O INSTINTO DE NACIONALIDADE NAS ENTRELINHAS MACHADIANAS, OBSERVADO NO CONTO PAI CONTRA MÃE

THE INSTINCT OF NATIONALITY IN SPACE BETWEEN LINESES MACHADIANAS, OBSERVED IN THE STORY FATHER AGAINST MOTHER


Eliane Mendes Santana


RESUMO:
Pretende abordar aspectos das características culturais nacionais representadas ao longo do conto Pai contra mãe, de Machado de Assis. As situações reais de escravidão expostas no conto, traduzem a realidade de massacre e exploração vividos no Brasil e no mundo ao longo do século XIX, e revelam as máscaras dos indivíduos coadjuvantes de um cenário cruel que reflete a ordem e desordem social e humana da época, juntamente com as transformações sociais e econômicas que giravam em torno do lucro e denotam uma visão de interesse expressa também nesse conto machadiano. Além disso, busca compreender a construção do conceito de nação brasileira enquanto sentimento interior e de que modo esses valores são representados nesse conto, tendo em vista a representação da realidade própria da estética realista naturalista e sua contribuição com a construção e reconstrução de identidades formando um público de leitores estimulados a conhecer um trabalho literário comprometido com um sentimento íntimo nacional.
Palavras-chave: escravidão; sentimento íntimo nacional; desigualdade social


ABSTRACT:
It intends to approach aspects of the national cultural characteristics represented throughout the story Father against mother, of Machado of Assis. The real situations of displayed slavery in the story, translate the lived reality of slaughter and exploration in Brazil and the world throughout century XIX, and disclose the masks of the coadjuvantes individuals of a cruel scene that reflects the order and social clutter and human being of the time, together with the social transformations and economic that turned around the profit and also denotes an express vision of interest in this machadiano story. Moreover, it searchs to understand the construction of the concept of Brazilian nation while interior feeling and of that way these values are represented in this story, in view of the representation of the proper reality of the aesthetic naturalistic realist and its contribution with the construction and reconstruction of identities forming a public of stimulated readers to know an engaged literary work with a national close feeling.
Keywords: slavery; national close feeling; social inaquality


Na realidade, ao conceito de literatura nacional interligam-se elementos pertencentes a áreas discursivas diferentes e resultantes de uma conjuntura histórica inovadora, pois o nascimento e afirmação do pensamento histórico articulam-se fortemente com a emergência do Estado, a modernização da nação e a difusão dos ideais da Revolução Francesa.
Alguns autores se destacam na fase realista, revelando-se mais amadurecidos e abordando em suas obras temáticas pertencentes aos problemas patológicos, retratando os problemas sociais e políticos especialmente da realidade e cultura brasileira, passando a exibir também uma visão materialista da vida, do homem e da sociedade.
Por tratar geralmente de um período de transformações que atingiram tanto a literatura como a sociedade de modo geral, sabe-se que embebidos naquela época, de uma atmosfera de desenvolvimento e expansão industrial e cultural, a realidade da divisão de classes e de poder aquisitivo, é retratada nas obras literárias de tipos, casos e costumes das camadas sociais inferiores e médias, lembrando que não há mais espaço para uma literatura com textos prolixos, com descrições exaltadas de paisagens e de personagens, havendo, portanto, um certo apego à objetividade.
Sobre esse caráter de mudança que abala a estrutura de uma sociedade, Comte salienta que:

Além da preponderância primeiramente concedida ao estudo do progresso, embora o da ordem deva finalmente prevalecer, a apreciação do passado não se encontrava ali sistematizado com bastante precisão para permitir determinar o futuro, de maneira a regular o presente. Para um movimento indivisível, este defeito provinha da insuficiência de uma síntese abrangendo então a inteligência e a actividade sem compreender o sentimento, única fonte da verdadeira unidade (COMTE, 1990).


