A prostituição, desde meados do século XIX, tem sido objeto de estudos e debates das diferentes esferas que constituem a sociedade brasileira. Todavia, para o senso comum, a sua existência é cheia de clichês e muito antiga. A sexualidade, como manifestação de uma determinada cultura, representa um grande desafio para o historiador que se propõe a investigá-la a partir dos critérios de objetividade metodológica, impostos pelas ciências humanas, a partir do século XIX.

À luz das fontes pesquisadas, deparei-me com um verdadeiro labirinto. Às vezes, sem saber por onde começar, ou até mesmo quando iria achar o caminho para a saída, entrei por vias que me levaram a ver a formação da cidade de Goiânia com os olhos daqueles que foram contemporâneos à década de 60, mas que conseguiram relativizar[1]   suas inserções naquela sociedade. 

Investiguei o fenômeno da prostituição, na cidade de Goiânia, no periódico O Cinco de Março que começou a ser editado a partir do ano de 1959, e  que no ano de 1980 se tornou o jornal Diário da Manhã. Algumas reportagens são do jornal Brasil Central e o Jornal O Popular, mas nos pautamos, principalmente, no Cinco de Março pelo seu caráter denunciativo.

Não obstante, no alicerce da pesquisa, prevalece uma abordagem referente à historiografia que trata da prostituição no Brasil e também uma abordagem  historiográfica referente ao micro processo histórico da prostituição em Goiânia.

Com base nos documentos, na historiografia geral e brasileira, procurei pontuar os momentos mais críticos e decisivos ligados à prostituição no Brasil e, assim, compará-los com os diferentes momentos históricos da sociedade.

Sabe-se, segundo Margareth Rago, que faz referência a Michel Foucault, (História da sexualidade I)[2], que a prostituição sempre suscitou interesse de médicos, juristas, criminologistas, literatos e jornalistas, desde meados do século XIX.

Outro ponto importante para nós, que investigamos a prostituição, é que ela sempre esteve intimamente ligada à preocupação com a moralidade pública e com a definição dos códigos de conduta da mulher após a revolução industrial.

Essa pesquisa tem por interesse mostrar como a historiografia abordou a prostituição no Brasil e como ela tem tratado desse tema após os anos de 1970 e 1980, com enfoque em Goiânia nas décadas de 60 e 70.

Num primeiro momento, procurarei elucidar as principais relações das mulheres públicas  com a sociedade brasileira naquilo que diz respeito às práticas sexuais ilícitas. Estabelecerei um plano de análise que possibilitará a compreensão da relação entre a expansão do mercado capitalista (século XIX e XX) e o ato “venal” do corpo da prostituta.

Num segundo momento, tentaremos demonstrar como a historiografia brasileira e a historiografia goiana trata da prostituição nos diferentes momentos de sua história no Brasil. Por isso, buscarei identificar a natureza e o caráter da “perseguição” da sociedade brasileira às meretrizes, bem como a política e o embate entre os intelectuais nas décadas de 60 e 70, na cidade de Goiânia.

Todavia, numa pesquisa dessa natureza, somos advertidos a ter em mente que há várias interpretações sobre o desenvolvimento do processo histórico ligado à prostituição. Sendo assim, é muito importante buscarmos abordagens teórico-metodológicas que permitam dar conta da complexidade desse fenômeno. O historiador jamais deve ignorá-las quando se  propõe a pesquisar um tema tão amplo.

Tecer o fio da continuidade histórica generalizando o termo prostituição, para denominar as práticas sexuais ilícitas, desde os “primórdios da humanidade” até a contemporaneidade, pode ser uma atitude enganadora (RAGO, 1991:22).

Essa historiadora debate o problema da prostituição de forma interessante para esse trabalho. A autora mostra que mesmo com tantas recriminações moralistas, o leque das práticas licenciosas que o conceito da prostituição recobre, não cessou de ampliar-se e de especializar-se até os marcos da atualidade (RAGO, 1991: 21).

Enfim, para compreender o processo que levaria a prostituição a se tornar  tão discutida, é preciso adentrar ao universo das práticas sexuais ilícitas  no cotidiano da cidade. Seus lupanares, enquanto lugar de iniciação sexual de jovens, as formas de sociabilidade ali praticadas, a condenação moral a qual era submetida a prostituta ligada à “venda do prazer”; e,  assim, entender o fio condutor da História da prostituição no Brasil e em Goiânia.

Ao lado de Margareth Rago, dialogamos com alguns autores da historiografia geral, brasileira e goiana, sempre na intenção de compreender a prostituição nos seus mais vastos significados. Para tanto, Cristiana Schettini aborda importantes questões que nos permitem fazer um paralelo das interpretações entre a “gênese da prostituição no Brasil”, nas primeiras décadas da república no Rio de Janeiro,  e, com isso, tentar fazer uma ponte com as práticas do meretrício na década de 1960em Goiânia. Aautora preocupa-se, dentre outros assuntos, em analisar o papel do Estado no controle da prostituição, as condições de moradia, os comportamentos sexuais dos trabalhadores que freqüentavam as casas de prostituição e as hospedarias da cidade (Schettini, 2006: 185).

Soma-se a esse diálogo, a obra de Carole Pateman, cientista política e professora na Universidade de Sydney que, embora não faça parte do corpo de historiadores brasileiros, trouxe muita informação pertinente para a  pesquisa.

