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O JEITINHO BRASILEIRO E A CORRUPÇÃO

A origem da corrupção no Brasil está diretamente ligada ao já tão famoso “jeitinho brasileiro”. Este famoso “jeitinho” parece ser algo único, ou seja, não aparece este traço de caráter em nenhum outro povo vizinho. Pode-se até especular que em lugar algum do mundo haja a prática do “jeitinho brasileiro”.

Mas de que raiz deriva este traço de caráter tão peculiar e quais os motivos mesmos que levaram tal povo a se tornar tão singular? Seriam as heranças genéticas das três etnias que colaboraram de alguma maneira para formar o povo brasileiro? Será que o “jeito malandro” de ser do brasileiro, o jeito alegre e sorridente tem a ver com a herança genética do negro africano, dançarino de samba e jogador de capoeira por excelência, do jeito de lidar com a natureza advinda dos indígenas ou do “jeito pragmático” do branco português?

O “paradigma de Gérson” diz que “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo!” Será que o que liga de maneira tão inextricável o “jeitinho brasileiro” à corrupção tão intensa, tão imensa e tão preconizada, tão veiculada, é esta vontade imensa que o povo brasileiro tem de querer “levar vantagem em tudo”?

A título de exemplo, observe-se a seguinte cena muito comum na festa de carnaval do Brasil: vê-se um carioca qualquer (poderia ser uma pessoa de qualquer Unidade da Federação) vendendo alguma coisa para um estrangeiro (denominado pelo povo brasileiro de “gringo”) com um preço muito superior àquele praticado se ele estivesse vendendo para um brasileiro (é o famoso preço para o turista), sorrindo à toa acreditando piamente que está enganando o fulano. O “gringo” por sua vez também está sorrindo à toa. Por que nesta cena há dois personagens sorrindo à toa? No caso do primeiro já está descrito o motivo na aplicabilidade mesma do “jeitinho brasileiro”, mas e o segundo? Será que ele também não está sorrindo à toa porque o país dele explora o

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Brasil até a última gota de sangue de seus trabalhadores e, quando ele vem passear pelo país deixando por aqui alguns poucos dólares ele apenas está devolvendo de maneira rala e superficial (colaborando assim para com a prostituição infantil no Brasil e auxiliando, mesmo que sem querer, a denegrir a imagem do país no exterior) aqueles dólares que o Brasil ajudou-o a ganhar? Quando se assiste a tal cena não se tem a sensação de que alguém está enganando alguém? Mas quem estará sendo enganado de verdade? O brasileiro, que não consegue perceber este fenômeno, dado que está tão arraigadamente preso ao “paradigma de Gérson” que não consegue perceber o que verdadeiramente está acontecendo ou o “gringo” que, nesta cena, está sim deixando alguns dólares a mais por um produto que custa muito menos?

O objetivo deste texto é tentar estabelecer uma conexão entre a corrupção galopante que existe no Brasil e o “jeitinho brasileiro”, suas origens, causas e efeitos. O Brasil pode não ser atualmente o país mais corrupto do planeta, mas com certeza a malversação do dinheiro público, o nepotismo, a prevaricação estão presentes em alto grau aqui no país.

Infelizmente, o lugar que mais facilmente se pode observar a presença mesma da corrupção é entre os “donos do poder” (que podem ter diversas origens), mas neste caso, fala-se dos políticos profissionais que habitam a capital do país, Brasília, e que muitas vezes nem fazem muita questão de esconder a prática (que parece já ser um hábito nefasto entre aqueles que deveriam representar honestamente o povo que os escolheu, na esperança, tantas vezes vã, de que aquele escolhido seria um benfeitor do povo). Há exceções e ainda bem que elas ainda existem. Entretanto, o grosso da população de políticos brasileiros é constituído por homens (às vezes, mulheres) que não possuem escrúpulos e apoderam-se do dinheiro público sem maiores delongas, sem cerimônias. Somente os mais tímidos (e que fique claro, timidez aqui não é um aspecto

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positivo) é que têm um pouco de escrúpulo ao tomar posse daquilo que não lhes pertence.

A corrupção, no entanto, não atua somente no campo da política. Atua também no campo econômico, cultural, social, atua dentro das instituições religiosas, clubes etc. O casamento da corrupção com o poder, no entanto, é evidente, patente e muito forte. É através deste casamento que ela se espalha fazendo suas vítimas em todas as suas áreas de atuação. As vítimas, de maneira geral, fazem parte daquele grupo escolhido para pagar as contas, o povo. Mas povo aqui é aquele grupo formado de pessoas humildes, pobres e miseráveis, os desvalidos ou “descamisados”, “os pés descalços”.

As pessoas abastadas, ricas, milionárias, na maioria das vezes, têm como recorrer a um bom advogado; elas não estão protegidas da corrupção, mas os efeitos nefastos de tão simpática dona não prejudicam tanto esta parcela da população por diversos motivos: a justiça lenta não ajuda quem não tem dinheiro, mas ajuda quem pode pagar, não sendo, por vezes, cega como manda o figurino; quando não houver jeito de escapar, o rico pode mudar-se de país ou até mesmo migrar seu dinheiro; na pior das hipóteses, ele mesmo vira um corruptor. Afinal, “todo mundo tem um preço e basta saber qual é este preço”. Daqui deriva-se outra faceta da corrupção: o dinheiro traz o poder e o poder traz a corrupção. Como diria Faoro: “[...] O poder, se não corrompe, amansa e infunde o esquecimento das loucuras da mocidade. [...]”1

Este “jeitinho brasileiro” teve uma origem assim como a corrupção. Para trilhar-se o caminho destes dois componentes que parecem inerentes à índole do brasileiro, há a necessidade de recuar-se no tempo, até o período de formação de Portugal, passando pelas medidas colonizadoras do território brasileiro até chegar à

1 Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. São Paulo: Editora Globo, 2000, v. 1, p. 367.

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prática atual da corrupção e do “jeitinho brasileiro” cujo efeito mais imediato destes dois componentes é por vezes nefasto e prejudica por demais a estabilidade política.

É provável que daí parta a ideia da confusão muito comum entre os brasileiros de que democracia está para liberalidade e anarquia assim como ditadura está para governo forte e organizado, a ponto de ouvir-se muito constantemente da boca das pessoas que o Brasil de hoje está uma bagunça geral porque é regido por um regime democrático, se fosse o regime ditatorial dos militares não estaria deste jeito. É como se não houvesse corrupção durante o governo dos militares.

Neste passo, passar-se-á a Portugal. O reino de Portugal tem suas origens com o reinado de Afonso Henriques, no ano de 1140. A região estava desde priscas eras nas mãos dos mouros muçulmanos. O primeiro passo para fundar um reino cristão na região devia ser, portanto, tomar as terras dos mouros e estabelecer em seu lugar os praticantes da religião de Cristo.

Era bastante comum entre os guerreiros daquele período a prática do pagamento pelos serviços prestados com o ato de aquinhoá-los com porções de terras dos povos ora conquistados. Este costume derivava dos hábitos dos “povos bárbaros” que dominaram de forma avassaladora as terras outrora pertencentes ao decadente Império Romano do Ocidente.

Assim, não poderia ser diferente com Afonso Henriques. É lógico que o rei era dono virtual de todas as terras do seu reino, mas os nobres guerreiros que haviam sacrificado suas horas de descanso com seus filhos e esposas, arriscando a vida aos serviços do rei mereciam uma porção das terras recém-conquistadas.

É claro que para tanto precisavam sobreviver às guerras constantes, mas era uma forma nobre de deixar um patrimônio considerável como herança para os filhos, e, naquela época, terras eram consideradas verdadeiras fontes de riqueza e poder.

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O poder aqui suposto, era o poder de governar em suas terras, em seus domínios, de forma absoluta, sem se preocupar com uma obediência cega ao rei; ou seja, em seu feudo, o senhor feudal reinava absoluto sem prestar contas de sua justiça ou de sua administração. Quando o rei convocava para alguma guerra, aí sim o senhor feudal deveria obedecer. Parece que neste tipo de prática já podem ser observados os embriões da corrupção.

