O HOMEM E SEU CACHORRO DE NOME CACHORRO.

Ficou estabelecido de comum acordo. Os dedos minguinhos se entrelaçaram, fizeram o sinal da cruz nos lábios e por fim se abraçaram. O acordo estava firmado.

Os anos se passaram e ele ficou mais alto, mais forte, cabelos encaracolados, barba espessa e olhar distante e triste.

Ninguém conseguia adivinhar seus pensamentos. A companhia constante era um Pointer macho que lhe seguia até na hora do banho. Dormia no lado de fora do quarto. Viajava na cabine, no lado do caroneiro. Quando dia de missa, ficava em cima da carroceria da camionete e só de lá descia quando era para ir para a fazenda. Outro lugar não freqüentava. Reunião com outros fazendeiros, só se fosse na sua.

Chovera pela tardinha e um raio atingiu um pé de eucalipto, partindo-o ao meio. Esperou outro dia para ver o estrago. Ainda bem que não correra pela cerca de arame, numa destas tem alguma vaca encostada, e seria uma perda considerável. A vacada era toda PO. Mantinha um lote de novilha Nelore, que a pele era mais macia e lisa, que bunda de moça.


De tempos em tempos recebia o pessoal técnico da associação para registrar seu gado. Assim como duas a três vezes por ano, participava de alguma exposição. Não gostava de paparico. Ganhava por que tinha raça e qualidade. Vender só à vista. Nada de leilão e nem de cheque ou promissória.

Sistemático qual o avô materno. Seu João Miranda era daqueles que dinheiro tinha valor e devia ser amado e respeitado. Até Judas Escariote amava o dinheiro e deu no que deu...

Os parentes mais chegados e com mais intimidade lhe perguntavam porque não procurava uma moça para se casar? Ele respondia para quê? E quando você morrer para quem vai deixar todo este patrimônio? Ah! Isto é assunto para quando eu morrer. Antes não adianta me preocupar.


Mandara a máquina moto-niveladora aplainar as estradas internas da fazenda e uma que passava na divisa que ligava outros municípios. Era uma estrada municipal.

Volta e meio gostava de tomar banho em um rio que tinha um poço de água fria e escura. Saltava de cima de uma pedra e lá mergulhava. Subia na cachoeira e lá ficava pelado olhando a natureza. A sua natureza e a Natureza mãe. O cachorro Pointer, tinha um nome peculiar: Cachorro. Achava uma falta de educação colocar nome próprio de gente em cachorro. Então era Cachorro vem aqui, Cachorro corre pegar aquela bola e era Cachorro para lá e Cachorro pra cá. Os dois se entendiam.

Um dia comprou uma antena parabólica e uma televisão. Agora sim estava informado do que acontecia no mundo, distante da sua fazenda. Recebia revistas técnicas, jornais e informativos, escutava rádio, mas a televisão era diferente.

Estava sentado na sala assistindo noticiário, quando lembrou-se que não havia informado um funcionário a respeito de um embarque de tourinhos para serem expostos. Mandou chamar o tal funcionário. Quanto este entrou na sala, desmaiou. Mas que coisa esquisita? O homem entra na sala, dá um grito e desmaia. Amoníaco e logo acorda. O que aconteceu homem de Deus? Ora, eu nunca tinha visto esse tipo de gente, dentro desta caixa falante, me assustei e desmaiei. Assim era a sua vida, os sustos inéditos, as alegrias muitas delas nunca expressadas. Contido e calado.

Acordara todo suado. Camiseta molhada, fronha do travesseiro molhada. Cabelos molhados. Um enorme susto. Ouvira falar que podia ser tuberculose. Tísico? Só me faltava essa. Um banho morno e uma dose de conhaque e a situação estava resolvida. Já eram quatro e tanto da madrugada e em pouco tempo haveria movimentação na cozinha para acender o fogão à lenha. O café era moído na hora. Peneira 8, o leite vinha ainda com a espuma. O pão esquentava na chapa, e depois passava uma generosa camada de banha e colocava sal. Gostoso? Melhor ainda se desse uma esquentada na fatia de pão, agora com banha e sal. Coisa de doido. Dois ovos mal passados e uma fruta qualquer e estava “comido” até o meio dia. Entrou na cozinha e se pôs a acender o fogo. Os anos já estavam passando e deixando erodido aquele rosto. O corpo já não era o mesmo de antes tempo.


Voltou para o quarto. Tomou mais um banho e começou a arrumar a mala. Escolher que tipo de roupa? Na realidade tinha é uma roupa para ir à missa aos domingos e um terno preto para enterros. Mania de usar preto nos enterros. Juntou mais alguma coisa e saiu. O café já estava pronto e mandou chamar o funcionário encarregado dos negócios na sua ausência.

Enquanto tomava café foi ditando o que teria que ser feito, e o encarregado anotando.

Quanto voltaria? Quando eu chegar e pronto. Perguntar para onde iria, nem pensar.

