Antes mesmo de estabelecer uma análise acerca do tema proposto, faz-se necessário refletir sobre a natureza do Inquérito Policial, cujas atividades desenvolvidas são meramente investigativas e presididas por uma única autoridade, o que ressalta o seu caráter inquisitivo.

Se inconteste que não há cabimento dos princípios do Contraditório e Ampla Defesa, em momento em que não haja ainda acusação, e, por conseguinte, não haja réu, Cabe então discutir em que momento efetivamente (e não apenas processualmente) inicia-se a o momento em que há efeitos negativos ao investigado, que poderão dar ensejo ao seu direito de defesa.


1. Breves Considerações acerca dos sistemas processuais

1.1. Inquisitivo

Neste modelo, não há separação entre as funções de acusar e julgar. Portanto, o acusado é totalmente privado do contraditório e do exercício de defesa, não sendo considerado como sujeito processual.

Desta forma, tarefa difícil controlar os abusos e prejuízos causados à parte acusada na busca pelo esclarecimento do fato criminoso, pelo fato de não lhe serem asseguradas as garantias, o que, muitas vezes, enseja os meios de prova ilícitos e em detrimento da dignidade humana e presunção de inocência.

1.2. Acusatório

O sistema acusatório é caracterizado principalmente pela separação entre as funções de acusar e julgar, ou seja, ao preservar a imparcialidade, o juiz é inerte, dependendo da iniciativa das partes para imputação do fato delituoso. Dessa forma, o acusado deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de parte do processo penal.

O procedimento é realizado de maneira ampla, possibilitando o contraditório e o exercício da ampla defesa, possibilitando a isonomia processual entre as partes.

O processo é, em regra, público, oral ou escrito, sendo admitida em caráter excepcional a publicidade restrita ou especial.

Destarte, há indubitável segurança jurídica da coisa julgada, além da possibilidade de impugnação das decisões e o duplo grau de jurisdição.

1.3 Misto

Há muitas semelhanças com os sistemas anteriores, inquisitivo e acusatório. Todavia, é eminentemente bifásico, visto que há um momento "pré-processual" e outro processual.

Assim, a primeira fase segue o modelo inquisitivo, vez que ocorre em sigilo e dispensa o contraditório. A segunda fase, por sua vez, é acusatória, com presença impreterível dos princípios e garantias constitucionais, sendo que a acusação passa a ser de competência exclusiva do Estado, através do Ministério Público.


2. Dos Princípios do Contraditório e Ampla Defesa

O Contraditório e a Ampla Defesa, corolários do Devido Processo Legal, são assegurados pelo art. 5º, LV da CF de 1988, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral.

Consoante Leonardo Greco, o contraditório é o princípio que "impõe ao juiz a prévia audiência de ambas as partes antes de adotar qualquer decisão (audiatur et altera pars) e o oferecimento a ambas das mesmas oportunidades de acesso à Justiça e de exercício do direito de defesa". (GRECO, 2005. p. 72).

Não apenas um princípio, o Contraditório constitui uma garantia fundamental, vez que torna possível a participação das partes na construção da solução do conflito, assegurando-lhes a defesa necessária aos seus direitos.

O contraditório é, portanto, uma exteriorização do princípio da Ampla Defesa e da Isonomia processual, sendo de impreterível observância no curso do processo.


3. Do Princípio da Presunção de Inocência

O princípio da presunção de inocência é mais um desdobramento do princípio do devido processo legal, previsto no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal, que assim dispõe: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória".

É, também, um dos princípios mais relevantes ao Direito Processual Penal, vez que tutela a liberdade individual e a dignidade humana.

Ademais, não é tolerável que, diante de provas ainda não submetidas ao contraditório, ainda que consideradas verossímeis pela autoridade persecutória, o acusado seja submetido a constrangimentos e exposto ao escárnio público como se já tivesse sofrido sentença condenatória. Nestes casos, o mal é irreparável, mesmo que o indivíduo venha a ser absolvido.


4. Do Inquérito Policial

. Neste procedimento "pré-processual", as atividades desenvolvidas são presididas por uma única autoridade, agindo esta de ofício ou mediante provocação, empregando as diligências necessárias para o esclarecimento do crime e da sua autoria, o que confirma ser o caráter inquisitivo uma de suas mais importantes características. Ademais, as atividades predominantes são meramente investigatórias, no intuito de embasar uma possível ação penal, não havendo, teoricamente, prejuízo à parte investigada.

Conforme entendimento de Fernando da Costa Tourinho Filho, o inquérito policial se define como:

"o procedimento administrativo, preparatório e inquisitivo, presidido pela autoridade policial, e constituído por um complexo de diligências realizadas pela polícia judiciária com, vistas à apuração de uma infração penal e à identificação de seus autores." (TOURINHO FILHO, 2004. p. 192.)