Assim, o Estado português será, em sua essência, um Estado patrimonialista e ministerialista, como afirma Raymundo Faoro:

O renascimento jurídico romano, estimulado conscientemente para reforço do Estado patrimonial, serviu de estatuto à ascensão do embrionário quadro administrativo do soberano, gérmen do ministerialismo. [...]2

Estes dois componentes do Estado português serão sua marca administrativa ao longo de todo o período medieval e atingirá, posteriormente, as suas possessões de além-mar. Logo se vê que governar significava, aos olhos dos soberanos portugueses, distribuir patrimônios e cargos administrativos. Para tanto, bastava ser “amigo do rei” ou seu fiel escudeiro.

Os hábitos germânicos de doação de regalias pelos serviços prestados foram adotados posteriormente por seus descendentes portugueses e repassados, por sua vez, para todos os seus herdeiros. O patrimonialismo e o ministerialismo estarão presentes em todas as esferas administrativas da Coroa portuguesa. É como se não fosse possível administrar bem sem ter de dar prêmios por bons serviços prestados.

A lisonja sempre atrai os famigerados aduladores. Assim, para obter-se o tão ambicionado prêmio, os aduladores acercavam-se dos nobres da Coroa a fim de não perderem as oportunidades. Com isto, o caráter da administração portuguesa (que por ora não será denominada de administração pública) sobre as terras do reino e das

2 Cf. FAORO, R., op cit., vol. 1, p. 17.

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colônias, sobre o erário, será aquele marcado pela facilidade com que se corrompe e se é corrompido e esta corrupção terá sua origem no patrimonialismo e no ministerialismo português.

Uma das marcas muito presentes deste estado de coisas é aquela que diz respeito a uma prática bastante comum nas repartições públicas tanto de outrora quanto de agora. Em repartições cuja demanda de trabalho é da ordem de dois funcionários públicos, ou seja, estes dois servidores já dariam conta da demanda de trabalho; geralmente, podem ser encontrados devidamente lotados cinco ou seis servidores (e lotados não quer dizer executando os trabalhos necessários devidamente). Para piorar um pouco mais a situação, não havia apenas acúmulo de funcionários; ainda por cima eles acumulavam diversos cargos públicos ao mesmo tempo.3

Durante a formação de Portugal (e durante a formação do Brasil) uma prática bastante comum era a da criação de cargos e ofícios públicos não só com o intuito de auxiliar o rei na administração pública, mas também com o intuito de premiar-se todo aquele que se aventurasse em aumentar o patrimônio real.

O fato de o cargo público ser algo muito cobiçado e tido como um excelente cabide de emprego está presente ao longo de toda a história do Brasil, a ponto de, em épocas remotas, aceitar-se o emprego até mesmo sem se receber pagamentos e honorários. É exatamente neste ponto delicado que está localizada a porta de entrada da corrupção.

O funcionário não recebia salários, mas aceitava de bom grado os presentes por bons serviços prestados. Ele facilitava a aquisição de uma propriedade, por exemplo, ajudando a eliminar a concorrência ou diminuindo a burocracia; em troca, recebia o afago generoso dos poderosos. Neste caso, havia corrupção ativa e corrupção

3 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 1, pp. 94-95.

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passiva. Neste passo, a porta de entrada da corrupção agora se encontra escancarada, facilitando assim a passagem de tão sinistra dona.

A Lei das Sesmarias (mais ou menos 1375) teve mantido em seu espírito a embrionária ideia das prebendas. A aventura ultramarina de Portugal não seria possível sem a participação de aventureiros da esfera particular. A Coroa portuguesa investiu pesados capitais na empresa das Grandes Navegações, sendo uma boa parte destes capitais oriundos dos cofres holandeses.

A população de Portugal naquela época era uma população grande o bastante para a aventura nos mares, mas não era grande o bastante para a outra aventura, a que deveria se iniciar após as descobertas: aquela da colonização. Portugal tinha aproximadamente um milhão e duzentos mil habitantes por esta época. Em outras palavras: a Coroa não possuía meios próprios de iniciar a colonização e nem o povoamento das terras recém-descobertas sem apelar para a iniciativa privada. Assim foi feito e, automaticamente, a prática de conceder presentes pelos serviços bem prestados foi colocada em funcionamento, como afirma Faoro nesta passagem:

[...] A jornada da pimenta, sucessora da jornada do ouro e do escravo, precursora da jornada do pau-brasil, se dissolvia em tenças, comendas e mercês, para fortuna da espada aventureira e dos administradores suspeitos de pouca honra. [...]4

A empresa colonial adotada a princípio não teve muito sucesso. A entrada de colonos, degredados, náufragos, desertores alocados em diversos pontos da vasta área que cabia aos portugueses na América, que mais tarde seria o Brasil, dificultava as pretensões da Coroa, pois estes “colonizadores” de primeira mão não se concentravam nas regiões administrativas vigiadas de perto pela burocracia real.

A política externa do rei D. João III, sucessor de D. Manoel, não tinha olhos voltados para o Brasil. Assim como aos olhos de seu antecessor, D. João III via a

4 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 1, p. 66.

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fonte de riquezas para Portugal brotar nas Índias Orientais. Destarte, os investimentos portugueses na empresa comercial das Índias Orientais ganharam não só maior atenção, mas também maior quantidade de capitais. Mesmo quando o comércio com suas possessões do oriente não correspondia mais às expectativas, o rei português ainda insistia, com alguma esperança, em um projeto já desgastado pelas grandes perdas de capitais. Estes investimentos levariam, mais adiante, a Coroa portuguesa a não ter créditos para quaisquer outras iniciativas.

Assim, o Brasil deveria suprir os cofres portugueses da melhor maneira possível, tornando-se a “galinha dos ovos de ouro” para Portugal. Como a Coroa portuguesa estava sem capitais para um investimento de tão grande vulto, apelou para a iniciativa privada. Aqui também o patrimonialismo e o ministerialismo estavam presentes. A corrupção gerada de forma implacável por tais práticas portuguesas também mostrou sua verdadeira face em terras da colônia pela primeira vez.

É sabido que, para que a iniciativa privada tivesse algum interesse em fazer investimentos e ajudar Portugal em sua empreitada de colonização (que não tinha outro objetivo senão o de evitar a perda das terras brasileiras para a concorrência) a Coroa portuguesa devia dar alguma contrapartida. Assim, foi criado o sistema de capitanias hereditárias. Esta foi a primeira forma de administração adotada para atuar como sistema de governo em terras brasileiras.

As capitanias hereditárias deviam ter as seguintes características: seriam simultaneamente estabelecimentos militares e econômicos, voltados para a defesa do território contra as agressões dos piratas e capazes de instaurar empresas comerciais que pudessem dar algum lucro para os cofres da Coroa.

O outro sistema político-administrativo adotado por Portugal, o do governo-geral, que seguiu ao das capitanias hereditárias (quando ficou patente que este

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sistema não se adequava aos objetivos da Coroa, fato este confirmado após quinze anos de funcionamento) não representou uma quebra do sistema, como afirma Faoro:

O governo-geral (1549) não representou – como pareceu a Duarte Coelho, já contaminado pelo vapor de potentado rural – uma quebra do sistema: simples ajustamento, como ajustamento foi o regime das donatarias dentro da centralização de Avis, centralização calcada no comércio amplo e no círculo apertado da nobreza dos cortesãos, burocraticamente orientados.5

A criação deste tipo de sistema administrativo já chegou à colônia pejada pelo embrião da corrupção. Ora, o que não foram o foral e a carta de doação nas ávidas mãos dos capitães donatários? Com estes dois dispositivos administrativos, tais capitães tornavam-se senhores absolutos das terras recém-adquiridas. Obedeciam somente a uma autoridade: o próprio rei.

Como os reis portugueses nunca pisariam em terras da colônia até a inusitada situação histórica de inícios do século XIX (a vinda da família real portuguesa para o Brasil no contexto das guerras napoleônicas), os donatários mandavam e desmandavam, podendo inclusive cometer as maiores e mais inimagináveis atrocidades e os mais absurdos abusos tanto para com os colonos quanto para com os indígenas.

Falando-se em colonos, estes recebiam dos donatários um pedaço de terra em forma de sesmaria. Pelo nítido objetivo de colonizar as terras para evitar a sua possível perda para franceses, ingleses ou holandeses, — que insistiam veementemente em desobedecer aos limites impostos pelo Tratado de Tordesilhas, que dividia as terras da América entre portugueses e espanhóis, mas que deixava de fora os demais povos — as sesmarias podiam ser consideradas como uma das primeiras formas de aquisição de vastas faixas de terras no Brasil e também de afidalgamento, juntamente com as capitanias, embriões por sua vez dos imensos latifúndios dos dias de hoje.