Pateman faz um exame minucioso  do contrato sexual[3]   e o relaciona com os contratos de prostituição e de escravidão na sociedade patriarcal. Segundo ela, todos esses contratos envolveram a mulher, desde o século XVIII até à contemporaneidade. 

A pergunta da autora é: o que há de errado com a prostituição? Pateman traça um caminho interessante e chega à conclusão de que não há nada de errado com a prostituição. Sendo assim, analisaremos seus argumentos no primeiro capítulo. Ela nos informa sobre questões referentes à sociedade patriarcal que são de fundamental importância para se estudar um tema tão amplo como é a prostituição. É claro que o processo de constituição da sociedade patriarcal na Austrália, nos séculos XVII e XVIII, possui características específicas para àquela região. Todavia, comparei algumas noções que pensei ser condizentes com a sociedade patriarcal brasileira, seja naquilo que tange à noção de prostituição para àquela sociedade ou para a brasileira.  

No segundo capítulo, no qual farei uma análise do micro processo histórico, referente à disseminação do meretrício pelas ruas da cidade de Goiânia, está, basicamente, o centro da minha pesquisa.

O leitor poderá perceber que, durante o desenvolvimento do texto, a palavra “disseminação” irá permear minha escrita desde o título. O motivo que me levou a usá-lo, está ligado às constantes comparações, descritas nas fontes, das práticas sexuais ilícitas das meretrizes de Goiânia com o “mal”, com a “doença” e com a “podridão”.

Nesse sentido, parece que o termo torna-se pejorativo; entretanto, esclareço que “disseminação” tem, para o texto, o mesmo sentido de crescimento, aumento ou propagação.

Outro termo que pode parecer sem sentido, para o leitor, é: “jardim vermelho”. Achei propício nomear o primeiro capítulo por “cenas do jardim vermelho” por que é um termo usado por alguns políticos para se referirem à zona de prostituição em Goiânia em 1959. Tal fato ocorreu por que as casas de prostituição, foram “marcadas” com luzes vermelhas nas portas, para que os “clientes” das meretrizes, não confundissem as casas de “famílias” com os lupanares.

Nesse capítulo, procurarei colocar o leitor mais próximo da sociedade de Goiânia da década de 60, e assim, procurar responder algumas perguntas que fiz durante a pesquisa.

     Em suma, o presente trabalho pretende investigar qual o posicionamento da historiografia brasileira e da historiografia Goiana no tocante à mudança na abordagem das análises ligadas à prostituição através do tempo.

Constatamos, mediante as leituras das obras que discutem o tema, que há uma mudança nas abordagens, principalmente após o constante crescimento industrial e demográfico, somados aos impactos do movimento feminista após a década de 1980.

 CENAS DO JARDIM VERMELHO: DEBATES HISTORIOGRÁFICOS SOBRE A DISSEMINAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA

 1. 1 − O CONCEITO DE PROSTITUIÇÃO E A SUA RELAÇÃO COM A SOCIEDADE

Ao tratar de fenômenos históricos que manifestam a cultura de um determinado povo, incorremos, diversas vezes, no risco de cometer injustiças e anacronismos. À luz de conceitos modernos, muitas vezes, encontramo-nos num emaranhado de caminhos, um verdadeiro labirinto, sem saber por onde começar. Referimo-nos, assim, aos estudos da história da sexualidade brasileira.

Sabe-se que tanto na historiografia goiana, como na historiografia brasileira em geral, há uma vasta quantidade de obras dedicadas à prostituição, incluindo muitos relatos oficiais. Não obstante, percebemos, através das leituras feitas, que já se dedicou bastante atenção à psicologia e à psicopatologia daqueles que se prostituem. Entretanto, acreditamos que traçar uma linha para dividir os perfis dos indivíduos que se prostituem é uma tarefa difícil por serem muitos os fatores que influenciam na “decisão” de se partir para as práticas do meretrício.

Como não é nossa intenção esgotar o tema em pauta, discutiremos, doravante, apenas alguns pontos analisados pela historiografia brasileira que alicerçaram nossa análise referente às práticas ligadas à prostituição, consideradas, por vezes, ilícitas dentro de nossa cultura.

 Desejamos chegar o mais próximo possível das idéias discutidas nos textos historiográficos e nas fontes a fim de perscrutar o cotidiano das meretrizes e as relações ligadas à sociedade em que elas estão inseridas. Por que, segundo Margareth Rago:

É um universo povoado por muitos estereótipos e clichês, tudo aí é muito antigo e já conhecido, pois, acredita-se no senso comum, e não apenas nele, que a prostituição é “a profissão mais antiga do mundo”: reatualizações intemporais. Os lugares estão bem demarcados, as explicações prontas e as imagens projetadas sobre os personagens – prostitutas semi-nuas e infelizes, cáftens desalmados, caftinas gordas e endurecidas pelo tempo, fregueses devassos – parecem ter aderido aos corpos e se cristalizado. Por onde penetrar neste universo difuso? (RAGO, 1991:19).

 

Constatamos, assim, a difícil tarefa de adentrar a esse universo, a saber, o universo da prostituição; bem como se dá o relacionamento entre os indivíduos que o compõe, embora não seja nossa intenção traçar seus perfis como já mencionamos anteriormente.

Rago, ao analisar a figura da prostituta urbana na cidade de São Paulo, em 1930, observa que a prostituição configurou, a partir dessa época, um espaço visível, espetacularizado e quantificável, à medida que se tornava uma “profissão reconhecida” com a expansão do mercado capitalista, permitindo então que chefes de polícia, médicos, higienistas e juristas constituíssem um universo empírico para suas observações, classificações e análises.

