O homem evocativo

"É isso! É exatamente o que eu desejava expressar", dizia o homem evocativo em resposta ao homem contemplativo, referindo-se ao exemplo daquele que remava, ou vivia, ou navegava, apenas porque precisava remar, ou viver, ou navegar. "Essa figura criada a título de exemplo", dizia o evocativo ao contemplativo, "é minha explicação acabada de porque admiro, quase venero, os urubus. Sempre foi difícil explicar, mas agora tomo emprestados os seus devaneios para evocar os meus".

E continuou: "o que penso é que as outras aves, aquelas ordinariamente comuns, voam porque precisam. O urubu, não. Voa por prazer. Reparem nos seus modos aéreos, seu comportamento volante, sua elegância de movimentos, seu domínio das correntes, ascendentes, descendentes, frias ou quentes. E temos ali o exemplo de um animal que é tão irracional quanto qualquer outro, exceto nós, humanos. Mas, diferente dos demais, o urubu retira um prazer evidente de suas capacidades naturais. Não as utiliza apenas para saciar a fome ou perpetuar a espécie. Não, vejam bem, ali está alguém que levou aos limites da natureza o prazer de viver. Um ser que entendeu perfeitamente a graça das habilidades que lhe foram dadas".

O homem evocativo prossegue, e pergunta, e ele mesmo responde: "qual animal não é presa nem predador de ninguém? As ordens biológicas formam uma bem posta cadeia alimentar. A nós, humanos, coube batizar essa ordem do universo e definir seus contornos, depois de termos conquistado, por assim dizer 'na raça', um lugar no topo dessa pirâmide. Nela, ou se caça, ou se é caçado. Deve haver outras tantas exceções, mas nenhuma visualmente mais nobre que o urubu. Chego até a pensar que ele tem uma espécie de ética, ao excusar-se de avançar na carne de animais vivos, salvo em situações de fome extrema, ou quando a refeição, embora condenada, demore demais a transitar da condição de animal para alimento, ou de flesh para meat, como dizem em inglês". "Até ouso dizer", pensou o evocativo, "que essa diferenciação linguística foi uma contribuição do urubu ao idioma de Shakespeare, o que confirma a sofisticação desse animal (o urubu, não Shakeaspeare). Algum observador sutil deve ter notado os elogiáveis princípios do urubu, para quem flesh é uma coisa, meat é outra, há que se respeitar a ordem das coisas enquanto uma não se torna a outra".

Assim como o homem recordativo não é botânico, o evocativo não é zoólogo, mas vamos seguir seu raciocinio. "A águia, por exemplo, voa tão alto quanto um urubu, alguém há de lembrar. Sim, sim, mas reparem no ar de grave responsabilidade que a águia carrega em seu semblante, se é possível atribuir essa feição a um bicho. O símbolo norte americano é uma águia, não um urubu, já se vê aí o peso moral que a aparência fez pousar sobre as asas daquela ave. Ela é prática, eficiente, mortífera... encontra a presa, define a estratégia e voa em sua direção, desembutindo as garras no momento exato do ataque fatal. Poucos sabem que suas chances são limitadas, basicamente um único rasante, lutando contra o risco de chocar a envergadura das asas com algum arbusto mal vislumbrado. Quebrar um componente de sua estrutura alar seria mortal, ela não dispõe de tempo para curar-se, morreria de fome. Não tem tempo a perder. Muito menos tempo de contemplar. Já contemplar é um prazer ao qual o urubu se entrega amiúde. Ou é possível imaginar que este bicho esteja fazendo outra coisa quando voa calmamente na altitude dos aviões? Só pode estar aproveitando a vida e a vista deslumbrante, desfrutando de um voar despreocupado, como nenhuma aeronave jamais propiciou a qualquer ser humano. Eu bem trocaria uma eternidade humana por um único dia de urubu", confessou nosso admirador das aves carniceiras.

Não deve ter ficado claro porque o nosso amante de urubus foi chamado evocativo.Vamos explicar: é porque ele se destina a estabelecer, nesta coletânea de personagens, uma categoria intermediária de homens. Ao incrédulo que existe no unitário, e ao crente indeciso que habita o contemplativo, junta-se o sujeito que crê, descrendo. Como não se decide por um lado ou outro, teme ambos, variando apenas o grau de apoio à tese de acordo com a situação. Ou, fechando o círculo, ele simplesmente "evoca" a ajuda que lhe parece mais adequada para cada momento. "Voa em círculos, como os urubus", alguém haverá de dizer. Mas não estamos certos, nem eu nem o homem evocativo, de que o urubu não vá à lugar algum em seus vôos circulares. Ao contrário, talvez se trate do modo mais correto de navegar pelos ares, olhando o mundo como ele é: um círculo. Quem voa reto em direção a algum lugar, nunca alcançará o horizonte, como nosso amigo contemplativo. Nem poderá ficar olhando para trás, como o homem recordativo. Mas o urubu, este sim, talvez resuma o equilíbrio filosófico que buscamos: voa o presente, nem fixando-se à frente, nem atrás, mas ao que tem abaixo, concretamente aos seus pés. A vida talvez seja um suceder de círculos. Mas aqui já se esgotou o papel do homem evocativo. E numa das voltas, ele transfere o assunto para o homem reflexivo, a quem caberá divagar mais sobre as órbitas da vida.