5 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 1, p. 136.

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Se atualmente os enormes latifúndios podem ser considerados como um dos maiores estorvos para o desenvolvimento do país, embora intocáveis; as sesmarias e as capitanias tinham o objetivo de incentivar o povoamento das terras brasileiras. Esta foi uma das formas encontradas pela Coroa portuguesa para atrair o capital privado para a empreitada de proteger a colônia das mãos dos piratas das outras nações. O colono no Brasil seria o representante de uma gigantesca obra, pública no objetivo e particular na execução.

O que era então o Brasil naquela época? Era uma faixa de terra de cento e noventa e cinco léguas de litoral, apertadas entre Itamaracá ao norte e São Vicente ao sul. Aí se desenvolveu toda a vida da colônia durante o século XVI. Para atingir seus objetivos administrativos nesta faixa de terras, a Coroa portuguesa confiou sua empresa colonial não só a homens de negócios, mas também a pessoas de confiança do rei, tais como os marinheiros e os militares das Grandes Navegações, os burocratas e a nobreza.

Durante o século XVI, a sociedade aqui instaurada foi constituída por, de um lado, senhores de engenho e, de outro lado, escravos. No entanto cabe ressaltar que, embora à primeira vista a pirâmide social da colônia assim concebida não tenha troncos intermediários em sua composição, havia alguns representantes de outras camadas sociais que constituíam o resto da sociedade. No essencial, a colônia parecia mover as suas engrenagens sociais sem as peças de outras camadas, mas no fundo, estas camadas acabaram se consolidando no seio da sociedade brasileira seiscentista. As duas camadas sociais acima citadas eram as principais e as que mais atenção conseguiam chamar sobre si.

Após poucos anos de experiência com o sistema administrativo das capitanias hereditárias, o governo português percebeu que tal sistema possuía alguns

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problemas que deveriam ser solucionados. Em primeiro lugar, uma boa parte das capitanias hereditárias ficou sem ocupação porque seus donatários não se interessaram em ocupar as terras e fazê-las prosperar; em segundo lugar, em algumas capitanias hereditárias as hostilidades entre os colonos e os nativos chegaram a tal ponto que o capitão donatário preferiu voltar para Portugal colaborando assim para com o malogro do projeto. Apenas em duas capitanias hereditárias o sucesso do projeto parecia muito evidente: Pernambuco e São Vicente.

Como o projeto inicial deste sistema administrativo era aquele orientado para a defesa do território contra a voracidade dos inimigos; voltado para a geração de lucros para a Coroa; e destinado ao controle do gentio em perene estado de revolta contra os colonos; o governo português viu por bem tentar uma solução para os problemas apresentados. O sucesso de duas capitanias hereditárias, no entanto, deu a pista para a resolução do problema. Assim, o governo português resolveu criar um novo sistema de administração: o governo-geral. O novo sistema não veio para substituir ou mesmo eliminar por completo os vestígios de algo que malograra. Veio apenas com o propósito de somar-se àquele, como afirma Faoro nesta passagem:

Os quinze anos das donatarias, tempo muito curto para definir uma tendência ou para definir um rumo, sofrem drástico corretivo. O governo-geral, instituído em 1548, instalado na Bahia, no ano seguinte, não extinguiu as capitanias. De imediato, as atribuições públicas dos capitães se incorporam no sistema do governo-geral, fiscalizados por um poder mais alto, em assuntos militares, da fazenda e da justiça. A instituição, no seu lado particular, prolongou-se até o século XVIII, quando a última capitania reverteu ao patrimônio real, reversão tardia, em homenagem à outorga vitalícia e hereditária.6

Logo se vê que, com esta medida, o governo português não tinha nenhum interesse de corrigir erros do passado, senão acrescentar-lhes de pronto mais

6 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 1, p. 162.

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alguns. A criação do governo-geral apenas acrescentou à hierarquia administrativa, que já estava inchada, mais um membro.

Entretanto, o documento (Regimento, de 17.12.1548) que o primeiro governador-geral Tomé de Sousa (que fora nomeado em 1549 pela Carta de Nomeação de 7.1.1549) trouxe consigo pode ser considerado como uma verdadeira carta magna, a primeira Constituição do Brasil. Ao cargo de governador-geral vinham três outros cargos somados àquele: o de ouvidor-mor (encarregado pela justiça local), o de provedor-mor (encarregado pelos negócios da fazenda) e o de capitão-mor (encarregado pelo policiamento local).

O governador-geral, uma vez dotado dos documentos acima citados, podia fundar vilas e cidades. Muitas das vezes, as vilas e as cidades já possuíam um capitão-mor possuidor de uma carta administrativa cedida pelo governador-geral ou pelo próprio rei antes mesmo de estas serem fundadas. Este tipo de situação fazia com que este funcionário possuísse totais poderes sobre as pessoas que residiriam em seus domínios. Em outras palavras: dotado de tais poderes, tendo de obedecer a poucos e comandando muitos, este servidor podia se enveredar pela prática da corrupção sem maiores problemas.

Com o governo-geral, a passividade complacente da metrópole diante das ações dos senhores locais chega a um fim drástico. O governo português tem agora outros interesses. No campo político, inspirado pelos ditames do absolutismo monárquico, a Coroa converte as câmaras (e, por extensão, seus “homens-bons”) em órgãos inferiores e subordinados verticalmente. No campo econômico, influenciado pela nova face que assume o capitalismo português, aquela da reativação mercantilista movida pelo comércio, a Coroa entrosa o latifundiário e o senhor de engenho.

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Enquanto no Nordeste brasileiro a lavoura canavieira e a empresa açucareira prosperavam de acordo com os ditames da metrópole, na região Sudeste a sorte de tal empresa não foi a mesma. Martim Afonso de Sousa criou engenhos de açúcar em seus domínios também, mas a empresa açucareira não prosperou em sua capitania. Diante de dificuldades impostas pela localização da capitania, pelos ataques dos índios, pelo clima da região, logo a capitania de São Vicente regrediu suas atividades comerciais para uma economia de subsistência, sustentada pela agricultura de víveres para a sobrevivência, e, mais tarde, pela captura do indígena para escravização e venda para os engenhos de açúcar do Nordeste.

De São Vicente começaram a partir para o interior do Brasil de então as Entradas e as Bandeiras, ambas com o objetivo fortuito de fazer prospecção de metais e pedras preciosos, capturar índios para vender como escravos na falta dos primeiros, por fim, e um pouco sem querer, alargar as fronteiras da colônia.

O tipo de vida que levava o paulista de São Vicente (doravante denominado bandeirante) é aquele proporcionado por uma vida indômita. O bandeirante era o homem bravo e destemeroso, resignado e tenaz, dono de um desempenho no mínimo viril em tudo o que fazia. Este tipo de homem será um conquistador e desbravador por excelência e deixará a sua herança, aquela que faz lembrar de perto um pouco das redes de corrupção atuando em berço esplêndido, como aponta Faoro nesta passagem:

[...] A herança do conquistador – o “coronel” e o capanga, o fazendeiro e o sertanejo, o latifundiário e o matuto, o estancieiro e o peão – permanecerá, estável, conservadora, na vida brasileira, não raro atrasando e retardando a onda modernizadora, mais modernizadora do que civilizadora, projetada do Atlântico. [...]7

7 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 1, p. 177.

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A onda modernizadora e a onda civilizadora citadas na passagem acima poderiam fazer parte de uma esperança, mesmo que pífia, de, se não eliminar por completo a nascente corrupção que se enveredava pelos caminhos e rios, pelas trilhas e montanhas brasileiras, pelo menos de mitigá-la; mas como esta onda modernizadora fora retardada pela herança deixada pelo conquistador, a corrupção pôde desfrutar livremente do espaço deixado pela onda civilizadora.

Neste passo, o funcionário recebe uma compensação monetária, os agentes do rei gozam de vantagens mesmo que indiretas como títulos e patentes que acabam por compensar a formalidade da gratuidade. Apesar de os salários da administração pública não aumentarem no decorrer dos anos, o número de funcionários cresce sensivelmente.

O aumento das terças partes e dos juros públicos levam a crer que houve um crescimento da nobreza e do comércio; essa deterioração dos salários pode ajudar a explicar o aumento das denúncias de corrupção, aliada à violência, expediente este usado para cercear as ações dos súditos, principalmente porque a vigilância superior abandona-os à própria sorte devido à distância e ao tempo que se leva para apurar os fatos.