Não usava aquele carro há mais de ano. Mas sempre mandava dar uma espiada para ver como estava. Mala no banco de trás, chapéu não levaria. No banco do caroneiro já estava acomodado o cachorro de nome Cachorro. Documentos em ordem e partiu.

No rádio a música sertaneja. Muda de estação e ouve. “ Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar. A cada despedida eu vou chorar e a cada beijo te... . Parou o carro. As lágrimas agora corriam soltas. Não soluçava porque tinha vergonha de si mesmo. Mas o choro era o chora da alma. O cachorro de nome Cachorro simplesmente olhava como que compreendendo a situação. Não podia fazer nada, a não ser solidário com aquele olhar de pidão.

Porque meu Deus? Porque?

As luzes da cidade podiam ser vista. Aos poucos era um festival de luzes. Carros, ônibus, ruas iluminadas, prédios e casas, tudo eram luzes.

Entrou pela garagem. Subiram os dois. Ele e o cachorro de nome Cachorro. O apartamento de cobertura, estava cheirando aquele cheiro de apartamento fechado. Mas tudo em ordem. A faxineira vinha duas vezes por semana para abrir o apartamento e passar um pano aqui outro acolá.

Abriu a pasta e tirou a agenda de endereços. Olhou o relógio. Ainda não é tarde. Ligou. Que tempo cumprido e longo para a pessoa atender do outro lado. A voz ainda era a mesma. Você? Não acredito. Está na cidade? Só vou tomar um banho e me arrumar e pode vir me buscar.

O coração batia forte. Tinha um problema de visão. Na realidade era um pouco míope o que lhe obrigava a usar “óculos de perto”.Tirou a roupa, abriu a torneira, misturou as águas. Sempre tomava banho de água fria. Mas estava um pouco tenso, e uma água morna não faria mal. Entrou debaixo daquela ducha e pensou que estava tendo um derrame ou um enfarte. A vista escurecera, ficara embaraçada. Não conseguia ver direito. Um susto. Um riso, esquecera de tirar os “óculos de perto” e entrara no banho com eles. Riu como criança.

Sim como criança. Era esta a imagem que tinha. Os dedos minguinhos se entrelaçando, fazendo o sinal da cruz nos lábios e por fim se abraçando.

Na realidade sempre a abraçou, ora em pensamentos, ora em sonhos, mas sempre a abraçara.

Colocou um tapete na área de serviço, água e ração. Ali o cachorro de nome Cachorro iria passar a noite, porta aberta para andar à vontade pelo apartamento.

Saiu, sem antes deixar tudo arrumado. Banheiro em ordem. Roupas guardadas. Mala no maleiro e se foi.

O coração parecia que saltava pela goela. Trânsito livre. Poucos minutos e lá estava em frente o prédio. O porteiro ligou informando. O andar pelo saguão era de uma rainha. Desceu os degraus de forma elegante e imponente. Sim ela era a rainha de tudo.

Palavras poucas, abraço apertado, coração cortado. Olharam-se fundo. Aquilo não era um abraço de amigos. Era um abraço de homem e mulher.

Jantar em restaurante discreto. Iluminação leve. Comida saborosa. Champanhe no ponto certo de frio.

Não voltaram para nenhum dos apartamentos. Hospedaram-se na suíte presidencial do melhor hotel da capital. Seria indiscrição narrar os momentos de amor. Mas não seria certo deixar de narrar a cena que se repetiu muitos anos depois: Os dedos minguinhos se entrelaçaram, fizeram o sinal da cruz nos lábios e por fim se abraçaram. O acordo estava firmado. Firmado e consumido. Agora se entregaram de corpo e alma, um ao outro.

O dia já corria alto. Acordaram abraçados. Uma fruta, um suco. O gosto amargo das bocas desapareceu. Aquele beijo, aquele momento. Voltaram para o apartamento dele. E então o fato ocorreu. Ao abrir a porta do apartamento ouvia-se a música: Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu te amar.. . Mas quem ligara o rádio no quarto? Foi aos poucos chegando para o lado do quarto de casal e ficou pasmo. Era o cachorro de nome Cachorro que estava escutando música. Refez-se do susto. E se lembrara então que havia deixado o rádio programado no despertar com música.

Ela entrou logo a seguir e viu outra cena inédita. O cachorro de nome Cachorro, parecia que sorria de felicidade, era uma alegria só. A tristeza tinha abandonado o coração do seu amigo e dono.

Durante muitos anos o cachorro de nome Cachorro, viveu na companhia daqueles que tanto amou e souberam esperar no tempo e pelo tempo de se amarem de verdade.

Um dia o cachorro de nome Cachorro, não acordou. Foi sonhar no céu. Neste dia novamente a música tocou. E se podia ouvir claramente: Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu te amar...

Pois é os animais também amam, àqueles lhes amam. Em especial um cachorro de nome Cachorro.