O argumento da autora diz que as práticas do amor venal ganharam, nesse momento, toda visibilidade na topografia da cidade, possibilitando a constituição de saberes especializados sobre elas. Todavia, a autora destaca que construir masculinamente a identidade da prostituta significou silenciá-la e estigmatizá-la, e ao mesmo tempo defender-se contra o desconhecido, a saber, a sexualidade feminina que se aflorava.

Inicialmente, nesta perspectiva, admite a autora que junto com a especialização dos estudos sobre a prostituição e o desenvolvimento do capitalismo, surgem figuras polarizadas de prostitutas. Ou seja, aquela prostituta vitimada pelas condições econômicas adversas, sem qualificação profissional, e aquela com algum caso patológico: traumas de infância, complexos edipianos mal resolvidos ou sexualidade exuberante. Nos dois casos, a prostituta é focalizada como resposta a uma situação de miséria econômica ou como transgressão a uma ordem moral acentuadamente rígida e castradora.

Pois, segundo Rago, se a mulher prostitui puramente por motivos financeiros, comete um “sacrifício”, termo de forte conotação religiosa recorrente na literatura sobre o tema. Mas se ela se prostitui para fugir ao casamento e à monotonia da vida doméstica, aparece mais como uma figura rebelde e heróica, capaz de desafiar as imposições morais dos dominantes.

Sabe-se que a prostituição como forma de resistência “silenciosa”, tem muitos adeptos na historiografia contemporânea. Porém, tanto no caso da prostituta como vítima ou como rebelde, a sua figura sempre foi apreciada e romantizada na literatura em geral e no cotidiano das cidades, embora os levantes sociais contra o meretrício fossem freqüentes.

Antes de avançarmos, sobre as considerações de Rago referente à prostituição, verificamos aqui a necessidade de discutirmos, rapidamente, dois problemas. O Primeiro diz respeito ao conceito de prostituição, seguido de sua origem e utilização.

Para evitar anacronismos, devemos ter em mente que o conceito “prostituição” foi construído no século XIX a partir de uma referência médico-policial (RAGO, 1991:23). Sendo assim, ele não pode ser projetado retroativamente para nomear práticas de comercialização sexual do corpo feminino. É imprescindível saber que o conceito é saturado de conotações extremamente moralistas e é associado à imagem da sujeira, do esgoto, da podridão e de tudo aquilo que diz respeito a uma dimensão rejeitável na sociedade (RAGO, 1991:54).

A prostituição, grosso modo,  é a utilização do corpo de uma mulher, mediante pagamento e consentimento por parte dela, por um homem para sua própria satisfação. Contudo, não há desejo ou satisfação por parte da prostituta; ou seja, a prostituição não é uma troca prazerosa e recíproca da utilização dos corpos, mas a utilização unilateral do corpo de uma mulher por um homem em troca de dinheiro (PATEMAN, 1988:291).

Parece ser simples, porém, a discussão sobre a prostituição se faz presente na historiografia, literatura e também no imaginário do povo. Sendo assim, podemos observar que o fenômeno da prostituição está situado aquém de um conceito enquadrado e cristalizado. Logo, exclui-se, então, a possibilidade de se pensar em interpretar  tal fenômeno numa escala  senso comum, sendo necessário, assim, uma investigação criteriosa para compreendê-lo.

Não podemos desprezar também a grande construção de espectros culturais abrangendo, desde “tempos remotos”, até o presente, tudo aquilo que se convencionou chamar de prostituição. Talvez seja por isso o uso do clichê, pelo senso comum, “a mais antiga das profissões”.

 Carole Pateman conclui, ao investigar uma sociedade patriarcal em Sidney, na Austrália, que as mulheres, seus corpos e suas paixões carnais, representam a “natureza” a ser controlada e superada para que a ordem social seja criada e mantida.

A partir dessas questões, vemos a necessidade de esclarecer como aconteceu a disseminação das prostitutas pelas cidades brasileiras após o século XIX.

Afirmar que a prostituição surgiu a muito tempo atrás e é, categoricamente, a profissão mais antiga do mundo é fácil, pois, não exige nenhum tipo de análise ou construção histórica. Mas, a exemplo de Cristiana Schettini que analisa as práticas sexuais na cidade do Rio de Janeiro no século XVIII, vimos que a gênese do processo requer um estudo minucioso para se consolidar e ganhar forma:

Os processos de lenocínio iniciados nos anos que seguiram à aprovação do Código Penal republicano são resultado, sobretudo da ação seletiva da polícia, decidida a investir contra uma modalidade de prática sexual (prostituição) específica, a de janela, que se concentrava num ponto da cidade[...] Ao mesmo tempo, muitas das mulheres que de um jeito ou de outro se viram obrigadas a deixar suas residências engrossaram os números das que freqüentavam as chamadas casas de rendez-vous ou as hospedarias da região, mediantes aos mais variados acordos com os donos. A prática sexual exercida nesses estabelecimentos marcou a dissociação entre o local de moradia e o de trabalho, o que era uma novidade para muitas dessas mulheres (SCHETTINI, 2006: 194) 

 

A partir dos argumentos da autora, ao estudar o lenocínio, verificamos que a complexidade ligada à prostituição nos remete a várias mudanças sociais e estruturais dentro da cidade. Segundo ela, as mudanças nos locais de “prostituição” foram percebidas por muitos contemporâneos à época, como uma dispersão das prostitutas pela cidade. Assim podemos notar, também, a importância da divisão entre o espaço público e privado para  aquela sociedade.