A corrupção parece muito ciosa de seu lugar, está sempre junta ou mesmo rondando o poder. Em um sistema em que “manda quem pode e obedece quem tem juízo”, a corrupção se apega àqueles que têm o poder de gerenciar o bem público. O burocrata é aquele funcionário desdobrado do antigo cortesão. Daí que surgem, então, os contratadores e, ainda, os subcontratadores, todos estes sob o jugo da administração pública. A burguesia, que por esta época ainda se encontra agrilhoada, não pode fazer mais do que acusar os funcionários públicos de corrupção, tanto ativa quanto passiva, este é o estado das coisas neste período da gestão pública colonial.

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Para colaborar com a situação já tão vexatória de quem pouco pode contra tal ordem de coisas, a justiça colonial também anda de mãos dadas com a corrupção, dado que com sua morosidade facilita as transgressões que tanto agridem aqueles que dela dependem. Esta justiça é tarda, incompetente, cruel e amparada nas leis do tempo. Se esta justiça não consegue exercer sua função primordial de maneira rápida e segura, a sensação que daí deriva na mente das pessoas é aquela de impunidade daqueles que atentam contra toda e qualquer justiça. Daí derivam aquelas máximas patentes de que “se ele pode, eu também posso!”, “para os amigos tudo e para os inimigos a lei!”.

O marasmo da justiça brasileira colabora assim para a fácil corrupção daqueles que deveriam defender os injustiçados: os advogados. Em tal ordem de coisas, aqueles que podem ser considerados os mais fracos da pirâmide social brasileira, ficavam (e ainda ficam) quase que totalmente desamparados, entregues à própria sorte na luta contra os poderosos locais.

Devido ao fato de o Brasil ser um país de extensão territorial continental, o policiamento do território brasileiro sempre causou grandes problemas para a administração pública. Não era segredo que logo após a descoberta e durante os primeiros anos de contatos dos portugueses com as terras brasileiras, o policiamento do vasto litoral sempre causou grandes problemas devido a sua extensão. Ora, enquanto os navios de patrulha dos portugueses policiavam o litoral sul, os piratas das nações concorrentes, por vezes até inimigas, saqueavam as riquezas do litoral norte do país (principalmente o pau-brasil).

Assim, sempre foi de grande importância a ideia de assegurar o território e esta ideia sempre chamou muito a atenção das autoridades da metrópole. Para tanto, conforme a colônia foi sendo moldada para atender aos parâmetros do

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mercantilismo português, foram surgindo ideias de configuração de uma forma de policiar o território do país (a Guarda Nacional é um bom exemplo). Assim, as milícias fizeram parte integrante das forças policiais da colônia com o fino propósito de auxiliar nesta tarefa tão ingente, como afirma Faoro:

Sem as milícias, o tumulto se instalaria nos sertões ermos, nas vilas e cidades. Verdade que, com elas, o mandonismo local ganhou corpo, limitado à precária vigilância superior dos dirigentes da capitania.8

Como se pode ver, a vastidão do território causava um problema: se não houvesse policiamento, o tumulto se instalaria nos lugares mais ermos (como se dava no Velho Oeste americano); mas havendo o policiamento, principalmente no formato adotado para estes locais ermos, as milícias, este policiamento mesmo, exigido pela situação, causava outro problema que estaria presente na História do Brasil por longa data: o mandonismo local e sem rédeas.

Além do policiamento das regiões ermas da colônia, a metrópole teve também de se preocupar com a esfera do trabalho, ou seja: quem executaria os trabalhos necessários para o desenvolvimento dos negócios nas terras brasileiras? O branco não queria executar o trabalho braçal, dado que este degrada e avilta porque o coloca no mesmo patamar que o negro escravo, como afirma Faoro nesta passagem:

[...] Nem o branco português, nem o branco natural do país podem apanhar a enxada ou tocar no arado. O trabalho braçal degrada e o equipara ao escravo – a esta infâmia é preferível a ociosidade, o parasitismo, o expediente da busca de proteção dos poderosos. O funcionalismo, já enorme em número, absorve esta leva de desprotegidos, com cargos civis e militares – “inúmeros inspetores sem objeto a inspecionar, um sem-fim de coronéis sem regimentos para comandar, juízes para dirigir cada ramo da administração, por menor que seja, serviços que podem ser feitos por duas ou três pessoas. Os vencimentos aumentaram, o povo está oprimido e o Estado não colhe benefício algum.” A velha ordem administrativa portuguesa serve, na colônia, ao aproveitamento do branco pobre, do mulato rico, poupando um problema social, com a plebeização do branco alfabetizado, quase o letrado do tempo. [...]9

8 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 1, p. 219.

9 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 1, p. 246.

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Como se pode inferir desta passagem, o trabalho escravo adotado como um princípio básico para o andamento do processo de colonização e povoamento da colônia, assim como aquele da exploração das possíveis riquezas das terras brasileiras acabou por colaborar para com uma das fontes de origem da avassaladora corrupção durante o período colonial. Podem ser apontados vários elementos. O branco não quer trabalhar porque o trabalho braçal é degradante preferindo ficar na ociosidade, o que gera um sem-número de desocupados; além disso, ele prefere praticar o parasitismo social buscando, neste passo, a proteção dos poderosos, o que gera a ideia de favorecimentos para aqueles que estão sempre prontos para prestar algum serviço para estes poderosos.

Uma vez junto dos poderosos, este branco ocioso ganha as regalias do trabalho para as instâncias administrativas do Estado. Agora o Estado também está envolvido pela rede da corrupção, dado que o funcionalismo estatal ficará repleto de funcionários parasitários, pois em seções que por vezes dois ou três funcionários executariam o trabalho todo com certa destreza e empenho, passam a estar devidamente lotados de cinco a seis vezes mais funcionários.

Assim, a burocracia estatal aumenta consideravelmente dado que, para dar trabalho para todas estas pessoas são criados vários novos cargos e, por sua vez, vários formulários e documentos que só servem para aumentar a morosidade dos serviços públicos e, como o Estado tem de manter a folha de pagamentos em dia, aumentam também os gastos públicos não só com os funcionários, mas também com a burocracia estatal propriamente dita. O resultado de toda esta ordem de coisas respinga na população, que, muitas vezes sem saber de nada, paga a conta.

Além das preocupações tão prementes relacionadas com o policiamento das terras da colônia; além das preocupações referentes às relações de

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trabalho no vasto território colonial; a Coroa portuguesa teve de se preocupar também com as relações comerciais e com os entraves mercantis. Estas barreiras todas novamente esbarram na corrupção dado que o comércio e o mercado coloniais exigem cada vez mais enormes cabedais, um exército de funcionários e vigias que, por sua vez, comprometem-se com as propinas e com a corrupção, dado que não há cerrada fiscalização por parte do governo.

O passar dos anos e dos séculos não consegue alterar o estado de coisas. Como herdeiros do patrimonialismo e do ministerialismo (estes advindos da administração portuguesa) os brasileiros não conseguem escapar dos tentáculos do polvo governamental de tipo português. Se a corrupção de tipo brasileiro teve sua origem no seio da administração pública portuguesa com viés patrimonial e ministerial, então esta mesma corrupção ganhou forma, face e força em terras brasileiras e o tempo não conseguiu nem dirimir e nem mitigar sua energia, como afirma Oliveira Lima:

Apesar disto, a corrupção do antigo regime não cessou de se exercer na nova capital, tanto talvez quanto na antiga; e nas capitanias mais próximas ou afastadas, confiadas em boa parte a oficiais brutais e ávidos, os abusos não tinham interrupção sob o regime da autonomia brasileira. Mas, pelo menos, esses abusos foram declarados infames, e a corrupção veio a constituir um ponto de acusação contra o governo. [...]10

Já no século XIX, com a proclamação da Independência e apesar da proclamação da Independência (e até mesmo após a perpetração do ato do príncipe regente) a corrupção parece muito atrelada ao exercício do poder. Parece existir uma áurea mística que leva a crer que a corrupção está diretamente ligada ao exercício do poder. Tanto é assim que aqueles que podem procuram se assenhorear do poder para melhor serem cortejados pela corrupção. E as ações da tão “sinistra senhora” parecem

10 LIMA, Oliveira. Formação histórica da nacionalidade brasileira. São Paulo: Editora Globo, 2000, p. 150.

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estar ligadas ao aumento do número de funcionários públicos, como se pode observar nesta passagem:

[...] ‘Em lugar de raios de Júpiter, destilei o veneno sutil e saboroso da corrupção; comecei por embriagar os grandes e cheguei até o povo. ... Não dei jogo, prazeres que passam e se esquecem; - dei emprego e aumentei o funcionalismo; - o ordenado é renda que pode ser vitalícia se o servidor não se esquecer de seu divino senhor. ... A política da força faz mártires, e os mártires, como sabeis, ressuscitam; a política da corrupção faz miseráveis, e os miseráveis apodrecem antes de morrer.’ [...]11

Como se pode observar na passagem acima, a corrupção tem como suas primeiras vítimas os grandes, somente depois é que atinge os pequenos e, pequenos aqui é o próprio povo; aumenta-se o funcionalismo e também a renda que paga este funcionalismo através da cobrança de impostos; por fim, as principais vítimas da corrupção, os miseráveis em incontáveis números, que com a corrupção corroendo por dentro, apodrecem antes mesmo de morrer. Como se pode ver, a corrupção além de estar diretamente ligada ao exercício do poder, também está ligada à produção de miseráveis em larga escala.