A sociedade pós-moderna sofre os impactos da mudança contemporânea, também chamado de globalização, esta, por sua vez, tenderá à descontinuidade, à fragmentação e à ruptura de qualquer pensamento e atitude que levem à prática comum, à homogeneização cultural, que na realidade não é passível de ser concebida, é improvável que essa mesma globalização vá extinguir as identidades nacionais, mas sim multiplicá-las, produzindo assim, novas identificações "globais" e novas identificações "locais".
Essa visão influi diretamente na construção dos contos e romances, cujas características refletem, através da verossimilhança, uma correlação íntima entre o homem ou eu-lírico, e os seus condicionamentos sociais. Sobre essa interação Hall (1999) afirma:

A identidade é formada na "interação" entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o "eu real", mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais "exteriores" e as identidades que esses mundos oferecem (Hall, 1999, p.11).


A partir dessa ideia entende-se que qualquer expressão cultural e artística, ou seja, cultura de modo geral é a intervenção do homem com o meio natural, levando, portanto à definição do termo mestiçagem como algo que só existe enquanto exterioridade e alteridade, nunca no seu estado puro e intacto.
O desenvolvimento político no século XIX foi relevante para as transformações na literatura, sendo também importantes os pressupostos teóricos e estéticos que contribuíram decisivamente na mudança de perfil por que passou a literatura brasileira.
Nessa época havia uma ânsia do povo para conquistar sua independência, uma autenticidade brasileira fazendo com que surgissem os traços formais que caracterizassem cada vez mais a nossa literatura, no caso do realismo e mais especificamente em Machado de Assis, havia uma intencionalidade voltada para uma interiorização do país e do tempo para a busca de uma feição nacional, e não simplesmente exteriorizar as belezas nacionais que figurariam apenas uma nacionalidade superficial.