Quando lia o trabalho de Cristiana Schettini, para entender um pouco a História social da prostituição e a divisão dos espaços que as prostitutas ocupavam na cidade, fui remetido à afirmação de Roberto DaMatta:

O espaço se confunde com a própria ordem social, de modo que, sem entender a sociedade com suas redes de relações sociais e valores, não se pode interpretar como é concebido. Aliás, nesses sistemas, pode-se dizer que o espaço não existe como uma dimensão social independente e individualizada, estando sempre misturado, interligado ou ‘embebido’.  (DAMATTA, 1991:34).

 

Roberto DaMatta, em sua obra A Casa e a rua, faz referência a Gilberto Freyre, primeiro autor a usar a casa e a rua como espaços importantes na sociedade brasileira. O primeiro autor propõe ser a casa uma metáfora da própria sociedade brasileira. Por que nos domínios da casa, segundo ele, a sociedade ganha vida. Daí a importância em se compreender a divisão entre os espaços e os tempos. Pois, segundo DaMatta, podemos sentir o tempo como algo concreto e a transformação do espaço como um elemento socialmente importante. Acreditamos ser fundamental essa idéia para pensar um pouco como foi concebida a disseminação das prostitutas pelas cidades. Não obstante, como a sociedade recebeu a mudança entre a divisão do espaço com as “mulheres de vida livre”.

Quando Cristiana Schettini traz para o debate a modalidade de “prostituição de janela”, sutilmente, percebe-se daí que a janela faz a ligação do espaço privado da casa com o espaço público da rua (DAMATTA, 1991:63).

[...] eis aqui as janelas servindo como mediação entre o espaço interno das casas e o espaço externo da rua. [...]até hoje a sociedade parece fiel à sua visão interna do espaço da rua como algo movimentado, propício a desgraças e roubos, local onde as pessoas podem ser confundidas com indigentes e tomadas pelo que não são.[...] Nada mais dramático para alguém de “boa família” ser tomado como um “moleque de rua”; ou uma moça ser vista como uma “mulher da vida” ou alguém que pertence ao mundo do movimento e do mais pleno anonimato. Fazemos uma equação reveladora entre o “ninguém conhece ninguém”, o “ninguém ser de ninguém” e estados sociais altamente liminares como a boemia, o carnaval e, evidentemente, a pré-criminalidade (DAMATTA, 1991:63).

 

DaMatta trata o espaço da casa como um “mundo” e o espaço da rua como um “outro mundo”. Todavia,

Há também espaços transitórios e problemáticos que recebem um tratamento muito diferente, Assim, tudo o que está relacionado ao paradoxo, ao conflito ou à contradição – como as regiões pobres ou de meretrício – ficam num espaço singular. Geralmente são regiões periféricas ou escondidas por tapumes. Jamais são concebidas como espaços permanentes ou estruturalmente complementares às áreas mais nobres da mesma cidade, mas são sempre vistas como locais de transição: “zonas”, “brejos”, “mangues” e “alagados”. Locais liminares, onde a presença da lama marca um espaço físico confuso e ambíguo. (DAMATTA, 1991:63).

 

Ao perceber esse “inter-espaço” problemático, que faz referência à prostituição, DaMatta argumenta que, no caso da sociedade brasileira, o que se percebe, muitas vezes, é apenas um pedaço de um sistema diferenciado. Assim, as ações contraditórias dependem do espaço onde o indivíduo se encontra. O autor exemplifica assim: se entrevistarmos um brasileiro comum em casa, ele pode falar da moralidade sexual, dos seus negócios, de religião ou da moda de maneira radicalmente diferente daquela que usaria caso estivesse na rua. Na rua, ele seria ousado para discursar sobre a moral sexual, seria prudente ao mencionar seus negócios e ultra-avançado ao falar de moda. Provavelmente ficaria querendo ouvir para se pronunciar sobre religião. Em casa, porém, seu comportamento seria, em geral, marcado por um conservadorismo palpável, sobretudo se fosse um homem casado e falando de moral sexual diante se suas filhas e mulher. (DAMATTA, 1991: 51)

Assim como DaMatta relaciona os espaços da casa e da rua, Cristiana Schettini, em sua narrativa, mostra como as prostitutas “criaram” seu mundo social e político, no início da república, no Rio de Janeiro. Sua obra é interessante, na medida que desvenda peculiaridades sobre os mistérios das “trabalhadoras do sexo” pela cidade. A autora analisa que, esse universo, era diferente daquele que povoava a literatura da elite na belle époque. Segundo ela, algumas trabalhadoras do sexo, usavam esse imaginário para galgar posições numa complexa “hierarquia profissional”. Contudo, a exclusão social era muito presente, pois, socialmente, a idéia da sujeira, do esgoto e da podridão, sugerida por Rago, foi construída de forma muito forte no imaginário do povo brasileiro.

À luz da pesquisa original, que ilumina o cotidiano das “trabalhadoras do sexo” nas primeiras décadas da República, Schettini reavalia fontes tradicionais. Ela mostra, por exemplo, que as narrativas sobre o tráfico de mulheres, que incluem fontes contemporâneas e estudos recentes, o descrevem como um fenômeno ligado à “modernidade”, mas ignoram a continuidade na história nacional e internacional da prostituição, bem como a relevância da história recente de escravidão sexual no Brasil. Analisando ambas, Schettini mostra que a história do gênero e classe no Brasil vai explicar por que a prostituição era uma parte socialmente aceitável da vida social masculina no Rio de Janeiro.