O golpe de misericórdia dado sobre estes mesmos miseráveis, que têm por destino sempre pagar as contas onerosas do Estado e da corrupção, veio com a promulgação (ou outorga) da primeira Carta Constitucional do Brasil, a de 1824. Nela um dispositivo jurídico e eleitoral fechará, de uma vez por todas, quaisquer portas que pudessem dar entrada para a participação popular na construção do país tão sonhado; o voto censitário serviu como freio para todo e qualquer anseio popular. Excluídos do exercício do poder e de qualquer participação política, coube a estes miseráveis sustentar a corrupção e sua expansão pelo território brasileiro, assistindo de perto, no entanto, seu eterno namoro com o poder e os poderosos.

11 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 1, p. 325.

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A Constituição de 1824 dá para o imperador o poder de criar o Conselho de Estado, um gabinete de ministros todos submissos ao Governo. Este gabinete é um local de negócios ilícitos e a corrupção que vige neste momento já é aquela corrupção aberta e desbragada, despreocupada que está em se esconder para agir e praticar seus malefícios; este gabinete é um viveiro de negócios escusos e um campo aberto para a corrupção, como afirma Faoro nesta passagem:

[...] O gabinete ostensivo, escolhido entre os validos, obedece à antecâmara do trono, ao “gabinete secreto”, dirigido pelas intrigas do Chalaça e da Marquesa de Santos, a sua adorada Titila, viveiro de negócios escusos e corrupção aberta. Entre o imperador e a opinião pública - a reduzida camada que fazia a opinião pública - não emerge nenhum órgão de intermediação, capaz de absorver as pressões e filtrar as decisões governamentais, transacionalmente.12

Cabe ressaltar que, a partir da proclamação da Independência, todos aqueles que exerceram o poder governamental, com algumas exceções, quando foram afastados do poder, raramente o foram por motivos justificados de práticas ativas ou passivas de corrupção; ou seja, a corrupção não foi o principal motivo que derrubou governos no Brasil. O político corrupto, vez por outra, foi afastado do poder por outros motivos, tais como a orientação política, uma doença ou o próprio fim do mandato. O exemplo de países nos quais a corrupção sob qualquer modalidade, quando devidamente comprovada, é causadora do impedimento legal de governar e afasta o corrupto do exercício do poder tornando-o inelegível por um tempo determinado, não foi seguido pelo Brasil nos seus primeiros momentos de país independente.

Como é no mundo da política que mais invariavelmente se encontrará os passos de tão ilustre senhora, com a nova ordem social brasileira promovida pela Independência, o Brasil passou a ser uma nova nação. Assim, havia a necessidade de uma Constituição para ditar os rumos da pátria. Uma Constituição legisla sobre diversos ramos de organização, desde a organização política passando pela organização social,

12 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 1, pp. 333-334.

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cultural, econômica e até religiosa; regulamenta o funcionamento das mais diversas instituições.

Com efeito, o jogo político tinha sofrido transformações com o advento da Independência e a promulgação da Constituição de 1824. Assim, havia a necessidade de eleições para os diversos cargos políticos que surgiram com o advento da nova nação. Destarte, as eleições brasileiras, por exemplo, seguiriam algumas regras básicas para seu bom funcionamento. O voto era censitário e aberto. Estes dispositivos causavam uma série de problemas; contudo, o mais importante de todos era a abertura de uma trilha para que a corrupção pudesse caminhar sem maiores percalços, como se observa nesta passagem:

“[...] Ainda se conservam, e é possível que se conservem para sempre, na lembrança de todos os que assistiram às eleições anteriores a 1824, as cenas de que eram teatro as nossas igrejas na formação das mesas eleitorais. Cada partido tinha seus candidatos, cuja aceitação ou antes imposição era questão de vida ou morte. Quais, porém, os meios de chegarem as diversas parcialidades a um acordo? Nenhum. A turbulência, o alarido, a violência, a pancadaria decidiam o conflito. Findo ele, o partido expelido da conquista da mesa nada mais tinha que fazer ali, estava irremissivelmente perdido. Era praxe constante: declarava-se coato e retirava-se da igreja, onde, com as formalidades legais, fazia-se a eleição conforme queria a mesa.” [...]13

As eleições com voto aberto facilitavam em muito o trabalho dos poderosos, dos donos do poder, dado que não havia nenhuma possibilidade de o eleitor escapar das garras destes poderosos. Votar em candidatos da oposição era praticamente um suicídio, não só o suicídio político, mas também aquele de fato. A violência era um fator marcante e constante. O eleitor votava com o receio de represálias vindas da parte dos poderosos. Os capangas destes donos do poder estavam sempre à espreita. Diante de tal brutalidade eleitoral, o que podia o eleitor fazer? Estava desamparado juridicamente. As formalidades legais eram de fachada e davam o tom da música eleitoral. Contudo, se o eleitor seguisse o roteiro de acordo com o que determinava o mandonismo local, podia

13 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 1, pp. 415-416.

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ganhar algum auxílio em momento de desespero, o que era muito frequente na vida das pessoas humildes.

O mundo da política no Brasil Imperial gerou diversos grupos de descontentes com o estado de coisas originado da outorga da Constituição de 1824. Com efeito, durante o Período Imperial os membros do Exército Nacional ficaram alijados do poder, pois um dispositivo jurídico constitucional impedia os militares de exercerem cargos políticos. Ciosos de seu valor e de sua importância para a pátria, os militares nunca aceitaram de bom grado tal situação, mas não adotaram nenhuma medida drástica até pelo menos o período da guerra que envolveu o Brasil em um conflito contra o Paraguai (Guerra do Paraguai de 1865 até 1870).

O Exército brasileiro saiu daquele episódio fortalecido, pois provara para a nação todo o seu valor e a sua importância tanto no que diz respeito à defesa do território nacional quanto no que diz respeito à tomada de decisão. Assim, ficar alijado do poder político era, para os militares, humilhante demais e eles passaram a demonstrar insatisfação para com este estado de coisas a partir de então. Para eles, os políticos civis eram todos corruptos e incapazes de salvar o Brasil de um desastre. A ideia de salvação nacional começou a passear pelos corredores dos quartéis e, aos olhos dos militares, somente os membros do Exército e das Forças Armadas como um todo poderiam salvar o Brasil. Como as regras do jogo político no Período Imperial deixavam de fora as Forças Armadas, o Exército resolveu, aos poucos, retirar o seu apoio ao imperador. Acreditavam os militares que somente em outra ordem política poderiam atuar da maneira que o destino manifesto das Forças Armadas havia reservado para eles, como se observa nesta passagem:

[...] As reações do setor desdenhado se fixam primeiro no “veterano resmungão”, para se cristalizarem, nos últimos quinze anos da monarquia, na convicção de que os homens de farda, só eles, eram puros, sãos, patriotas, enquanto os civis, os casacas não passavam de

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políticos podres, corruptos, aproveitadores da miséria do país. Daí até o engajamento nos movimentos de protesto - o abolicionismo e a República - vai apenas um passo, naturalmente empurrado pelas desastradas cautelas e incitamentos civis.14

A corrupção do Período Imperial foi aquela que ganhou sua face brasileira. O Período Colonial foi responsável por trazer de Portugal para o Brasil o embrião da corrupção. Naquele período, ela era tipicamente portuguesa, derivada que era do patrimonialismo e do ministerialismo portugueses. A face brasileira desta dama temperamental começou a ser mostrada no final do Período Colonial, mas ganhou seu formato brasileiro durante o Período Imperial. Com efeito, foi durante este período que o “jeitinho brasileiro” começou a grassar entre os brasileiros. A passagem da Monarquia para a República não alterou em muito o modo de agir dos corruptos e nem o formato típico da corrupção de tipo nacional.

