Certa manhã, saindo da Igreja de São Francisco ? localizada no Largo São Francisco (SP) ? espaço socialmente freqüentado por moradores de rua ? vi mais um desses anônimos e invisíveis atores sociais. Diferentemente de tantos outros que tenho visto nessas imediações, aquele homem chamou-me mais a atenção pela postura do seu corpo. Ele não falava nenhuma palavra sequer, porém, a sua forma de estar sentado, o posicionamento das mãos e a disposição do corpo comunicavam-me uma profunda mensagem, cujo impacto ressoou em meu interior. Era uma pessoa negra, baixa, magra, de seus quarenta e cinco anos. Vestia-se de uma calça jens azul, camiseta branca e calçava um tênis. Sobre uma bolsa vermelha, estava ele sentado.

Suas duas mãos envolviam-lhe a cabeça. Era o estado do homem mergulhado em suas próprias apreensões, dores e angústias. O semblante refletia o seu interior. Os olhos fixos miravam não o além, o céu, senão o aquém, o chão ? lugar das lutas do homem para sobreviver. Erguer os olhos aos céus para aclamar "Pai-Nosso" ? "O pão-nosso de cada dia" ? não lhe diria muita coisa, pois ali, estava ele confrontado com problemas terrenos, demasiadamente humanos.

Fiz um esforço para penetrar em seus pensamentos: O que estaria ele a pensar? Em sua própria situação de homem corroído pelo sistema capitalista? Ou talvez, trazia-lhe à memória o seu passado! Mas que passado? De glória, de prazer, de felicidade? Que felicidade? A felicidade que a TV introjeta no inconsciente coletivo?

- Não, ele estaria confrontando sua vida atual com a de milhares de outros sem-teto, sem-terra, sem-emprego, sem-educação, sem-saúde, sem-religião.

A quem ele estaria culpando sua situação presente? Ao sistema, às igrejas, à família, ou a si mesmo?

- Mas quem sabe se ele não estaria pensando em sair desse mundo, dando cabo à própria vida: o suicídio, como saída de emergência aos seus problemas! Que situações limites estariam empurrando-o para o fim de sua história? Seria ele o criador desse projeto de vida, como disseram os filósofos modernos: que o homem está livre para construir o seu próprio projeto?

Na verdade, aquele homem estava abandonado à sua própria sorte! Não havia ninguém por ele, nem mesmo um frade bastante caridoso que pudesse imaginar. Sua angústia colocava-o em confronto com a existência.

- Mas deixar-se levar ao desespero seria caminhar em direção ao fim ? pensei comigo. Contudo, mesmo apressado, preocupado com minhas coisas, vi-o ali!

Os moradores de rua da "metrópole global" são percebidos pelos olhares do homem médio como algo comum, natural. Os fenômenos que social e politicamente deveriam ser analisados terminam sendo vistos de forma natural. Estamos o tempo todo naturalizando o que, de fato, deveria ser tomado como social. A problemática não é analisada como uma "questão social". Não se fala mais como nossos antecessores líderes, visionários libertários, a partir de um pensamento crítico, quem sabe, o da luta entre duas classes: a proprietária dos meios de produção, e outra, prestadora de mão-de-obra barata. As relações sociais entre essas duas classes viveriam em um intenso e conflitante enfrentamento. Luta pelo fim da exploração de uma classe sobre outra. Então, voltando, não seria a situação social daquele homem fruto de uma estrutura social acentuada sobre os postulados de um capitalismo explorador e excludente?

Com estes pensamentos, segui meu curso, porém, confrontando-os também com a minha realidade atual de estudante e religioso.

(São Paulo, 12 de março de 2007)