Crônica

            

                                     O HOMEM QUE QUERIA SER BURRO

                                                               Para as vítimas do cigarro

 

                                                                Edevaldo leal

 

                                      – Estás vendo aquele burro   ali  , menino ?     – Voz pausada, cigarro entre os dedos amarelados pela nicotina, o homem apontou para o animal que pastava às proximidades da estação ferroviária da vila de Porto  Platon.

.                                    O homem esperava  o  trem .O trem  vinha da Serra do Navio carregado de manganês com destino ao porto de Santana .De lá, o homem  seguiria de ônibus para Macapá. Tinha consulta marcada . Não vinha se sentindo bem de saúde, ultimamente. Era tudo o que eu sabia. E o cheiro. O cheiro de vômito quando ele falava. Baixinho, se muito tivesse era 1,60 m . Carregava uma maleta e usava chapéu de palha   inclinado para trás, deixando bem  à mostra  o rosto que começava a enrugar. Um homem da roça. Simples, podia-se ver. Falava com certa correção gramatical e isso eu percebi   logo ,mesmo com minha pouca formação escolar de aluno ainda não saído da escola primária.

                                    –   Estás vendo aquele burro, menino?  – repetiu o homem,  prendendo a pergunta no peito, como fazia com a fumaça do cigarro, antes de jogá-la no ar.

                                    Naquela época – e já lá se vão quantos   anos ?  – o que eu mais queria era vender meus beijus de tapioca ao leite de   coco  que meus pai fazia e que eu,  malabarista de tabuleiro equilibrado  na cabeça, vendia na estação ferroviária, para reforçar o parco orçamento doméstico de uma família de onze pessoas. No segundo beiju, hoje transformado em tapioca  ( ainda prefiro dizer beiju , pronunciado em voz baixa, para evitar incompreensões), o homem desabou em vômito.  Como um relâmpago,ainda tive tempo de tirar o corpo fora, como se dizia  naqueles tempos   para a  girada de corpo de quem se desvia  de algum objeto indesejado. A rodilha na cabeça segurou bem o tabuleiro.

                                   Na minha inocência de menino da roça, eu pensei que a tapioca fizera mal ao homem. Ao  mesmo tempo, eu  me indagava: como pôde ser a tapioca, se ninguém jamais reclamara e meu tabuleiro nunca voltou  vazio ?

                                 – Vá lá, menino, e me diga se não tem sangue naquele vômito?!

                                O homem acendeu outro cigarro e eu me afastei  dele , com nojo. Uma brisa forte me refrescou o  rosto . A estação, construída pela companhia  que explorava o manganês de Serra do Navio , era dividida em dois  espaços de espera. Fui para o lado que fazia frente para os trilhos e lá vendi os últimos beijus.

                                 Em pé, uma perna em  descanso , o tabuleiro debaixo do braço, eu me preparava para enfrentar a rodovia da fazenda Campo Verde , quilômetros de  distância em retorno à roça, a pé.

                                – Ei, menino! – Me chamou o homem, que expelia fumaça de cigarro pelo nariz e, mais uma vez  ,  a mesma referência ao burro:

                            –    Estás vendo aquele burro ? – Insistiu o homem, que  continuou:

                                – Aquele burro, menino, é mais inteligente do que eu. Eu estou com o estômago perfurado por feridas malignas que este maldito cigarro me provocou. Este vício é tão amaldiçoado, que, por mais que tente, não consigo me livrar dele. Sou um escravo  , um escravo do vício. Eu queria ser aquele burro, menino. Ele não fuma e está livre, comendo o capim que quer. Tu  olhas para ele e vê  saúde, vigor. E a quantas pessoas  ainda vai ser útil ? Se fosse possível,  juro, fazia uma troca. Ia ser burro, mas sem cigarro e sem  câncer.

                               Durante o tempo em que frequentei a estação, por mais uns três anos, até irmorar  em Macapá, não vi o homem outra vez. Torço para que ele  seja  aquele burro que eu vi ontem próximo à rodoviária de Marapanim. Devia ser ele, sim. E penso que me reconheceu. Que burro relincharia três vezes, com a cara voltada  na minha direção, fazendo gestos com a cabeça, como se quisesse  conversar   comigo ?

                                                    20 de fevereiro de 2013.