Com efeito, a passagem do Império para a República trouxe algumas alterações no jogo político, mas nada que fosse contundentemente diferente do que ocorria no período da Monarquia. As eleições continuaram a ter o voto aberto, o que favorecia os desmandos dos mandatários locais. Este tipo de eleição ficou conhecido historicamente como “voto de cabresto” e os locais em que ocorriam as eleições com este formato de “currais eleitorais”. Na esfera política municipal, comandavam os coroneis; na esfera estadual, as oligarquias; ao passo que na esfera presidencial, comandavam duas oligarquias específicas secundadas por tantas outras, que corriam por fora.

Assim, o patrimonialismo somado ao ministerialismo, à corrupção e ao ‘jeitinho brasileiro” vão incorporar em sua lista de cúmplices a burocracia de Estado. Esta também é outra forma de opressão exercida sobre o povo oprimido, que não vê nenhuma escapatória ou alternativa para este estado de coisas. Submetido a tão pesado

14 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 2, pp. 83-84.

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castigo, rola acima sua rocha com a esperança de que esta não role morro abaixo. Nada pode mudar, mas o povo deposita imensa confiança de que algo de novo acontecerá partindo de alguma iniciativa governamental.

Embora a política seja o local de preferência para a atuação da corrupção em suas várias facetas, o campo da economia também sofre os efeitos nefastos das ações desta nobre senhora. Como parece óbvio, o poder também emana daqueles que possuem grandes cabedais. São por vezes corruptores e corrompíveis. Assim, lado a lado caminham de braços dados o poder e o dinheiro; os políticos e os ricos, como se observa nesta passagem:

[...] “o calor, a luz, a vida para as maiores empresas, tinham vindo do Tesouro. Em todo tempo, as grandes figuras financeiras, industriais, do país tinham crescido à sombra da influência e proteção que lhes dispensava o governo; esse sistema só podia dar em resultado a corrupção e a gangrena da riqueza pública e particular. [...]15

Os anos iniciais do período de governo republicano foram marcados por mandos e desmandos no mundo da política. O Período Republicano no Brasil pode ser dividido em várias partes. Entre 1889-1894 recebeu a denominação de República da Espada, que fora marcado pelos governos do marechal Deodoro da Fonseca e do marechal Floriano Peixoto. Logo após este curto período de governo militar, a República passou a ser governada por civis e seguiu a cartilha do Coronelismo, da Política dos Governadores e da Política do Café com Leite. Este período ficou conhecido como República das Oligarquias (1894-1930).

Com efeito, durante este período, a presidência da República ficou de forma alternada nas mãos de candidatos indicados pelos Partidos Republicanos de São Paulo e de Minas Gerais, que se apoiavam nos PRs (Partidos Republicanos) de outras oligarquias estaduais através da Política dos Governadores e do Coronelismo. Este esquema de alternância entre estes PRs seguiu a regra com poucas modificações.

15 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 2, p. 8.

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Evidentemente que a corrupção seguiu fazendo seu trabalho sem maiores problemas ou barreiras.

Os militares que se arrogaram ter o direito e o dever de ostentar a bandeira com o lema dos “salvadores da pátria” tiveram seu momento e na realidade não conseguiram reverter o processo de latência da corrupção endêmica no Brasil, apontada por eles com veemência no período final da Monarquia. Contudo, já no Período Republicano, os militares voltaram ao poder algumas vezes e, durante a vigência da Política dos Governadores, Hermes da Fonseca quebrou temporariamente a sequência lógica das sucessões previstas pela Política do Café com Leite. Militar de formação, Hermes da Fonseca também tinha em mente salvar o Brasil das garras de tão nefasta senhora ou pelo menos mitigar seus efeitos através daquilo que ficou conhecido como “salvacionismo”. Aos olhos de Hermes, o poder estava manchado pela corrupção há muito tempo, como se observa nesta passagem:

[...] Volvidos quinze anos, essa categoria social, já consciente de seu papel, recusa-se a ser protegida, conduzida, tutelada: antevê, timidamente, discretamente, um papel político próprio e autônomo. Nos Estados, entretanto, outra era a realidade, e, aí, diante da incapacidade de reação aos dominadores, encastelados rigidamente no governo, legitimados pela política dos governadores, o vínculo aos militares abria rápidas esperanças imediatas. Nasceu, desta forma, o salvacionismo, para, em nome da democracia e da pureza representativa, libertar o povo escravizado aos oligarcas. O militar, instrumento e beneficitário da emancipação, ajudava os oprimidos a conquistar o poder, manchado de vinte anos de corrupção e violências. [...].16

O estado de coisas gerado pelo Coronelismo, pela Política dos Governadores e pela Política do Café com Leite foi aquele típico de um zoneamento do território brasileiro. Em cada unidade da federação existia o comando de uma oligarquia agrária dominada por um coronel e seus capangas. Em nenhuma das esferas políticas ocorre a intervenção de uma sobre a outra, salvo raras exceções.

16 Cf. FAORO, R., op. cit., vol. 2, pp. 218-219.

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Com efeito, o ideal que levou o Exército a apoiar a derrubada da Monarquia continuou a fazer parte do ideário das Forças Armadas, dado que, aos olhos dos militares, os políticos corruptos, os “casacas”, como eram conhecidos no período final do governo imperial, continuavam no poder, só que agora nos moldes republicanos. Assim é que o movimento iniciado pelos tenentes conhecido como Tenentismo, ganhou força em várias partes do Brasil, mas principalmente no Distrito Federal. O ideal do “salvacionismo” ainda era o motivo principal que impulsionava o movimento e dava-lhe forma. O combate à corrupção estava na ordem do dia.

O movimento dos tenentes ganhou destaque em momentos cruciais da História do Brasil (1922; 1924-1927). Parecia óbvio que do jeito que estava não poderia ficar. Uma revolução parecia iminente, a ponto de acreditar-se que se ninguém tomasse uma medida, o povo faria tal revolução. Assim, os oligarcas tomaram medidas para impedir que tal acontecimento pudesse atacar a ordem política estabelecida por eles desde fins do Império. Mas, os eventos históricos, às vezes, parecem sair do controle e não obedecem aos caprichos dos donos do poder.

Uma crise sucessória ocasionou a tal da revolução temida pelos oligarcas e pelos políticos. Pela Política do Café com Leite, um representante de São Paulo deveria suceder um representante de Minas Gerais na Presidência do Brasil. Ora, estava no poder durante o período de 1926-1930 o representante paulista Washington Luís. Pela lógica da política vigente, o sucessor deveria ser o governador de Minas Gerais, mas Washington Luís não o indicou como seu sucessor, o que gerou uma crise política de enormes proporções; crise tal que acabou dando origem, mais tarde, à Revolução de 1930. Esta revolução derrubou as oligarquias agrárias tradicionais do poder; de certa forma, ela também colaborou para com o fim da Política do Café com Leite, da Política dos Governadores, do Coronelismo. Assumiu o poder o governador do

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estado do Rio Grande Sul, Getúlio Vargas, que governou o Brasil por cerca de quinze anos.

Durante os quinze anos que se seguiram (1930-1945), o governo de Getúlio Vargas buscou, senão solapar, pelo menos dirimir e mitigar os estragos causados pelos trinta e seis anos anteriores de governo das oligarquias agrárias. Não é que as relações de poder tivessem sofrido drásticas mudanças, mas Vargas estava disposto a governar de forma diferente e para tanto mudanças deveriam ser feitas. Uma das principais mudanças era a da Constituição vigente que possuía dispositivos políticos que facilitavam a atuação das oligarquias no açambarcamento do poder.

Quando Vargas saiu vitorioso naquilo que ficou conhecida como Revolução de 1930, ele prometera uma nova Constituição para o Brasil; mais democrática, mais moderna, já que a anterior já estava entrando na segunda idade. Quando assumiu o Distrito Federal, Vargas preocupou-se com outras coisas e entre elas os meios para criar dispositivos que o mantivessem no poder e relegou a um segundo plano a Constituição, o que lhe rendeu uma revolta ocorrida em 1932, no estado de São Paulo, contra seu governo.

