O JOGO DO PODER DE DIZER A "VERDADE" NO DIREITO:
uma construção anterior ao processo.


Karolinne França Mendes
Sergianny Pereira da Silva

Súmário: 1Introdução; 2 A constituição da Verdade e a falseabilidade das provas; 3 A Verdade determina as provas, o discurso e a persuasão; 4 Do discurso e provas emergem uma relação de poder que constrói uma Verdade; 5 Direito: instrumento de poder; Sentença: chancela de uma Verdade; 6 Conclusão. Referências

RESUMO

Apresenta-se como falaciosa a noção de Verdade absoluta dos fatos, expondo-se que no processo digladiam "verdades" construídas subjetivamente pelas respectivas partes e que a partir delas orientam a produção de provas e do discurso a serem utilizados com o fim de promover o convencimento do magistrado. Nota-se que o Direito é um espaço de disputas, não apenas dos profissionais da área, mas dos indivíduos que o utiliza, enquanto instrumento de poder, transpondo este espaço de disputas à realidade social na intenção de impor como Verdade determinada visão de mundo.

PALAVRAS-CHAVES
Verdade. Processo e Direito. Disputa. Prova. Discurso

1 INTRODUÇÃO

A seguinte exposição pretende analisar a "verdade" que pode ser atingida no
processo. Analisando em que medida as relações sociais podem intervir na determinação desta "verdade", posto que disputas são deflagradas no intuito de poder

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*Paper apresentado à disciplina de Processo de Conhecimento II, ministrada pelo prof. Hugo Passos, no Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

dizer o que esta seria na realidade.
Visto que o conceito de Verdade não se revela como algo absoluto, abre-se ensejo para o reconhecimento de "verdades", construídas e respaldadas por provas e discursos selecionados.
Para isto, é necessário partir da concepção de que a verdade formal, a alcançada pelo resultado do processo, não corresponde aos fatos que realmente ocorreram na linha histórica da vida das partes. Então no sentido de demonstrar como a "verdade" é construída subjetivamente por quem presencia o fato segue, neste sentido, a exposição.

2 A CONSTITUIÇÃO DA VERDADE E A FALSEABILIDADE DAS PROVAS

É meio que automático associar a idéia de prova no Direito a um instrumento que tenta demonstrar um fato no mundo concreto, revelando-o a fim de influenciar no convencimento do magistrado, como se tal fato pudesse ser revivenciado, o que parece-nos ser uma façanha impossível de ser concretizada.
Assim, Verdade e Mentira como se demonstrará no presente trabalho são, em síntese, lados de uma mesma moeda, vez que a determinação de um ou outro dependerá do contexto social no qual são produzidos. Por esta mesma razão tais conceitos se fazem indefiníveis, posto que serão determinados pelo contexto, pelos agentes que os produzem e utiliza e pelo momento histórico-social no qual estão inseridos.
Desta forma, as provas utilizadas no curso de um processo não deixam de demonstrar uma tentativa de invocar uma Verdade a qual se pretende alegar. Como bem expõe Marinoni, "a ideia de prova evoca, naturalmente, e não apenas no processo, a racionalização da descoberta da verdade."1
A própria concepção clássica de provas reserva a estas uma capacidade de atestar a veracidade de algum fato, por meio delas seria possível reconstruir os fatos narrados pelas partes. Porém, esta noção é, por demais ilusória, já que como se vai demonstrar, a verdade é, pois, em essência, inatingível, fato brilhantemente atestado por Marinoni, nos seguintes termos:

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1 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. 7. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008 (Curso de Processo Civil, v.2). p. 251

O que se quer dizer, mais precisamente, é que a essência da verdade é inatingível. E não apenas pelo processo, mas por qualquer mecanismo que se preste a verificar um fato passado. Apesar disso ser absolutamente óbvio em outros setores do conhecimento, o direito não consegue se livrar do peso da idéia de que o juiz, para aplicar a lei ao caso concreto, deve estar "iluminado pela verdade. 2

Esta concepção apresenta-se, então, muito mais como um dogma que está incorporado ao Direito e à prática processual. Crê-se (de forma errônea) que, por meio do processo, se traçaria, através das provas incorporadas a ele, um caminho para o encontro da verdade. Neste sentido, as provas produzidas pelas partes permitiriam a descoberta da verdade dos fatos. Ora, mas como tal fato seria possível, pois, a exemplo do que já fora mencionado, a verdade de fatos pretéritos são inalcançáveis de forma absoluta e, as provas apresentadas são orientadas no sentido de fortalecer a tese e os argumentos discursivos sustentados pela respectiva parte?
Neste sentido, necessário se faz compreender que as provas têm como finalidade promover o convencimento do juiz, logo toda ação das partes se orientarão para este fim e, não para demonstrar o fato tal qual ocorrera, mas para reafirmar as alegações feitas e sustentadas, o que reflete nas provas utilizadas, no discurso adotado e na legitimidade de que gozam os agentes que o diz.