Voltando, contudo, ao aspecto social, sugere Rago que a prostituição, em cada um desses aspectos, deve ser relativizada, pois:

Contra ela, levantaram-se as vozes competentes dos homens cultos, advertindo contra os perigos de contaminação física e moral que representavam para o equilíbrio da sociedade; das feministas, preocupadas em conquistar o direito de ingresso na esfera pública, sem a identificação com a licenciosidade das “mulheres alegres”; das famílias “respeitáveis”, reivindicando maior controle e censura da moralidade pública  (RAGO, 1991:37).

 

Dentro dos aspectos “negativos” da prostituição, segundo os autores citados anteriormente, vimos que existem inúmeros problemas que constituem esse tema: contaminação física, moral, patologias, divisão do espaço público entre prostitutas e “sociedade em geral”, dentre outros. 

Ora, mas será que não há abordagens “positivantes” relacionadas à prostituição? O que dizer delas nas diversas abordagens historiográficas brasileira?  Teve a prostituição outras leituras? Ou as personagens, “prostitutas”, seriam outras?

Considerando a diversidade de interpretações acerca da prostituição, seja ela positiva ou negativa; penso que qualquer divergência não pode ser entendida como um erro de interpretação de uma em função da outra. Pois, segundo Margareth Rago:

Embora tenha suscitado reações de grande ansiedade por parte de alguns setores da sociedade, o mundo da prostituição foi marcado por toda uma auréola de mistérios, fascínio e atração. Nele se configurou uma importante rede de sociabilidade: fluxos que circulavam entre os cafés-consertos, cabarés, “pensões chics”, teatros e restaurantes, congregando artistas, músicos, coristas, dançarinas, boêmios, gigolôs, prostitutas estrangeiras e brasileiras, seguidas por toda uma corte de empregados, responsáveis pela infra-estrutura de serviços: choferes, garçons, arrumadeiras, cozinheiras, manicuras, costureiras, porteiros, “meninos de recado (RAGO, 1991:155).

 

Aqui, segundo a autora, nascia  a zona do meretrício propriamente dita, com sua geografia  e seus modos específicos de funcionamento: códigos, leis e práticas, que configuravam uma cultura e espaço diferenciados. Modinhas que não se cantavam nas casas de famílias eram difundidas entre a população, com irônicas alusões ao cotidiano do submundo, às relações amorosas que envolviam conhecidas figuras da sociedade, aos tipos marginais populares, às mulheres exuberantes, aos “casos” famosos. Revistas e versos pornográficos, muitas vezes assinados por pseudônimos de senhores responsáveis, compunham uma literatura erótica que fazia sucesso, levando Monteiro Lobato a afirmar com perplexidade: “Nunca se vendeu bem um livro neste país exceto os pornográficos”. (RAGO, 1991:167).

Margareth Rago privilegia a função civilizadora da prostituição e afirma que nos bordeis da cidade de São Paulo, na década de 1930, encontrava-se, todas as formas de sociabilidade e vivências. Descreve as transformações dos costumes no mundo da prostituição e, não obstante, mostra como os romancistas valorizavam e idealizavam as prostitutas em seus romances.

A autora mostra também que muitos pais eram preocupados com a sexualidade de seus filhos. Assim, embora persistisse o medo latente de que a juventude se corrompesse no vício e não conseguisse controlar seus impulsos na fruição do prazer, a função da prostituta era bem-vinda pela sociedade burguesa, por que além de garantir o futuro do desempenho masculino como maridos e como pais, garantiria também a castidade das futuras esposas, seus filhos e netos.

A prostituição preenchia ainda um papel “civilizador” na sociedade, porque aí se realizava a iniciação sexual dos rapazes, rito de passagem para sua abertura à alteridade. Alternativa para a preservação da virgindade das moças e da castidade das esposas, como se argumentava, a prostituição era parcial e ambiguamente aceita como lugar onde os jovens poderiam saciar os impulsos ardentes de uma fase de sua vida, para depois assentarem-se e permanecerem casados. A sexualidade masculina deveria ser despendida nesse momento da vida jovem, para que depois o homem se dedicasse exclusivamente ao lar e à vida racional dos negócios. Portanto, ao mesmo tempo que era percebida como mulher desregrada, a prostituta figurava como aquela que poderia modelizar as pulsões sexuais dos jovens, ainda em estado bruto. Função libertina e religiosa, a iniciação sexual significava uma ordenação das pulsões instintivas consideradas ameaçadoras. Daí a ambigüidade que caracterizou a relação da sociedade normalizada  com o universo explosivo dos prazeres ilícitos, ao mesmo tempo desejado, plano de mistérios e de vida.” (RAGO, 1991: 169)

 

A partir do contato com o mundo boêmio, os jovens, na ocasião da “passagem” para a vida adulta, com a permissão e “ajuda dos pais”,  seriam, segundo a autora,  modelizados, para  assim, viverem em sociedade com suas pulsões sexuais já controladas.  Ora, grosso modo (e a autora não está interessada em descrever pormenores dessa “transição”), nesse sentido, a prostituição  configura-se, na idéia dualista do “bem” e  do “mal”, presente há muito, nas religiões, ao longo do tempo.

