Migrantino não previra isto, mas em sua chegada em Londres, o que poderia ser, a princípio, um alívio, passaria a ser um espécie de terror, pois começava uma fase que ainda não havia experimentado: Teria de enfrentar o submundo da "ilegalidade". Costumava ouvir histórias contadas pelas pessoas com quem convivia. Parecia que tinham um certo prazer em deixar os outros aterrorizados, principalmente os novatos, falando-lhes sempre: não ande por alí! Cuidado não vá aquele lugar! Não more naquele bairro! Não vista desta maneira! Não fale deste jeito! Não fique parado na rua! Não pegue aquele ônibus! Não converse com aquela pessoa! Não trabalhe naquele lugar! Não confie naquele cara! Não respire tâo alto! etc. E contando-lhes histórias de brasileiros e imigrantes ilegais que eram deportados, alguns até presos e que o cerco estava se fechando a cada dia. Falando e apontando discretamente pra algum indivíduo de chapéu ou boné, dizendo: tá vendo aquele sujeito? pois é!, parece um agente da imigração. Cuidado!! disfarce!! Mas não disfarce tanto, ele pode desconfiar!!

No início migrantino não se incomodava muito, mas aos poucos começara a se inquietar com a idéia de ser ilegal. Não gostava muito de estar fora da lei. Se sentia um transgressor, apesar de não ter outra alternativa. Não se sentia bem nos lugares, adquirindo aos poucos hábitos que nunca teve no passado, como por exemplo: ficar observando as pessoas ao seu redor, principalmente se estivessem uniformizadas. Adquiriu verdadeiro pavor. As vezes mudando de direção a cada possível perigo à frente. Aos poucos foi se amendrotando, alimentando seu cérebro com sentimentos de mêdo. Quando ainda morava no Brasil, tinha certos problemas relacionados a estes, pois vivia caindo em blitz policiais nas ruas e não poucas vezes fora multado. Tentava desviar ou trocar de caminho sempre quando possível. Mas no fundo, não se sentia bem com este tipo de procedimento. O que ele não imaginava era que em Londres a situação iria continuar, e desta vez bem pior, pois as blitz não eram em automóveis e sim a pessoas físicas, o que evidentemente teria muito mais chances de ser pêgo, já que não poderia evitar sair na rua.

Já havia algum tempo que estava desempregado e conseguira um emprego através de Ana, uma amiga que conhecera logo quando chegara na cidade. Ana era uma daquelas pessoas que consciente ou inconscientemente gostava de assustar os outros com suas histórias. Ela mesma vivia com mêdo de ser pega e transmitia sua insegurança a qualquer um que se aproximasse dela. Bastava cinco minutos de conversa que você já enxergava os inimigos por toda parte, prestes a te pegar e só você não percebia o perigo iminente. Parecia que ela tinha um certo prazer em deixar as pessoas assustadas.

Esse novo emprego era em um prédio com várias salas de escritórios, e trabalhavam ali umas sete pessoas, divindo a tarefa de limpar todo o edifício em um tempo determinado. (tempo que nunca era suficiente). Assim que chegaram, Ana se encarregou de apresentá-lo aos demais, eram todos brasileiros de diversas partes do país. Ele ia conhecendo um por um, mas não prestava muita atenção ao em seus nomes, até porque seus verdadeiros nomes quase sempre nunca eram os que eles diziam, pois muitos, inclusive ele, tiveram de trocar seus nomes verdadeiros. Pois legalmente não poderiam trabalhar, e não era aconselhável usar o próprio nome. Escolhera o nome Jorge para poder coneseguir esse serviço, o que lhe causaria muitos problemas, pois assim que chegou, seu gerente lhe chamou do outro lado do corredor: Tino!, Tino! e ele nem virava a cabeça. Inconformado com sua indiferença, o gerente, que era polonês, se aproxima dele e o cutuca dizendo: estou lhe chamando e você nao responde, porque? Meio sem jeito ele argumenta que não escutava bem do ouvido direito, por ter tido um problema na infância. Mal acabara de se justificar, Ana lhe chama, aos gritos, pelo seu nome verdadeiro e ele vira para Pavel, o gerente e diz: costumam me chamar pelo meu apelido de colégio também que é Tino. (As vezes ele mesmo se surpreendia como tinha saídas tão rápidas).

Ana ia lhe apresentando a todas as pessoas, mas ele os cumprimentava mais por formalidade, pois não se sentia ainda seguro, se sentia como um garotinho no seu primeiro dia de aula, olhando ao redor as pessoas. Realmente você volta a ser quase uma criança nesta situação. Por não dominar a lingua ainda, tinha de ter sempre a assistência de alguém que falasse para te tirar de situações constrangedoras. Ana ia lhe mostrando todo o prédio, dando sempre destaques para as saídas de emergências. Ele ainda não entendia bem porque ela insistia tanto para que guardasse bem as saídas, e lhe pergunta se acontecia incêndios com frequência naquele prédio. Ela responde que nunca houve um só incêndio ali. Sem entender, lhe indaga a respeito de sua preocupação pelas saídas de emergência e ela lhe responde: É que aqui você não pode confiar em ninguém. Se alguém aqui for despedido, eles costumam chamar a "mimi" (departamento de imigração, que os brasileiros apelidaram de "mimi"). Pois é, eles chamam e você precisa saber para onde correr para escapar, por isso é primordial saber onde se encontram as saídas. Com o tempo vou lhe ensinando estratégias de fuga e clamuflagem, caso eles tentem lhe pegar de surpresa, como por exemplo: nunca voltar para pegar seus pertences; andar sempre com o mínimo de objetos; ter sempre uma roupa por baixo do uniforme, que deve ser tirado instantâneamente em caso de uma emboscada. Disfarces rápidos como bigode postiço, peruca, óculos escuros também são bem vindos. Caso não haja tempo hábil para a fuga, você podera passar por um funcionário do escritório, sentando rapidamente em uma mesa qualquer e fingir concentrado na tela do computador. Não se esquecendo de fazer uma cara bem séria, dando a impressão, que não deseja ser incomodado.Iisto sempre funciona, e é claro não tentar falar uma só palavra. Eles podem reconhecer seu sotaque até pela sua respiração.