Inegável, porém, é que o ato de exercer a palavra implica, sempre, uma postura discursiva criada por uma situação retórica específica (acusar ou defender, criticar ou enaltecer, condenar ou absolver, propor ou explicar, etc) que, enfim, pretende estabelecer critérios possíveis para revelar o existir, impor uma posição que seja capaz de, pela força retórica compreendida, levar o outro a acreditar que uma crença particular sobre um evento do mundo pode transforma-se em consenso.3

Assim, as provas produzidas ao longo do processo são falseáveis, não se pode esperar que as mesmas sejam capazes de demonstrar o fato discutido tal qual ele ocorreu, de forma absoluta. O que elas podem atestar é a veracidade das alegações apresentadas sob uma ótica de análise da questão, claro que aqui estarão embutidas as pretensões pessoais das partes. E, justamente, sobre esta questão que se pretende orientar a presente exposição.

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2 MARINONI, Luiz Guilherme. A questão do convencimento judicial. Disponível em<< http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5966>>. Acesso em :<<16. Abril.2010>>.
3 SILVA, Silvio Luis da. O movimento passional na construção de uma "verdade" jurídica. Disponível em<< www.cipedya.com/web/FileDownload >>. Acesso em: <<10. Abr.2010>>
3 A VERDADE DETERMINA AS PROVAS, O DISCURSO E A PERSUASÃO

Feita inalcançável a Verdade em si no processo, o que existe no mesmo seriam "verdades" que tentam se impor para determinar o convencimento do magistrado. É, neste sentido que as provas são plausivelmente criadas para persuadir, bem como o discurso pode ser restringido ou ampliado para criar mecanismos que mantenham poder e desenvolver artifícios persuasivos fortes o suficiente para inclinar a decisão do magistrado naquele sentido. Sendo assim, "no jogo discursivo, ethos e pathos se digladiam para determinar o falso do verdadeiro, o puro do impuro, o justo do injusto, o certo do errado, o dever do direito, o inútil do nocivo, o humano do desumano".4

A reconstrução de um fato ocorrido no passado sempre é influenciada por aspectos subjetivos das pessoas que o assistiram, ou ainda daquele que (como o juiz) há de receber e valorar a evidência concreta. Sempre, o sujeito que percebe uma informação (seja presenciando diretamente o fato, ou conhecendo-o através de outro meio) altera o seu real conteúdo, absorve-o à sua maneira, acrescentando-lhe um toque pessoal que distorce (se é que essa palavra pode ser aqui utilizada) a realidade.5


E, em geral, isto é feito de boa-fé, vez que o processo traz as teses contrárias das partes, que correspondem a "verdade" como cada uma delas a entende. E com base nessa "verdade", permeada de subjetivismo, que cada parte deseja confirmar como certo o seu ponto de vista, claro que isto se dará por meio de um movimento discursivo minuciosamente planejado, que, sem dúvida, sedimenta os valores que compõem as relações sociais nas quais cada uma das partes se encontram inseridas.
Neste sentido, é essa "verdade" que vai orientar a produção de provas técnicas, estando estas vinculadas ao discurso construído pela tese a ser defendida, sendo a isto somado uma retórica convincente, além de uma interpretação de leis e dispositivos legais que respaldam tal tese. Todo este esforço é culminado para persuasão ou convencimento do juiz.
Posto isto, cabe ressaltar que é impossível ao juiz encontrar a Verdade dos fatos, o que não significa dizer, contudo, que a decisão do magistrado desvincule de uma convicção de certeza.
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4 Id. Ibdem
5 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. 7. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008 (Curso de Processo Civil, v.2) p. 256


É evidente que a impossibilidade de o juiz descobrir a essência da verdade dos fatos não lhe dá o direito de julgar o mérito sem a convicção da verdade. Estar convicto da verdade não é o mesmo que encontrar a verdade, até porque, quando se requer a convicção de verdade, não se nega a possibilidade de que "as coisas não tenham acontecido assim". Lembre-se que Calamandrei, após afirmar que "a natureza humana não é capaz de alcançar verdades absolutas", salientou que "é um dever de honestidade acentuar o esforço para se chegar o mais perto possível dessa meta inalcançável" 6

Assim, tudo o que é apresentado como real no processo é, na realidade, construído como estratégia para impor (entenda como desejar que aquela certeza seja aceita) uma verdade, orientando o discurso para desconstruir a "verdade" defendida pela tesa opositora.