Uma vez que a idéia do bem e do mal é associada à prostituição, os espectros, com relação a ela, são originados dentro da sociedade. Assim fica mais fácil entender o porquê a prostituta, ora é vista como o mensageiro do mal (demônio), e ora, como necessária para o bom funcionamento da vida em sociedade.

 Margareth Rago, em seu estudo sobre o imaginário da sexualidade feminina e a prostituição na Belle Époque paulistana, remete-nos à emergência de novas imagens sobre as mulheres. Como mulheres respeitáveis, mulheres de “vida airada”, mulheres fatais. Acompanhadas de mulheres vitimizadas aos novos padrões de consumo de uma sociedade que passava por um processo de modernização, crescimento econômico, explosão demográfica, “desterritorialização das subjetividades[4]”, expansão capitalista e de desenvolvimento urbano-industrial (RAGO, 1991:171).

Não obstante, Lena Medeiros de Menezes, ao investigar as expulsões de estrangeiros nas primeiras décadas do século XX, reitera essa associação entre prostituição e modernidade. A autora relaciona o delito de lenocínio com desenvolvimento mundial do capitalismo e o imperialismo europeu. A generalização das relações mercantilistas nesse período transformaria as prostitutas em “mercadorias” e em verdadeiras “escravas”, expondo as contradições da ordem capitalista que se expandia pelo mundo.

A despeito de adotarem perspectivas teóricas e metodológicas diferentes, as duas autoras tenderam a interpretar de modo semelhante os relatos sobre mulheres forçadas a se prostituir em São Pauloe no Rio de Janeiro. Ambas enfatizaram a dimensão da “desterritorialização”, termo empregado por Rago, que marcaria a vida das prostitutas, quer no imaginário social da relação entre cáften e prostituta (Rago), quer nos fragmentos dessas relações registrados nos processos de expulsão (Menezes).

Para Menezes,

[...] prostituída, a mulher raramente iniciava um caminho de volta, quer por conta da moralidade vigente, quer por conta das redes de aprisionamento, quer por conta dos novos mundos e sensações descortinados pela nova vida e interditados à mulher que se destinava ao lar (MEDEIROS, 1996: 132).

 

Segundo Rago,

O gigolô sem rosto, ou os cáftens faziam a prostituta abortar todos os sonhos e potencialidades de estabelecer vínculos afetivos mais duradouros e equilibrados – com um amante ou com um filho – e desistir de quaisquer outras aspirações de vida. [...] Nesse sentido, ele reforça sua dependência emocional, impondo-se como referência necessária, ponto fixo em torno do qual ela deveria girar. (RAGO, 1991:279)

 

Tanto a associação entre prostituição e modernidade como a percepção da  “desterritorialização” e dependência das mulheres envolvidas com a prostituição, já estavam presentes em relatos produzidos na década de 1920. Dentre esses relatos, na vertente nacional, é conhecido o relato produzido pelo jornalista Ricardo Pinto (1930) a respeito da atuação dos cáftens franceses no Rio de Janeiro, que entre outros, fazem parte de um período de fortalecimento de discursos nacionalistas, sobre a prostituição, em várias partes do mundo (SCHETTINI, 2006:107)

Não podemos ignorar a idéia de que o problema da prostituição começa a ser posto, em termos, quantitativos e qualitativos na cidade de São Paulo e no Brasil. Pois, é inegável que a partir do ano de 1930 o bordel e o cabaré adquiriram uma importância na vida social da cidade. (RAGO, 1991: 176). Segundo a autora, já era grande o número de proprietárias de “pensões alegres” e “rendez-vous” que ficaram famosas na história da cidade (RAGO, 1991: 176). 

Embora não haja como negar que a prostituição comece a ser mais intensa, nesse período, no cenário urbano em geral, isso não traduz, segundo Rago, um abrandamento das exigências morais. Ao contrário, quanto mais a mulher escapa da esfera privada da vida doméstica, tanto mais a sociedade burguesa lança sobre seus ombros o anátema do pecado, o sentimento de culpa diante do abandono do lar, dos filhos carentes, do marido extenuado pelas longas horas de trabalho. Todo um discurso moralista e filantrópico acena para ela, de vários pontos do social, com o perigo da prostituição e da perdição diante do menor deslize (RAGO, 1985:63),

A prostituição configurou um espaço visível, espetacularizado e quantificável, à medida que se tornava uma profissão reconhecida com a expansão do mercado capitalista, permitindo então que chefes de polícia, médicos, higienistas e juristas constituíssem um universo empírico para suas observações, classificações e análises (RAGO, 1991: 78)

 

Rago não analisa somente a parte quantitativa da prostituição, mas envolve também, outros conflitos que nos ajudam a pensar o meretrício de forma mais empírica. A autora mostra que a construção do mito da mulher passiva e ociosa, criou grandes dificuldades para se conhecer a história da condição feminina no Brasil, quer estejamos tratando da “mulher normal”, quer da prostituta. Sabemos que nos últimos vinte anos, a condição feminina no Brasil tem sido muito discutida (DEL PRIORE, 1995:16). Mesmo assim, a imagem dos diferentes tipos de mulher (classe, idades e etnias) permaneceu inquestionável durante todo o século XIX (RAGO, 1991:58). Somente nos anos 20 é que se define o ideal da nova mulher: magra, agilizada e moderna (RAGO, 1995:78).

Margareth Rago busca nos relatos de Expilly, viajante francês do século XIX, uma explicação para a condição da mulher no Brasil na época em que o relato foi escrito.