Após este incidente, Vargas resolveu convocar a Assembleia Constituinte, que por sua vez promulgou a Constituição em 1934. Esta Constituição tinha uma importante mudança em relação à anterior: o voto seria secreto. Este dispositivo eleitoral por si só já auxiliava, em muito, no combate contra os desmandos das oligarquias agrárias, pois, de certa forma, acabava com a principal forma de poder local nas municipalidades. O Coronelismo sofria terrível golpe, embora não deixasse de existir.

A subida de Vargas ao poder colaborou, de certa forma, para dar uma nova cara para a História do Brasil. Acostumado com os mandos e desmandos de uma

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oligarquia onipresente, o povo brasileiro esperava por mudanças advindas de cima, verticalmente, agrilhoado que estava, desde há muito, em uma estrutura corroída pela corrupção. O governo de Vargas trouxe sim algumas transformações pontuais, tais como aquelas feitas na área da economia, na área trabalhista etc.; mas na política, mudava apenas o ocupante da cadeira presidencial, oriundo que era este ocupante de uma oligarquia.

O período de governo de Vargas, consolidado com o Estado Novo (1937-1945), chegou ao fim não devido a uma revolução, mas devido ao fato de que, durante a Segunda Grande Guerra, Vargas alinhou-se com as forças ocidentais do grupo dos Aliados na política externa; ao passo que na política interna mantinha uma posição de ditador seguindo os moldes políticos preconizados pelos nazistas, grupo este combatido pelas forças aliadas. Esta posição política paradoxal levou alguns intelectuais mineiros a questionar a atitude do Presidente, colocando-o em xeque político. Vargas deixou o poder no final do ano de 1945.

O período da História do Brasil que se seguiu ficou conhecido como Período Populista (1945-1964) e foi marcado por um período considerado bastante democrático para um país acostumado com tantos desmandos políticos. Este período da História do Brasil estava inserido em outro período da História Global denominado de Guerra Fria (1947-1991), marcado por um conflito virtual entre duas grandes potências mundiais (EUA x URSS) e que exigia um alinhamento com um dos lados: o lado capitalista, defendido pelos EUA; o lado socialista, defendido pela URSS. Neste contexto, alinhar-se significava seguir os ditames políticos e ideológicos da grande potência líder.

O Brasil alinhou-se aos EUA e seguiu a orientação capitalista. Durante este período de Guerra Fria, a “ameaça vermelha” era constante e, em nome de

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um ideal de segurança nacional e tentando evitar a todo custo as influências do mundo socialista, os brasileiros foram governados por presidentes eleitos democraticamente, apesar de haver constantes perseguições contra aqueles considerados subversivos, portanto, comunistas. Uma prova disto foi a cassação do PCB (Partido Comunista Brasileiro) durante o governo do general Eurico Gaspar Dutra (1946-1950).

Neste primeiro momento, o Brasil teve um leve crescimento econômico oriundo de empréstimos tomados dos países ricos capitalistas. O crédito foi facilitado devido ao receio de que o Brasil pudesse “cair nas garras” dos comunistas. Durante este período, alguns acontecimentos no mínimo insólitos ocorreram: o Brasil comprou televisores em um período em que não havia nenhuma antena de transmissão no território nacional; casacos de pele foram adquiridos por brasileiros que viviam em regiões tropicais, isto só para ficar com uns poucos exemplos.

O general Dutra foi substituído por Getúlio Vargas, agora eleito democraticamente (1950-1954). Neste novo mandato, Vargas mostrou toda a força de seu nacionalismo e criou a Petrobras (Petróleo Brasileiro S/A), nacionalizando os direitos de exploração do petróleo brasileiro; criou o salário mínimo; criou a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Estas medidas de Vargas trouxeram represálias e aumentou a força da oposição ao governo, dado que dava demonstração de um provável afastamento do alinhamento adotado e seguido por seu antecessor.

O preço pago por Vargas foi alto. Alegando a presença de “forças ocultas”, que estavam atuando nos bastidores da política brasileira, em uma clara afronta à democracia do país, Getúlio cometeu suicídio (1954) alegando que, assim, estava protegendo o Brasil da injunção de forças que tinham propósitos escusos de tomar o poder e adotar um regime ditatorial. Havendo ou não havendo as tais “forças ocultas”; havendo ou não havendo a pretensão de golpe de Estado; o fato é que o

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suicídio causou uma enorme comoção popular, o que alguns especialistas entendem como um nítido freio a qualquer anseio da parte de golpistas e que teria adiado este golpe por pelo menos alguns anos.

Diante disto, a democracia brasileira pôde continuar seu rumo. Após novas eleições, foi eleito para a presidência Juscelino Kubitschek. Presidente também alinhado ao bloco capitalista teve a simpatia do governo americano e, portanto, angariou diversos empréstimos e financiamentos deste governo com o propósito de colocar seus planos de desenvolvimento econômico em prática. Seu “Plano de Metas” tinha como objetivo desenvolver o país de forma acelerada; seu lema era: “cinquenta anos em cinco”. Neste passo, trouxe para o Brasil as primeiras montadoras de automóveis; construiu Brasília no Planalto Central, com o propósito de levar o desenvolvimento até a região Centro-Oeste. Seu governo não marcado por maiores percalços.

Ao fim de seu mandato, Juscelino entregou o poder para outro Presidente eleito democraticamente: Jânio Quadros. Este Presidente ficou no poder somente sete meses. Devido a um procedimento dúbio, Jânio Quadros levantou suspeitas sobre seu governo ao condecorar o revolucionário Ernesto “Che” Guevara em Brasília, o que era uma nítida afronta ao alinhamento adotado pelo Brasil ao bloco capitalista. Ora, Guevara participara da Revolução Cubana (1959) e fora um dos responsáveis pela adoção da posição de alinhamento de Cuba ao bloco socialista. Jânio Quadros renunciou alegando também que “forças ocultas” o haviam obrigado a tomar tal decisão.

Diante de tal situação, o Brasil passou novamente por um momento no mínimo insólito: naquela época, os vice-presidentes eram eleitos por voto popular também. Assim, ocorria um fenômeno político bastante diferente daquele que ocorre nos dias de hoje: o presidente podia ser de um partido político e o vice-presidente ser de

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outro partido. O substituto de Jânio Quadros na Presidência da República foi João Goulart (vulgo Jango), do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Este partido trazia sobre si a suspeita de ser “esquerdista” dado que trabalhista. Jango, quando da renúncia, estava em viagem de visita a um país comunista alinhado ao bloco socialista, a China. Este fato por si só já podia ser considerado como uma forma de levantar suspeitas sobre o Presidente e de estabelecer-se uma relação entre o “esquerdismo” de Jango e os receios da burguesia e dos militares.

Os dois grupos, em uma jogada política, impediram Jango de assumir o poder e criaram um dispositivo para que o Brasil se tornasse Parlamentarista. Assim, Jango seria Presidente, mas não governaria. Quem governou foram os primeiros-ministros, entre eles Tancredo Neves. O Parlamentarismo brasileiro, no entanto, teve vida curta. Outro dispositivo político propunha um plebiscito consultando a opinião popular sobre o desejo de se tornar Presidencialista novamente. Este plebiscito aconteceu em 1963 e o Presidencialismo venceu. Assim, Jango pôde assumir o poder e terminar o seu mandato. Mas não foi o que aconteceu. As medidas adotadas por Jango com o fito de desenvolver a economia do país (entre elas uma proposta de reforma agrária e um aumento de 100% sobre o salário-mínimo) no mínimo soaram como subversivas aos olhos da oposição ao governo de Jango. Assim, em março de 1964, os militares deram um golpe de Estado e derrubaram João Goulart do poder.

Estabeleceu-se logo em seguida uma Ditadura Militar que durou cerca de vinte anos (1964-1984). Neste período, o Brasil foi governado por cinco presidentes militares: Castelo Branco, Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel, João Batista Figueiredo, todos generais.

Em nome da Segurança Nacional e do alinhamento com o bloco capitalista, estes presidentes cassaram os mandatos de políticos eleitos

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democraticamente; empastelaram jornais e censuraram a imprensa; criaram o Colégio Eleitoral; eliminaram o pluripartidarismo existente, permitindo a existência de apenas dois partidos: o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) de oposição consentida e a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) de situação; criaram os políticos denominados “biônicos”, porque não eram eleitos democraticamente por voto popular; estabeleceram a tortura; editaram os Ais (Atos Institucionais) em número de cinco.

