sociais e econômicos que poderiam ser minimizados ou diminuídos caso a política subseqüente ao plano fosse adotada por menos tempo ou de uma forma diferente.

4. Referências Bibliográficas

BARROS & FILHO. Economia Brasileira Contemporânea. s.l. :Contexto, 1999.
CORSI, F. L. -O Plano real: um balanço crítico (1994-1998). In: Cadernos da FFC. Marília, v.8, n.2, p. 13-28, 1999.
FILGUEIRAS, L. História do Plano Real. 3ª edição. São Paulo: Boitempo, 2000.
MERCADANTE, A. et al. O Brasil pós-Real: a política econômica em debate. Campinas: UNICAMP, 1997.
SUZIGAN, W. & SZMRECSÁNYI (org.), T. História Econômica do Brasil Contemporâneo. 2ª Edição. São Paulo: Edusp: 1993.