No Brasil as mulheres têm um único e mesmo rosto – enérgico, apaixonado, mais duro do que graciosos – porque elas todas exalam o mesmo aroma violento. Os perfumes delicados que provocam langores voluptuosos, sonhos inebriantes não poderiam convir a estas naturezas impacientes, criadas para as satisfações imediatas (CHARLES EXPILLY, 1862:76)

 

Embora o cenário no Brasil, referente à prostituição, segundo os autores mencionados, tenha indicado mudanças consideráveis quanto à especificidade e quantidade; segundo Expilly, a mulher brasileira, no século XIX, não abandona a sua peculiaridade e condição de subordinação ao homem. Ou seja, grosso modo, para o viajante, nessa época, a mulher é criada, apenas, para satisfação do homem.

Todavia, pensando nos anos 30, segundo Margareth Rago, podemos analisar aquilo que é concebido como  prostituição numa visão mais pormenorizada e menos subjetiva da figura da prostituta. Dessa forma, a autora relata que no começo do século XX, o bordel viabilizava novos agenciamentos coletivos dos fluxos desejantes. Assim, novas formas de expressão do desejo podiam dar-se passagem. Ao analisar o romance, Vertigem, de Laura Vilares, publicado em 1926, Rago verifica que a abordagem sobre a prostituição numa perspectiva feminina nos introduzirá numa atmosfera dionisíaca. A autora diz que a dança do ventre, acompanhada de strip-tease, faz parte das apresentações que embriagam essa sociedade da Belle-Époque. Assim, é perceptível, a partir daí, a divisão entre a sexualidade conjugal, encerrada no quarto de cada casal, e a sexualidade prostituída, pecaminosa, paga, porém, muito mais excitante e violenta (RAGO, 1991: 191)

A análise que a autora faz das leituras de viajantes, romancistas e outros autores clássicos, sobre o tema da prostituição, sugere que o termo também varia quanto à percepção que lhe é dada, isto é, a forma como o personagem é analisado proporciona essa ou aquela conclusão sobre a cena como um todo. No caso do romance, há um fascínio pelo “show” da prostituição, ao contrário do repúdio da sociedade nas décadas subseqüentes, em se tratando do cotidiano, que será discutido no próximo capítulo.

Finalmente, gostaria de fazer menção à obra de  Carole Pateman, que irá fechar, em nossa pesquisa, essa “viagem historiográfica” pelo mundo da prostituição.

Pateman, ao estudar o contrato sexual dentro de uma sociedade patriarcal na Austrália, questiona-se sobre o que haveria de errado com a prostituição. A autora mostra que no patriarcado moderno (século XIX) existe uma variedade de meios pelos quais os homens mantêm os termos do contrato sexual. Segundo ela, o contrato de casamento, para a sociedade patriarcal, é fundamental para que os homens tenham acesso aos corpos das mulheres. Porém, o casamento, com o passar dos tempos, torna-se apenas uma das formas, dentre as aceitáveis, para os homens terem esse acesso garantido. Segundo ela, a prostituição é parte integrante do capitalismo, por isso, além dos “arranjos privados” ( viver junto, sexo casual), há um enorme e milionário comércio de corpos femininos. Mas, apesar de disso, o caráter público da prostituição é menos explícito do que poderia ser (PATEMAN, 1988:279). A autora mostra como a prostituição é, a exemplo de outras formas de empreendimentos capitalistas, um empreendimento privado. O contrato entre cliente e prostituta é visto como um acordo particular entre comprador e vendedor. Nessa perspectiva, segundo a autora, a prostituta detém a propriedade em sua pessoa e contrata parte dessa propriedade no mercado. Uma prostituta não vende a si mesma ou mesmo seus órgãos sexuais, como normalmente se admite, mas contrata o uso de serviços sexuais (PATEMAN, 1988:297). Nesses termos, o corpo e o ser da prostituta não são oferecidos no mercado, ou seja, ela pode contratar o uso de seus serviços sem danos para ela. Entenderemos essa idéia mais adiante.

Percebemos que Pateman deixa um problema sem resposta. Afinal, o que dizer da violência contra as prostitutas ao contratarem os serviços sexuais?

Assim como Margareth Rago, numa citação anterior, mostra os “pontos positivos” da prostituição, Pateman é acorde.

A sujeição sexual das esposas nunca deixou de ser defendida, mas até bem recentemente era difícil encontrar uma defesa incondicional da prostituição. Esta era encarada, por exemplo, como um mal necessário que protegia as jovens do estupro e protegia o casamento e a família dos desvarios do desejo sexual dos homens; ou como uma conseqüência lamentável da pobreza e das restrições sociais enfrentadas pelas mulheres que tinham de se sustentar (PATEMAN, 1988:299).

 

Talvez o fato da autora não entrar diretamente no caso da violência contra a prostituta afirmando que, para os contratualistas, a prostituta pode contratar os serviços sem perigo para ela, seja proposital. Digo isso, porque ao ler o contrato sexual, verifiquei que, nesse argumento, está implícito que a instituição da prostituição é apresentada como uma extensão natural do instinto humano. Ou seja, os homens reivindicam que suas satisfações do desejo “sexual natural” tome a forma de acesso público aos corpos das mulheres no “mercado” em troca de dinheiro.

