Victor Silveira S. Schneider 

 Resumo

        O presente trabalho visa elucidar sobre o Instituto da Emendatio Libelli previsto no artigo 383 do CPP e sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito. Primeiramente será abordado sobre o instituto em si, seu funcionamento. Noutra oportunidade será feito uma breve reflexão sobre sua inaplicabilidade no paradigma democrático, haja vista que sua criação se deu em num período ditatorial não sendo recepcionado pela Constituicao Federal de 1988.

 

Palavras-chave: Emendatio libelli. Estado Democrático de Direito. Inaplicabilidade.

 

1.Introdução

 

            O presente assunto que será abordado é de grande relevância devido ao fato de que vigem em nosso ordenamento jurídico leis já ultrapassadas, não condizentes com um paradigma de Estado que privilegia direitos e garantias fundamentais como o contraditório e a ampla defesa.

    O Código de Processo Penal, datado de 1941, e os institutos nele abordado não possui respaldo num Estado Democratico, por isso, de grande valia é o entendimento por meio do qual não há como haver a aplicação do Instituto da Emendatio Libelli devendo ser este, bem como vários outros abolidos do nosso ordenamento através do anti-projeto do CPP.

    Dessa forma, o debate busca-se indagar sobre a efetiva aplicação da Ementatio Libelli demonstrado a sua inconstitucionalidade tendo em vista o paradigma Estatal contemporâneo.

 

2. O Instituto da Emendatio Libelli

 

          Descrito normativamente no artigo 383 do CPP, a Emendatio Libelli é a faculdade do magistrado em dar ao fato delituoso previsto na denuncia ou queixa capitulação diversa, ainda que em conseqüência tenha que ser aplicada pena mais grave. Assim se retira do texto normativo:

 

Artigo 383 do CPP

O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poder  atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.

    Esta atividade exclusiva do magistrado se dá depois da instrução criminal, logo após a fase das diligencias e das alegações finais. Neste momento, o juiz verifica se os fatos trazidos na peça de ingresso da ação penal, não subsumem as circunstancias do crime capitulado na acusação ou queixa.

   Se entender que o crime previsto não condiz com a realidade, haja vista estar demonstrado, de forma implícita, outro fato típico, dará o magistrado aos fatos narrados capitulação diversa mesmo sendo esta mais grave.

    No entanto, vale frisar que o juiz modificará apenas os elementos que qualificam aquele tipo penal, devendo manter inalterado o fato descrito na peça exordial, reconhecendo somente as qualificadoras, agravantes e causa de aumento de pena. Tudo isso feito ex oficio e inaudita autera parte.

    Esta ação praticada pelo órgão judicante justifica-se pelo principio do “ jura novit curia”, este chancelando o principio “narra mihi factum dabo tibi jus”. Neste sentido, “aplica-se tal princípio no processo para se explicar que o acusado não se defenda da capitulação dada ao crime na denuncia, mas sim nos fatos narrados na referida peca acusatória” (Michel, Danielli Coelho Apud CAPEZ,1997, p.373; TOURINHO FILHO, 1995, p. 201).

    Dessarte, a correção da peça acusatória pelo juiz se dá por meio do principio da correlação, ou seja, principio que assevera que deve haver uma estrita relação entre o fato delituoso descrito na exordial e o fato pelo qual o acusado é condenado. Isso ocorre para que não haja um julgamento ultra, extra e citra petita, anulando, assim a sentença.

    Diante do exposto, portanto, poderá o magistrado, com fulcro nos princípios da correlação, jura novit cúria e narra mihi factum dabo tibi jus, estabelecidos no artigo 383 do CPP, atribuir definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.

 3. Da Incompatibilidade da aplicação da Emendatio Libelli no paradigma do Estado Democrático de Direito

    Cediço é que o Código de Processo Penal é datado de 13 de outubro de 1941, elaborado na constituição vigente de 1937 sendo que, à época, diferente era o paradigma de estado, estávamos enraizados em um regime ditatorial.

    E nem há que se falar ainda na justificação dada pelo Ministro Francisco Campos naquele tempo de que o novo CPP, de 1941, determinava uma coordenação sistemática das regras do processo penal, a fim de unificar o instituto uma vez que cada estado da Federação detinha o seu próprio código. Neste sentido, a intenção foi de intensificar a ação coercitiva do Estado a partir da unificação dos códigos que retiravam os privilégios daqueles que delinqüiam, haja vista os códigos de cada estado serem um estimulo à criminalidade, segundo as palavras do ex Ministro, "as nossas vigentes leis de processo penal asseguravam aos réus [...] um extenso catálogo de garantias e favores" (Michel, Danielli Coelho, 2009, p. 614),  tornando defeituosa e retardatária as leis penais.

    Nestes termos, não há que se falar na possibilidade do magistrado dar capitulação diversa ao libelo em nosso novo paradigma, haja vista que, tal fato, infringirá frontalmente o princípio da legalidade e proporcionalidade, bem como estaria violando o disposto no artigo 93  IX da Constituição Federal, haja vista que a decisão pela modificação do tipo penal seria infundamentada, e, como se não bastasse, o princípio do contraditório e ampla defesa uma vez que a decisão é inaudita autera parte.