Migrantino ouvia e ficava cada vez mais assustado e ela continava dando instruções, gesticulando sem parar, parecendo mais um general de exército e ele se sentia como um inexperiente soldado dentro da central de inteligência do inimigo prestes a ser pego a qualquer momento. Depois de horas de instruções, ela o deixa sozinho para começar seu trabalho. Teria de limpar umas dez salas, uma pequena cozinha e dois banheiros em mais menos duas horas, mas o problema era que ainda tinha gente na sala trabalhando e isso lhe incomodava, gostaria de estar sozinho, pois qualquer pessoa a sua volta lhe dava o pressentimento que ia lhe dirigir a palavra, como não falava inglês muito bem, tinha pavor de ser abordado por alguém que não falasse sua língua. Passado algum tempo, Cláudio, um colega de trabalho vem até ele lhe apresentar um homem, de mais ou menos de uns 50 anos, alto e bem forte e com uma cara nada amigável. Tinha uma cicatriz enorme do lado direito de seu rosto, iniciando no queixo indo até perto da sobrancelha.Talvez fosse a marca de uma possível briga ou algo parecido. Sua expressão parecia ter congelado numa raiva jamais esquecida. Cláudio o olha e diz: este é Tonhão, o seu vizinho de andar e sai os dois virando-lhe as costas. Assim que tonhão toma a frente, Cláudio volta e coloca a cabeça para dentro da sala e lhe diz: "ele ruva", e sai atrás de tonhão.

Tino fica meio paralisado. Um arrepio lhe sobe de baixo à cima do corpo, aquela sensação de mêdo volta-lhe de novo a lhe pertubar e ele reproduz as palavras de Cláudio em pensamento: "Ele ruva", só faltava essa agora. Meu Deus, o que será isso? Deve ser um problema mental e provavelmente o Cláudio está me alertando para não contrariá-lo. Caso contrário, poderá ter um surto, e as consequências poderão ser catastróficas. Mas ele sempre lera muito sobre quase todas as doenças e nunca ouvira dizer algo a respeito, "ele ruva", repetia para si mesmo, tentando assimilar o têrmo. Pelo jeito é um verbo, uma ação, mas eu nunca ouvi falar desse verbo: ruvar!, o que será isso? Com certeza não deve ser boa coisa, por isso o Cláudio veio me alertar. Poderá talvez ser um defeito físico. Mas tirando a cicatriz Tonhão não aparentava nenhum defeito aparente. Não tinha nenhum cacoete, nem mancava. O que seria afinal? Já não bastava toda sua preocupação com a imigração e todas aquelas instruções de Ana. Agora ele corria mais um risco , e bem perto. Pois Tonhão estava trabalhando no mesmo andar e ruvava. Teria de ser muito cauteloso para não contrariá-lo até ter pleno conhecimento do que viria a ser isso. Achava melhor não perguntar a ninguém, muito menos a Ana, até porque não teria coragem de repetir tal palavra em voz alta.

Sua situação agora estava ficando meio complicada. Pois ele tinha de decorar muita coisa, entre elas: que seu novo nome era Jorge e não Migrantino. Seu apelido de infância era Fred. Que tinha um problema no ouvido direito, além de saber de cor onde se localizavam todas as saídas de emergência, para se defender de uma possível investida da imigração. Tendo cuidado do que fazer em situções de emergências. Usando os difarces adequados. E para completar acabara de ser alertado que seu colega de andar era um goiano que ruvava. E ainda por cima, obviamente, não poderia se esquecer que tinha de trabalhar e fazer bem seu serviço. Afinal de contas, por incrível que pudesse parecer, era para isso que alí estava.

Por via das dúvidas, ele sempre procurava se manter afastado de Tonhão. Ao cruzá-lo no corredor, passando o aspirador de pó no carpete, se limitava a dizer um "oi" com todo o cuidado para não contrariá-lo. Até que um dia quando estava numa de suas salas fazendo o seu serviço, tonhão grita-o do corredor: "Tino!!, por favor, pode desligar o hoover da tomada pra mim?" Ele para um pouco e liga uma coisa com a outra. "Hoover"!, E numa sensação de alívio, vai até Tonhão e diz: aha!!!, você ruva né!!! Tonhão responde: sim porque? Não tá vendo? Mais tarde Tino descobre que os brasileiros inventaram vários verbos e expressões que não constam nos dicionários e um deles: ruvar, significava passar o aspirador de pó, que em inglês se chama hoover. Mas a pronúncia seria "rúver", de onde surgiu a expressão "ruvar". Com o passar do tempo, ele pode constatar que Tonhão era um dos caras mais pacatos e legais que ele até então conhecera.