Ora, seguindo o raciocínio que vê a prostituição como mera expressão de um desejo natural, é inevitável a comparação do “sexo sem amor” com as questões referentes à  violência. Tudo isso, é claro, num dado momento do contato entre “cliente” e “prostituta”. Sendo assim, numa relação tão efêmera podem acontecer reações hostis por parte do contratado ou da contratante.

Percebemos também que na visão da pesquisadora, na estrutura da “instituição” da prostituição, para os contratualistas:

[...] as ‘prostitutas’ estão submetidas aos ‘clientes’, exatamente como as ‘esposas’ estão submetidas aos ‘maridos’, na estrutura do casamento. O que há de diferente é que enquanto a esposa se submete a um homem que irá ‘defendê-lá’ de todos os outros; a prostituta é defendida por ‘todos’ contra a tirania de um marido (PATEMAN, 1988:286).

 

Como qualquer discussão sobre a prostituição sempre está repleta de “problemas”, acreditamos que na perspectiva dos autores analisados nessa pesquisa, há uma linha que perpassa  sempre pela idéia do “bem” e do “mal” ligados à prostituição.

Verificamos assim que de um lado, há a  prostituição suja e abominada pela sociedade, que  tenta “reconstruir” sempre uma memória que afirme e sustente os valores morais (RAGO, 1991:41). De outro lado, temos a prostituição luxuosa que fascina e sustenta os ideais daqueles que acreditam no status que as práticas sexuais ilícitas podem dar (SCHETTINI, 2006:93).

Ao lado dessas duas interpretações, temos ainda que verificar a hipótese daqueles que vêem a prostituição como um “mundo intermediário” entre os valores morais e a ascensão econômica, como sugere DaMatta, ao fazer o paralelo da casa e da rua com os espaços privado e o público.

Ora, se, hipoteticamente, por um lado a prostituição possibilita que as mulheres ganhem mais dinheiro do que ganharia qualquer outro tipo de trabalhadora, como sugere Pateman, há de se considerar os riscos inerentes ao “trabalho”. Não descarto aqui os riscos aos quais está submetido qualquer outro trabalhador, mas refiro-me aos relacionados às doenças infecto-contagiosas, seja qual for o recorte que façamos para a pesquisa.

Em sua concepção sobre a prostituição, Pateman alega que ela é uma característica universal da sociedade humana e se apóia no pressuposto amplamente mantido de que a prostituição se origina da necessidade sexual natural dos homens. Mesmo sendo uma afirmação complicada, em se tratando da prostituição,  a autora mostra como o instinto natural e universal (masculino), necessita da válvula de escape fornecida pela prostituição. Para tanto ela faz uma comparação entre a prostituição e a alimentação. Todavia, ela diz que não pretende argumentar em favor da prostituição ou qualquer outra forma de relacionamento sexual, apenas estabelece uma diferença entre uma das necessidades vitais humanas e a relação sexual.

Sendo assim, segundo uma visão pragmática, afirmar que todos nós precisamos de alimentos; portanto, os alimentos têm que estar disponíveis, ao nosso consumo, é fácil. Agora, dizer que os nossos desejos sexuais são tão fortes como quanto nosso desejo por comida, não quer dizer, grosso modo, que o mesmo se aplica a eles.

Segundo Pateman, sem o mínimo de comida ou água, as pessoas morrem, mas ninguém morre por não ter os seus desejos sexuais satisfeitos. Ás vezes, pode não existir alimento disponível, mas todas as pessoas têm os meios para satisfazer seus desejos sexuais à mão (PATEMAN, 1998:287). Não há uma necessidade natural de se envolver em relações sexuais ilícitas para aliviar aflições sexuais. O que pode ocorrer, na vida em sociedade, é a restrição cultural à utilização de certos meios. Contudo, nenhum ser humano irá deixar de sentir fome ou de ter instinto sexual, analisa a autora.

Enfim, qual seria, então, o problema maior com relação à prostituição nos séculos XIX e XX?

Para Pateman, uma questão muito importante e que merece atenção, é o fato de que, depois do século XIX, parecem ficar óbvias as atividades que se enquadram neste rótulo. Todavia, a prostituição, a partir do século XX, faz parte de uma indústria internacional do sexo.  Inclui a difusão de livros, filmes pornográficos, a oferta de clubes de strip-tease e a venda de excursões sexuais. Assim, a satisfação de um “simples” desejo sexual não exige que um homem tenha acesso direto ao corpo de uma mulher. Segundo Pateman, as atividades, que podem ser corretamente chamadas de prostituição são “o ato sexual” e as atividades a ele ligadas, tais como “o alívio natural” e o sexo oral (PATEMAN, 1988:293).

Em suma, verificados alguns dos problemas concernentes ao desenvolvimento da prostituição ao longo dos séculos XIX e XX, dentro dos debates historiográficos em geral, buscaremos, no segundo capítulo, compreender a natureza do problema da prostituição ligada ao cotidiano da cidade de Goiânia, nas décadas de 1960 e 1970.



[1] Conceito usado por Roberto DaMatta para entender, o exótico, o distante, o diferente, o “outro”.

 

[2] Nessa obra, Foucault investigou como se constituiu, no século XIX, nas sociedades ocidentais modernas, a noção de sexualidade.

 

 

[3] Contrato  da dominação dos homens sobre as mulheres séc. XVIII. É uma história da sujeição na mesma proporção da dominação dos brancos sobre os negros ( PATEMAN, 1993:16).  

[4] Processo no qual a mulher busca colocar-se fora dos parâmetros normalizados do percurso feminino (RAGO, 1991: 200).