Destarte, o ponto a ser discutido é a necessidade, ou não, da observância de princípios como o Contraditório e a Ampla Defesa, durante o curso do procedimento investigatório.

Conforme já mencionado, o artigo 5º, LV, da Constituição Federal, proclama que aos litigantes no processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral serão assegurados os princípios do contraditório e da ampla defesa. No entanto, é discutível se o Inquérito Policial se enquadra nesta definição de processo administrativo, pois, de acordo com a doutrina majoritária, processo administrativo é uma sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos que tendem, todos, a um resultado final e conclusivo. Além disso, o referido artigo refere-se aos acusados "em geral", não se podendo aplicá-lo ao indiciado, na medida em que não há nessa fase investigativa uma acusação propriamente dita.

Além disso, tendo em vista que o inquérito policial visa à investigação e o esclarecimento de infrações penais e das respectivas autorias, é totalmente necessário que o procedimento ocorra em sigilo, para que a autoridade policial possa providenciar as diligências necessárias, sem que ocorram fatores que dificultem a busca pela verdade dos fatos. Assim, conforme disposto no artigo 20 do Código de Processo Penal, "A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade".

Ocorre que, o caráter meramente informativo e preparatório do Inquérito Policial, pode ser afirmado apenas com relação às provas renováveis. Todavia, nesta fase ocorrem provas técnicas e até mesmo periciais que exercerão efeito probatório em juízo e exercerão influencias sobre o convencimento do juiz.

Em suma, se as provas obtidas no curso da investigação poderão fornecer subsídios para a prolação da sentença, não haveria ali uma descaracterização dos argumentos que afastam a aplicação dos princípios constitucionais à fase "pré-processual"?


5. Da aplicação dos Princípios Constitucionais no Inquérito Policial

Resta clara a importância de se definir se há acusação no inquérito policial ou se, durante este procedimento, o que se tem é somente uma atividade de colheita de subsídios preparatórios para a propositura de futura ação penal, o que tornaria desnecessária a aplicação dos princípios do Contraditório e Ampla Defesa, bem como afastaria a idéia de violação do princípio da Presunção de Inocência, vez que, com base neste pensamento, não haveria o que se falar em prejuízo ao investigado em sede de Inquérito.


6. Entendimentos favoráveis à aplicação dos Princípios Constitucionais em sede de Inquérito Policial.

Nesta corrente doutrinária há o entendimento de que não há amparo legal para a exclusão da fase de Inquérito, quanto à aplicação do principio do Contraditório, visto que este consiste em garantia fundamental assegurada pelo art. 5º, LV, da Constituição. Desta forma, a palavra "acusados" seria aplicada em sentido amplo, não excluindo, portanto, os indiciados.

Neste sentido, Aury Lopes Jr. leciona:


É inegável que o indiciamento representa uma acusação em sentido amplo, pois decorre de uma imputação determinada. Por isso o legislador empregou acusados em geral, para abranger um leque de situações, com um sentido muito mais amplo que a mera acusação formal e com o intuito de proteger também ao indiciado. (LOPES, 2005)


Além do mais, acreditam que mesmo em fase de Inquérito haja conflito de interesses e, portanto, pode-se entender que há também litígio. Assim, esta corrente defende a aplicação do Contraditório em sede de Inquérito Policial, pois acredita que mesmo nessa fase os direitos dos investigados devem ser assegurados, mesmo porque, as provas ali apuradas poderão influenciar, como de fato ocorre, a decisão final da ação penal, o que a meu ver fere também aos Princípios da Imparcialidade do Juiz e da Isonomia Processual.

Por fim, a característica de irrepetibilidade de alguns atos existentes ao longo da investigação criminal, é o principal ponto que possibilita se cogitar a aplicação do contraditório nessa fase, relacionando-se que não poderá haver um pleno direito de defesa se não for possibilitada a intervenção do suspeito já desde esse momento.

Como conseqüência, para os defensores dessa tese, a adoção do princípio do contraditório dá ao inquérito policial outra natureza, não de peça meramente informativa, mas com valor de prova na instrução, conseqüentemente, mais célere a prestação jurisdicional.

7. Entendimentos desfavoráveis à aplicação dos Princípios Constitucionais em sede de Inquérito Policial.

Face à natureza jurídica inquisitiva do inquérito policial, grande parte da doutrina e jurisprudência brasileira mantém entendimento firme no sentido de que o procedimento realizado pela polícia judiciária não é contraditório, pois existe apenas uma colheita de informações, conforme acima exposto, e dessa forma, não há partes nem conflitos de interesses.