O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo (grifo meu), que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Um crítico notável da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre do tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial (ASSIS, 1985, p. 804).
Para Machado de Assis uma vez reconhecido o instinto de nacionalidade, conviria analisar se os escritores eram possuidores das condições e motivos históricos de uma verdadeira nacionalidade literária. Além disso, identificar como representantes do caráter de nacionalidade, apenas as obras que caracterizassem a cor local, restringiriam muito os nossos cânones literários, o fato de engessar a literatura nessas regras e doutrinas, na visão desse autor, empobreceria as obras literárias.
Ainda sobre essa questão da preocupação nacionalizante, o crítico Silvio Romero (1953), prega constantemente a favor da terra e do homem brasileiro. Para ele não se pode compreender a literatura, sem entender o processo de mestiçagem o qual compõe a nossa diversidade cultural e étnica e que muito tem a dizer e a influenciar na literatura que está física e moralmente vinculada a essa pluralidade e fusão de almas e culturas. Para esse crítico, Machado de Assis pode e deve ser também julgado pelo critério nacionalista, advertindo, porém, que o espírito nacional não estaria na escolha do tema, no assunto, mas na índole, na intuição, na visualidade interna, na psicologia do escritor. Assim, Machado, um "genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada", com sua "índole indecisa", teria produzido uma "obra de mestiço", de brasileiro, que primaria pelo efêmero e pelo indefinido.
Para tanto, afirmar-se a particularidade brasileira era a necessidade dos intelectuais da época tornando-se predominante nos ideais dos escritores que tiveram como cenário histórico, os anos posteriores à independência. À medida que a autonomia literária crescia, aumentava-se a literatura e o estímulo dos mesmos, para uma criação artística diferenciada da Européia valorizando a capacidade individual de cada um, na busca de uma estética que valorizasse a auto-expressão e a nacionalidade de um país recém ? independente. Aliás, para Cândido (1750-1836, p.27), o nacionalismo artístico não pode ser condenado ou louvado em abstrato, pois é fruto de condições históricas, - quase imposição nos momentos em que o Estado se forma e adquire fisionomia nos povos antes desprovidos de autonomia ou unidade.
Machado de Assis dispõe de uma artimanha em seu ato de narrar enredando o leitor num jogo de ambigüidades e armadilhas complexas, conduzindo-o de um lado para outro, desfazendo todas as certezas, isso exige do leitor um amadurecimento psicológico e conhecimento de suas requintadas técnicas de narração. O papel do narrador dentro da obra supracitada aproxima história e estética, ou seja, o contexto e a forma com que desenrola a narrativa, escrita de forma arrojada e peculiar, fazem com que o leitor posto consciente ou inconscientemente num mundo verossímil, próximo da realidade, se envolva nessa manifestação e expressão do conteúdo e sinta um prazer em fazer parte desse universo de fatos que reportam à vida real. Além disso, essa estratégia ou estilo machadiano aguçam no leitor um espírito de sensibilidade diante da obra, constituindo uma tensão ao longo da leitura tornando a obra viva. Essa linguagem moldada a partir do jogo de esquivas, modo pelo qual Machado constrói a verossimilhança, impõe uma tensão em sua narrativa, responsável pela plurivalência de sentidos.
Em várias obras de Machado de Assis, fica claro o caráter documental da obra que reflete a realidade social, valendo-se do tom de acusação às estruturas sócio-políticas e criação de personagens que misturam o sentido do romance enquanto obra literária e sua função social. Os autores e escritores não mantêm mais em suas práticas literárias e artísticas uma postura ordeira e burocrática que seguia à risca as limitações da retórica e da gramática lusa. Essas construções frasais que valorizam as variações lingüísticas presentes na fala dos personagens, fazem com que o leitor se aproxime da realidade vivida por eles. Essa demarcação da fala cotidiana traz para a literatura brasileira uma documentação sobre a realidade social, soando também num tom de crítica sobre as estruturas gramaticais conservadoras vistas nos modelos literários clássicos.
Sendo assim, percebe-se que com o uso coloquial das falas populares, busca-se um resgate de valores brasileiros que reacendem os referenciais indicadores do sentimento nacional e identidade cultural nativista. Com isso, na medida em que vai ganhando força, o interesse da literatura se volta pelas expressões da oralidade, da construção popular, e representa em suas obras uma linguagem coloquial, enfim expressões que denotam a cultura de um povo e revelam a sua produção cultural no seu cotidiano, em ambientes que expressam o modo de vida e a identidade individual de cada cidadão, valorizando o espaço natural e selvagem e sua relação com o homem e com isso, envolvem o leitor num jogo de conexão entre o homem e sua interação com as terras brasileiras exploradas e colonizadas.
Partindo da idéia de Vannucchi (2002), vê-se que um trabalho literário que preza pelas marcas da oralidade, pelo estilo de vida comum, de uma língua desprestigiada, presentes principalmente na fala da classe social menos favorecida, revela as condições que as pessoas vivem e sua ligação íntima com o modo como elas percebem a si mesmas, ou seja, o indivíduo que melhor conhece suas raízes terá maior sensibilidade para identificar sua cultura. Entretanto, essa representação da fala popular cotidiana reconhecida pelo autor e valorizada com um alto índice cultural, assim também será percebida pelo leitor que se identificará com tal situação comunicativa, é o que acontece com a leitura desse conto analisado que sem oratória e redundância, mostra ao leitor como a miséria torna o pobre inimigo da sua própria classe desumanizando-o, ou seja, de modo peculiar, trata de um assunto tão sério e de forma que essa identificação se concretiza ao longo da leitura de forma prazerosa.
Sobre a construção de uma identidade nacional, entende-se que esta se realiza por meio de continuidades e rupturas de ideologias, cujo propósito de unidade na diversidade ou heterogeneidade na harmonia se fundem na mistificação.
A partir dessa idéia,

País e raiz, mais do que rimas formam um par indissociável. País é o chão em que se cresce, a paisagem que nos cerca, a sociedade que nos gerou e nos envolveu ulterinamente. Nessa sociedade não apenas se guardou tesouros do passado, como se vivem também as indagações e os pressentimentos do futuro (VANNUCCHI, 2002, p. 43).


Para Aldo Vannucchi (2002), não se pode desconsiderar o papel importante de cada gesto e cada vínculo vivido e desenvolvido na infância que marca o indivíduo como ser humano e parte constitutiva de uma comunidade, enfim que todas essas manifestações de cultura são reportadas para a vida adulta e repassadas para outras gerações que através das lembranças e recordações dos "velhos tempos", contribuem para o enraizamento cultural que dá sentido à vida.
Essa retomada de valores culturais e enriquecimento das obras através da descoberta do folclore nacional é transparente nas literaturas do século XIX que utilizam uma linguagem clara e concisa passando a concretização de uma realidade dinâmica, valendo lembrar que nenhuma obra literária pode ser vista como um documento real, mas como uma narrativa que se aproxima da realidade, que tem sentimento de verdade, a verossimilhança, mas que entrecruza nos elementos reais, pontos fictícios que fazem da obra um estudo de equilíbrio calcado num conceito de consciência possível percebido pelo leitor.