4 DO DISCURSO E PROVAS EMERGEM UMA RELAÇÃO DE PODER QUE CONSTRÓI UMA VERDADE

Fica nítido que no processo se estabelece um debate jurídico, no qual seus agentes articulam-se sempre com o objetivo de convencer o magistrado, valendo-se para isto de um arsenal teórico impregnado de seus valores e que não estão alheios as relações de poder que possuem no seio da sociedade.
A prova "constitui-se, ao que parece, em meio retórico, indispensável ao debate jurídico. O processo deve ser visto como palco de discussões (...) e o objetivo não é a reconstrução do fato, mas o convencimento dos demais sujeitos processuais sobre ele".7 Desta forma, a decisão seria resultado da boa argumentação desenvolvida por uma das partes.
Porém, o que se pretende demonstrar é que o discurso que defenderá a "verdade" está associado a relações de poder oriundos da própria sociedade, na medida em que o próprio enfoque dado a determinados aspectos do Direito variam em consonância com estas.
Ora, as partes não estão neutras ou afastadas de um contexto social, mas na realidade, a "verdade" que cada uma expõe ao longo do processo carrega uma carga subjetiva de como a realidade é observada e a isto está relacionado as relações sociais
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6 MARINONI, Luiz Guilherme. A questão do convencimento judicial. Disponível em<< http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5966>>. Acesso em :<<16. Abril.2010>>.
7 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. 7. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008 (Curso de Processo Civil, v.2). p. 258
das quais as partes são sujeitas. Fato este que determinará, inclusive, o discurso adotado, e definirá a legitimidade que lhe será atribuída, vez que determinará a seleção dos agentes técnicos competentes para dizer aquela "verdade".
Os conceitos defendidos e explorados nas teses dos processos são oriundos de uma ideologia social compartilhada entre a parte e outros indivíduos da sociedade, dependendo das relações desenvolvidas na estrutura deste instituto. Ora, o discurso se faz recheado de ?paixões?, de subjetividades, de pré-compreensões de realidade legitimadas em ou por algum grupo social antes mesmo de ser formalizado o processo, o que garante ou reserva a possibilidade de aceitação deste discurso para a promoção do convencimento do magistrado.
É inegável que os indivíduos são condicionados por determinantes materiais ou mesmo simbólicas que determinam, inclusive as relações que estes desempenham e os significados que atribuem aos fatos e fenômenos que os atingem. No Direito, isto é muito perceptível, vez que é no seu campo que os indivíduos disputam a possibilidade de atribuir os seus sentidos a um determinado fato, a fim de torná-lo "verdade" e orientar, até mesmo, a uma possível declinação que deva tomar as decisões produzidas pelo Direito.
[...] os condicionamentos materiais e simbólicos agem sobre nós (sociedade e indivíduos) numa complexa relação de interdependência. Ou seja, a posição social ou o poder que detemos na sociedade não dependem apenas do volume de dinheiro que acumulamos ou de uma situação de prestígio que desfrutamos por possuir escolaridade ou qualquer outra particularidade de destaque, mas está na articulação de sentidos que esses aspectos podem assumir em cada momento historio8.

Como já mencionado acima, o campo jurídico é um lugar de disputas, onde concorrem pelo monopólio do direito de dizer o direito, nele agentes revestidos de competência social e técnica defrontam-se para ver reconhecida esta capacidade de interpretar um corpus de textos que, na realidade, consagram uma visão legítima do mundo social9 e, no caso do advogado, é a "verdade" de seu cliente. E isto acaba perpassando a interpretação que é dada ao texto jurídico, pois como bem explica Boourdieu: "no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial"10.
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8 SETTON, Maria da Graça Jacintho. Uma introdução a Pierre Bourdieu. In: CULT. n°128. Ano 11. São Paulo.p. 47-50
9 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 3. Ed. Tradução: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.p. 212
10 Id Ibidem. P. 213.
Diante do exposto se constata que tudo no Direito é orientado pela disputa de dizer qual a "verdade", por meio das provas e do discurso, fazendo do mesmo um instrumento de poder alvo de muitas disputas.