Para esta corrente, ainda que a Carta Magna, em seu artigo 5º, inciso LV, se refira a processo administrativo, não está incluído o inquérito policial, pois o inquérito policial não pode ser considerado "procedimento administrativo", mas sim "procedimento inquisitório", meramente preparatório para o ajuizamento da ação penal, não se extraindo dele nenhum resultado final ou conclusivo, o que só ocorrerá com o advento da sentença que encerra a ação penal.

O inquérito deve reunir elementos informativos para a formação da opinio delicti do órgão acusador e a concessão de medidas cautelares pelo juiz, não podendo esses fundamentos servir de base para a sentença. Dessa forma prestigia-se, nesse primeiro momento, a sociedade, sob pena de se tornar inviabilizada qualquer investigação, o que não significa dizer que o indiciado está sujeito a todo tipo de arbitrariedade, pois ele estaria revestido de todas as garantias inerentes à pessoa.

Desta forma, não haveria que se falar em violação aos princípios do contraditório, pois, ainda que dispensada a sua presença em fase investigatória, as provas obtidas nesta fase somente serão aceitas se confirmadas na fase processual.

Em tese, não haverá condenação com base apenas em provas formuladas na fase de Inquérito Policial e, portanto, não há, teoricamente, prejuízo à parte investigada.

Por estes motivos expostos, acredita-se não se fazer necessária a aplicação dos princípios da ampla defesa ou contraditório em sede de inquérito policial, dada sua natureza jurídica de procedimento administrativo. Aliás, sequer pode ser considerado processo administrativo, posto que não há lide, não há acusação para que o investigado possa se defender, pois há mera atividade persecutória da investigação penal.

Ademais, nos casos de produção de provas irrepetíveis, é possível o exercício da defesa, a posteriori, no decorrer da ação penal.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base em todo o exposto acerca do tema, resta indubitável que os direitos fundamentais são garantias do cidadão, até mesmo contra direitos que porventura o Estado possa ter. O próprio Estado está incumbido de velar pela proteção desses direitos, e mais, é uma obrigação imposta ao mesmo pela ordem constitucional vigente em nosso ordenamento jurídico.

Contudo, nessa fase investigativa, não é possível se falar na aplicação do contraditório como instrumento de defesa do investigado, na medida em que o inquérito policial não é um fim em si mesmo, sendo apenas mais um instrumento do qual se pode dispor para obter lastro probatório mínimo que servirá de base para futura ação penal.

No entanto, necessário que se tenha cautela no que concerne às provas advindas do inquérito. Com relação às provas irrepetíveis colhidas em fase preliminar, estas deveriam obrigatoriamente ser produzidas novamente em juízo com a incidência do crivo do contraditório, sob pena de violar um direito fundamental e acarretar um dano irreparável ao acusado. Inegável é a situação de desvantagem processual que se encontra o acusado, pois o mesmo terá, no máximo, direito a um contraditório diferido com relação a esse tipo de prova, que em razão da mudança da situação fática existente na fase de sua elaboração, ou em razão do desaparecimento, ou modificação substancial do objeto, resulte impossível sua renovação em juízo.

Neste sentido se manifesta o STJ:


Apesar de não se admitir o contraditório na fase policial, é preciso que se tenha em mente a dignidade da pessoa humana como fundamento maior do Estado Democrático de Direito. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 93464, da 6ª Turma)

Ademais, não havendo condições para a aplicação do contraditório em fase de Inquérito, devido à sua característica inquisitiva e à necessidade de sigilo, há de se instituir um outro modelo que evite os excessos e abusos tão comuns na realidade do Processo Penal. Necessário priorizar o respeito ao indivíduo, assegurando-lhe a Dignidade Humana e a Presunção de Inocência, independente dos indícios e do juízo de valor das autoridades responsáveis pela condução do procedimento.

Não se pode admitir que o indivíduo, que sequer passou por um julgamento processual, seja condenado moralmente perante a sociedade, sendo exposto a situações vexatórias ou tampouco a meios ilícitos de apuração de provas, como a tortura.

Diariamente somos surpreendidos com imagens e depoimentos sigilosos, que deveriam estar em poder exclusivo das autoridades policiais, mas que são divulgadas na mídia, formando opiniões precoces e condenando moralmente o investigado, expondo-o inclusive a riscos à sua integridade.

A verdade é que, até mesmo por um "jogo de interesses", a mídia exerce poder sobre a população, e usa do senso de indignação, muitas vezes, para condenar o investigado a sofrimentos e danos irreparáveis.

Destarte, não há como negar a desvantagem processual em que se encontra o investigado na fase de Inquérito.

Por fim, há de se refletir sobre o quão falha é a justiça brasileira, que tantas vezes já condenou inocentes. É preciso que todos, principalmente os operadores do Direito, atuem com muita responsabilidade e atenção aos Princípios Constitucionais.