Devido ao alinhamento com o bloco capitalista, os governos militares conseguiram diversos empréstimos e financiamentos dos credores internacionais capitalistas. Com estes financiamentos, os militares fizeram diversos investimentos construindo estradas, hidrelétricas entre outras coisas, o que fez com que a economia brasileira crescesse cerca de 10% ao ano em curto período de três anos (1970-1973); período este que ficou conhecido como “Milagre Econômico”. Evidentemente que este “milagre” foi utilizado como propaganda positiva pelos militares da ditadura. Tanto que, neste período, ocorreram as “guerras de guerrilhas” na região do Araguaia e as forças guerrilheiras foram derrotadas pelas Forças Armadas e os militares criaram o seguinte lema: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Como resposta, os opositores ao governo, que não eram poucos, criaram a continuidade deste lema: “e o último a sair, apague a luz”.

Em 1973 ocorreu uma crise econômica internacional (crise do petróleo) que afetou diretamente o “milagre econômico” dos militares. Como resultado, a inflação saiu do controle e o governo dos militares começou a demonstrar fraquezas. Todos os planos econômicos propostos pelos militares não resolveram o problema. A inflação crescia descontrolada e junto com ela, a nossa dívida externa, que, saltou de 3 bilhões de dólares no início do governo militar para 120 bilhões no final do governo.

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Diante destas fraquezas apontadas, algumas medidas políticas preconizando a redemocratização foram tomadas. Uma lei de anistia foi assinada em 1979 absolvendo de todos os seus crimes tanto os membros da oposição quanto os membros do governo militar. Foi uma anistia ampla e irrestrita. A própria redemocratização tinha como proposta ser lenta e gradual, bem lenta e bem gradual. Tanto que, no final do mandato do último presidente militar, João Batista Figueiredo, ocorreu uma campanha, de orientação bastante popular, denominada de “Diretas-Já”, pois a ideia veiculada pelo governo era a de que a escolha do próximo presidente se daria através do Colégio Eleitoral, mesmo se ele fosse um civil. Seria, enfim, a “abertura política” prometida pelos militares e posta em prática.

A “abertura política” ocorreu sem maiores percalços e o poder passou para a mão dos civis. O Brasil passou a vivenciar um período de democracia. De 1985 até os dias de hoje (2012), o processo eleitoral foi aperfeiçoado de maneira a privilegiar a democracia. Num primeiro momento, a inflação foi um dos grandes problemas a ser resolvido. Isto se deu com a implantação do Plano Real em 1994. Contudo, muitos ainda são os problemas a serem resolvidos, um dos principais é o problema da corrupção.

Com efeito, no Brasil, o salário-mínimo é da ordem de R$ 622,00. Ou seja, este deveria ser o menor salário pago no país. Entretanto, há pessoas que recebem salários menores. Segundo o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), o salário-mínimo no Brasil deveria ser da ordem de R$ 2.

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519,97.17 Somente para efeito de comparação, o salário recebido pelos senadores brasileiros é da ordem de R$ 26.700.18

Ora, um trabalhador assalariado no Brasil trabalha, no mínimo, de segunda-feira até sexta-feira para ganhar este salário-mínimo. Um político brasileiro trabalha de terça-feira até quinta-feira para auferir o salário supracitado. Este salário de político mencionado é o menor valor auferido pelo político, dado que aí não estão computados outros valores que são comumente agregados àquele (jetom, auxílio terno, auxílio combustível, verba de gabinete e por aí vai). Bem, por estes exemplos já se pode observar que, no mínimo, há uma grande discrepância. Ora, quem falou que um trabalhador que trabalha cerca de 5 dias por semana (no mínimo) consegue viver bem com aquele valor de salário? Quem falou que um político deve auferir um valor daquela ordem como salário? Além dos valores serem totalmente discrepantes, o tempo de trabalho também é. Ora quem disse que um político tem o direito de trabalhar tão pouco enquanto um trabalhador tem de trabalhar tanto tempo para auferir tão pouco. No primeiro caso, quem paga os elevadíssimos salários de deputados e senadores é a população, o povo brasileiro; no segundo caso, geralmente são os empresários.

A corrupção no Brasil é tão gritante que se fosse possível reduzi-la em apenas 30%, o salário-mínimo no país poderia ser aquele apontado pelo DIEESE tranquilamente (da ordem de R$ 3.000,00). Se a corrupção fosse reduzida em até 70%, este valor poderia saltar de R$ 3.000,00 para até R$ 8.000,00. E observe que não se está falando de eliminar totalmente a corrupção. Ora, como sustentado até aqui, a corrupção no Brasil (e isto deve valer para qualquer país) está atrelada, geralmente, ao poder. A

17 Gazeta do Povo. Salário mínimo deveria ser de R$ 2.519,97, avalia Dieese. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/>. Acesso em: 23 set. 2012.

18 Veja.Abril. Senado aprova novo salário de 26,7 mil reais. Disponível em: <http://www.veja.abril.com.br/>. Acesso em: 23 set. 2012.

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figura do político, infelizmente, lembra a face nua da corrupção. Como se pôde observar ao longo deste texto, inveteradamente a política e a corrupção estavam unidas com o propósito de fazer estragos, fazendo com que o dinheiro pago em impostos escoe pelo ralo sem trazer benefícios para aqueles que efetuam o pagamento. Somado a isto, não se pode esquecer do tão famoso “jeitinho brasileiro”, que faz com que a corrupção fique muito mais cruel, fria e contagiosa, espalhando-se pelos quatro cantos do país, fazendo suas muitas vítimas sem piedade alguma daqueles que deverão inocentemente pagar as contas.

Com o objetivo de tentar apresentar uma pequena proposta de solução, aqui fica a dica. Os políticos brasileiros trabalham muito pouco. Eles alegam que, na verdade, nos dias em que não estão em Brasília, eles estão junto de suas bases eleitorais fazendo consultas em prol de seus eleitores. Ora, trabalhando tão pouco e ganhando tanto, quem não gostaria de ser político no Brasil? A sugestão é: os políticos deveriam ser obrigados por lei a trabalhar normalmente pelo menos cinco dias da semana como qualquer outro trabalhador; os salários auferidos não deveriam ultrapassar o valor de R$ 3.000,00 por mês (valor para 2012), isto já é o bastante pelo que fazem. Assim, os valores empregados como forma de pagamento para estes políticos poderiam ser investidos em serviços necessários, em lugares que realmente precisam de investimentos. Para concluir, uma citação de uma letra de música de Chico Buarque que, no mínimo, tem muito a dizer a respeito disto tudo (Acorda Brasil!):

“[..] Num tempo página infeliz da nossa história,

passagem desbotada na memória

Das nossas novas gerações

Dormia a nossa pátria mãe tão distraída

sem perceber que era subtraída

Em tenebrosas transações

Seus filhos erravam cegos pelo continente,

levavam pedras feito penitentes

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Erguendo estranhas catedrais [...]”19

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIVROS E ARTIGOS

AVRITZER, Leonardo; BIGNOTTO, Newton; GUIMARÃES, Juarez; STARLING, Heloisa Maria Murgel. (orgs.). (2012) Corrupção. Ensaios e críticas. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG.

FAORO, Raymundo. (2000) Os donos do poder. São Paulo: Editora Globo. 2 v. (Grandes nomes do pensamento brasileiro).

LIMA, Oliveira. (2000) Formação histórica da nacionalidade brasileira. São Paulo: Editora Globo. (grandes nomes do pensamento brasileiro).

REVISTAS ELETRÔNICAS, CDs E SITES

GAZETA DO POVO. Salário mínimo deveria ser de R$ 2.519,97, avalia Dieese. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/>. Acesso em: 23 set. 2012.

VEJA.ABRIL. Senado aprova novo salário de 26,7 mil reais. Disponível em: <http://www.veja.abril.com.br/>. Acesso em: 23 set. 2012.

BUARQUE, Chico. MPB Compositores. Manaus: RGE discos; Editora Globo, s.d. 1 CD (ca. 40 min.), digital, estéreo.

19 BUARQUE, Chico. MPB Compositores. Manaus: RGE discos; Editora Globo, s.d. 1 CD (ca. 40 min.), digital, estéreo.