5 DIREITO: INSTRUMENTO DE PODER; SENTENÇA: CHANCELA DE UMA VERDADE

Posto a exposição acima, não é impossível conceber o Direito como um campo que gera legitimidade e autoridade àqueles que sabem usá-los em seu favor ou de outrem. Apresenta-se, pois, como um instrumento de poder, vez que sua imperatividade é reconhecida em todo o seio da sociedade.
Sendo assim, os profissionais do direito ao disputarem suas teses estão, igualmente disputando a "verdade" das respectivas partes. Ou seja, a questão da verdade no campo jurídico transborda as margens do direito e chegam às disputas sociais estabelecidas para, a exemplo, definir o que é justo e o que é verdadeiro.

O conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de uma luta simbólica entre profissionais dotados de competência técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das <<regras possíveis>> e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa; o efeito jurídico da regra, quer dizer, a sua significação real, determina-se na relação de força específica entre profissionais, podendo-se pensar que essa relação tende a [...] corresponder à relação de força entre os que estão sujeitos à jurisdição respectiva11


E todo este jogo de dizer o que é "verdade" que, hodiernamente é discutido na ciência como um todo (também não podendo o Direito se excluir de fazê-lo) se reflete no ato do proferimento da sentença, posto que esta chancela a "verdade" mais bem argumentada, embasada ou, como melhor se exprime nas seguintes palavras de Bourdieu: "o veredicto judicial, compromisso político entre exigências inconciliáveis que se apresenta como uma síntese lógica entre teses antagonistas, condensa toda a ambigüidade do campo jurídico."12
Sendo assim, vale mencionar que a verdade no processo é, pois, construída a partir da força e pertinência que uma prova ao ser apreciada pode ser capaz de
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11 Id Ibidem. p. 224
12 Id Ibidem. p. 228


proporcionar a uma tese jurídica bem elaborada. Cabendo ressaltar o papel importante que recai sobre a atividade da advocacia, vez que serão estes profissionais os manipuladores do conteúdo jurídico permitido e que abre ensejo para construção retórica das mais variadas e ricas possíveis. Por esta razão, a formação ética de tais profissionais é fundamental para zelar pelo bom funcionamento social e por uma evolução jurídica pautada nos parâmetros mínimos de moralidade que se espera de tal fenômeno.

6 CONCLUSÃO

O presente trabalho assim exposto, espera ter sido capaz de demonstrar que no processo bem como no Direito, não se é possível falar em Verdade dos fatos em seu caráter mais absoluto. O que se pode verificar são "verdades" que as partes litigantes de um processo podem trazer ao mesmo, uma vez que os fatos pretéritos que as atingiram são sempre absorvidos a partir de seus pontos de vistas, o que, inevitavelmente, se contamina, de suas subjetividades. Além disto, o processo se faz apresentar como um palco no qual estas "verdades" disputam o reconhecimento mediante uma sentença do juiz que se revele favorável a mesma. Por esta razão, são estas "verdades" que orientam a produção de provas, sempre levantadas com o objetivo de demonstrá-las e de fundamentar a tese apresentada pelo discurso eleito. Assim, as relações que podem ser vistas, sobre um prisma mais restrito, na área jurídica, transpassam estes limites, para serem determinadas por relações de poder que já se estabeleceram antes do processo ser iniciado e que disputam espaço e legitimidade no campo social, jurídico e científico.












REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 3. Ed. Tradução: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

MARINONI, Luiz Guilherme. A questão do convencimento judicial. Disponível em: << http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5966>>. Acesso em: <<16. Abril.2010>>.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. 7. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008 (Curso de Processo Civil, v.2).

SETTON, Maria da Graça Jacintho. Uma introdução a Pierre Bourdieu. In: CULT. n°128. Ano 11. São Paulo.p. 47-50.

SILVA, Silvio Luis da. O movimento passional na construção de uma "verdade" jurídica. Disponível em<< www.cipedya.com/web/FileDownload >>. Acesso em: <<10. Abr.2010>>.