No entanto a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial (CÂNDIDO, 1974, p. 55).


Os autores se mantém em alguns casos, preso às concepções de etnicidade, entrando em conflito com a intenção de superação das questões étnicas quando atribui valores morais e psicológicos às raças, dando ênfase a formação de uma cultura heterogênea que mantém sinais de sua origem a partir do cruzamento de raças, ou seja, no convívio com a pluralidade étnica e cultural.

Aliás, no Brasil o desrespeito às raízes populares vem causando, há séculos, trágicos estragos sociais. Ontem, foi o negro, arrancado da África e escravizado por aqui. Hoje, é o homem e a mulher do campo, desconsiderados como gente, trabalhando em geral uma terra que não é deles nem para eles; depois violentamente desarraigados dos seus próprios valores, para se reduzirem, na migração sem rumo, a andantes sem terra, desempregados, bóias-frias, biscateiros, favelados, maloqueiros. Podem até conseguir trabalho na cidade, mas coagidos à fragmentação interior, pelas exigências tecnológicas e pragmáticas do mundo urbano, atravessarão o resto da vida de raízes partidas, proletarizados, coalhando de miséria e tristeza a periferia da cidade grande e madrasta (VANNUCCHI, 2002, p. 44).


Em linhas gerais, a estética realista contribuiu como comprovação de que uma obra literária pode servir de documentação dos fatos sociais, políticos e ideológicos, sendo que essa narrativa ficcional, porém com caráter de realidade, mostrou através da presença marcante do sentimento íntimo do narrador, que orienta características nos personagens, constituindo uma literatura diferenciada e autônoma.
Partindo do princípio de que a idéia de nacionalidade na literatura brasileira constitui o núcleo dinamizador do pensamento crítico literário do século XIX, entende-se que nessa época iniciado no Romantismo e tendo seguimento no Realismo, houve um desenvolvimento da consciência nacional em todo o povo, que se traduzia no plano político igualmente que no literário, sendo esse sentimento primeiro expresso pelo nativismo, logo depois sob forma de nacionalismo.
O instinto de nacionalidade procurou afirmar-se e tornar-se cada vez mais consciente por várias formas, tendo como grande contruibuinte Machado de Assis que de uma forma muito significativa representou na literatura Brasileira a definição do caráter nacional na sua peculiaridade.
Dessa forma, o realismo trouxe para a literatura brasileira um grande avanço no que diz respeito à conquista de um espaço para as nossas raízes culturais voltados para a questão da nacionalidade não como temática, mas sim com um sentimento interior voltado para o País de origem uma vez que, foi uma das escolas literárias que melhor expressou o cenário social, descrevendo e caracterizando com muita verdade o contexto social, histórico e político de uma nação que crescia economicamente em pleno século XIX.
Em suma, esse trabalho ensinou a perceber o quanto se pode fazer, quando se acredita na literatura brasileira que conduz a formação de leitores comprometidos com o sentimento de nacionalidade. Entrar em contato com um trabalho literário focado nos traços íntimos do caráter e da civilização a que pertence para representar de forma intensa a riqueza nacional serve de entendimento de que existem várias maneiras de se valorizar a criação literária nativista, contribuindo para a construção de uma identidade e transformação da realidade a qual se vive, ostentando uma invejável habilidade de celebrar o ato de dizer sim à brasilidade, à pluralidade étnica e à diversidade cultural.








































Referências


ASSIS, Machado de. Obra completa. v. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. p. 804.

CÂNDIDO, Antônio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1974.

__________. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 7ª ed. Belo Horizonte ? Rio de Janeiro: Editora Italiana Limitada, 1750-1836. 1º v.

COMTE, Auguste. Discurso sobre o espírito positivo. São Paulo: M. Fontes, 1990.

COUTINHO, Afrânio organização de. Caminhos do Pensamento Crítico. Rio de Janeiro: Pallas: Brasília: INL. 1980.

HALL, Stuart. A identidade em questão. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira; contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira. 5ª ed. organizada e prefaciada por Nelson Romero. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.

VANNUCCHI, Aldo. Cultura Brasileira: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2002.