       Somente por consideração à argumentação, poderíamos ainda especular a injustificação da aplicabilidade do instituto em questão, uma vez que este não estaria condizente com a teoria da argumentação, esta, em vista do Instituto da Emendatio Libelli, nem mesmo sendo possível. O que haveria somente seria o auge do ativismo judicial, vez que o instituto é justificado pela premissa que o juiz conhece o direito (jura novit curia).

     Ainda assim, no Estado Democrático de Direito, a jurisdição não é a atividade jurídico-resolutiva pessoal do magistrado, mas sim, o conteúdo das leis conduzido pelas partes, não sendo o juiz livre intérprete da lei, mas deve se ater aos liames do pedido sendo, portanto, imparcial.

    Neste sentido pode-se afirmar que tanto as partes quanto o juiz exercem a jurisdição, devendo ser respeitados as particularidades de suas atuações, nisso se formaria o Estado Democrático de Direito é a jurisdição.

     Pode-se concluir que o Instituto da Emendatio Libelli carrega em si uma doutrina não aceita na nossa contemporaneidade, pois, foi gerado em um Estado repressor e ditatorial.

    Sendo assim indaga-se sobre a possibilidade do juiz, como um aplicador da lei, e não livre intérprete, ditar qual direito que deve ser aplicado. Se assim o fizesse estaria prejulgando, sendo dessa feita, parcial e não levando à cabo a presunção de inocência, bem como de que as provas e a verdade será esclarecida ao decorrer do processo, produzidas pelas partes. Oposto a tal entendimento podemos ainda nos reportar ao principio da verdade real, este também que privilegia o ativismo judicial e que atribui ao juiz à busca de provas, função esta das partes, no entanto, reportamo-nos novamente ao assunto em questão, deixando noutra oportunidade este debate.

     A despeito da vinculação do magistrado à capitulação do tipo penal tem-se a indagação feita por Rosemiro Pereira  Leal, no seguinte sentido:

    Em um Estado Democrático de Direito,no qual o juiz não é livre intérprete da lei, mas sim o aplicador da lei como intérprete das articulações lógico-jurídica produzidas pelas partes construtoras da estrutura procedimental; no qual o Estado não o ente que orbita ou exorbita a lei, mas sim uma Instituição criada pela lei e a serviço desta; no qual a jurisdição significa a atuação dos conteúdos da lei ao proferir as decisões judiciais em nome do Estado  poder-se-ia admitir que o juiz, única e exclusivamente,determinasse qual o direito a ser aplicado?(LEAL, 2005, p. 73,77, 248)

    Tal possibilidade, como já dito alhures, abriria a possibilidade de prejulgamentos, não considerando que as provas são apresentadas ao longo do processo sustentando, assim, a presunção de inocência.Nestes termos temos que:

    E ao criar uma espécie de interpretação ex vi legis (impositiva), parte-se de algum modo do pressuposto de que o direito já está previamente dado, especialmente com a denúncia e a participação do órgão da acusação, quando, em verdade, o crime é socialmente construído durante a ação penal inclusive, por meio dos elementos de prova produzidos na instrução, de modo a provar a prática de uma infração penal (típica, ilícita, culpável e punível) imputável objetiva e subjetivamente aos seus autores. (QUEIROZ, Paulo, 2008)

    Por todo exposto, o Estado Brasileiro, pela égide da Carta Magna, erigiu como paradigma o Estado Democrático de Direito, não podendo ser suportado pelos cidadãos decisões que cerceiem direitos fundamentais de ampla defesa e ao contraditório no momento em que o poder judiciário utiliza-se de institutos não recepcionados pela Constituição Federal. Pode-se afirmar que o instituto da Emendatio Libelli fere princípios constitucionalizados não mais podendo ser admitido ao revés, estaríamos voltando a um Estado repressor e ditatorial.

 

4. Conclusão

   Outra não poderia ser, portanto, a conclusão senão de que nenhuma decisão que afete diretamente os interesses de sues destinatários será tomada sem que, contudo, tenham as partes a garantia do contraditório e ampla defesa, dando a cada uma delas oportunidades garantidas pela Constituição vigente.

     Isto seria, de toda sorte, o meio isonômico de oportunização das partes construírem, mediante um procedimento, provas que formaram a convicção do juízo, sendo este, não somente um intérprete da lei, mas um aplicador que de forma equânime garanta o provimento jurisdicional, a fim de satisfazer a pretensão resistida iniciada pelas partes.

    Assim, como conclusão daquilo que foi explanado, tem-se o entendimento de que, o Instituto da Emendatio Libelli e o paradigma do Estado Democrático de Direito são incompatíveis sendo necessário sua reconstrução tendo como supedâneo a Constituição Federal de 1988.

 

 

REFERÊNCIAS

QUEIROZ, Paulo, Sistema Acusatório e a Emendatio Libelli. Disponível em: http://pauloqueiroz.net/sistema-acusatorio-e-emendatio-libelli/. Acesso em 30 de maio de 2012

Michel, Danielli Coelho, Emendatio Libelli: Uma reconstrução do Instituto a Partir do Paradigma do Estado Democrático de Direito, Belo Horizonte, 2008, p.609 a 617

LEAL, Rosemito Pereira, Teoria Geral do Processo. 6. ed. Rev. e ampl. São Paulo: IOB Thomson, 2005.