O HOMEM DA CABEÇÃ DE PAPELÃO

 

Atilio Borges Neto

Neste artigo tencionamos analisar o conto O Homem da Cabeça de Papelão para assinalar os elementos relevantes de uma narrativa e, assim, compreender um pouco mais da produção de sentidos de um texto, considerando o seu aspecto estrutural e discursivo. Para tanto, a nossa análise foi efetuada de forma fragmentada, o que acreditamos ser uma forma que propicia clareza e objetividade em estudos de maior teor estrutural do que semântico.  

Antes de dar início na parte analítica deste trabalho, achamos viável informar que a obra literária O Homem da Cabeça de Papelão foi criada pelo autor Paulo Barreto (1881-1921) que se tornou célebre com o pseudônimo de João do Rio. Sobre essa obra, ocorrerá um resumo após o destaque de alguns elementos da narração que terão uma finalidade contextualizadora para este trabalho. Nessa linha de raciocínio, principiamos a análise com a apresentação dos personagens envolvidos no conto.

            Os personagens são: Antenor, mestres do Antenor, amigos do Antenor, a mãe de Antenor,  mendigos, o delegado de polícia, o tio de Antenor, companheiros de trabalho do Antenor, patrões do Antenor, o senhor Praxedes, a Maria Antonia, o relojoeiro, o ministro da agricultura e o presidente da república.

            Sobre o tempo, não há uma refêrncia de uma data específica, mas podemos notar que a estória se sucede no decorrer de mais de um ano e próximo ao desfecho dela inferimos que a época em que o personagem vivência está perto das eleições políticas. Ainda sobre o tempo, nota-se que a estória é narrada em tempo cronológico.  

            O espaço em que se desenvolve o enredo é o país chamado de Do Sol. Dentro desse país o personagem  Antenor passa por espaços como a escola, a delegacia, a rua em que vivem os mendigos, em comércios, em indústrias, na capital chamada Bom Senso e na relojoaria. Apesar de Antenor passar por todos esses lugares não há, no conto, características sobre esses lugares.

            O narrador do conto é do tipo narrador observador. Em nenhum momento ele se insere na história. Diante desse fato constatamos que o foco narrativo está em terceira pessoa, o que pode ser comprovado com um trecho da narração que se encontra logo abaixo:

[...] Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a, propondo um concubinato que não o desmoralizasse. [...]     

           

            A partir dessa ocasião, efetuaremos um resumo do conto para em seguida expor os elementos que fazem parte do enredo.

            Antenor é um rapaz que mora na capital do país do Sol, ele convive com sua mãe e alguns parentes. Por onde passava, o  rapaz era mal visto por ser bom, e sincero, e honesto, e inteligente. Essas meras qualidades eram tidas como defeitos terríveis para os habitantes da Bom Senso, pois lá todos estavam acostumados a trapacear, a falsificar, a valorizar a vaidade e a hipocrisia tudo de acordo com a mentira. Nisso surge um problema para Antenor que é o fato de sua mãe desejar que ele mude suas atitudes. Além disso, há outro empecilho que consiste no fato de que ele se apaixona por Maria Antonia e resolve casar com ela. Todavia, a Maria aceita a proposta e estabelece a condição de que só casará se ele arrumar a própria cabeça, sendo igual aos outros habitantes da Bom Senso. Nisso, o rapaz resolve tomar juízo e ao passar de frente a uma relojoaria, ele entra no local e conversa com o relojoeiro sobre a sua cabeça que não regula muito bem. O relojoeiro se dispõe  a consertá-la e fica com a cabeça de Antenor, dando-lhe para o uso temporário uma cabeça de papelão. E lá se foi antenor para a rua com sua nova cabeça de papelão. A partir de então, o rapaz começou a pensar com a cabeça de papelão e começou a trapacear, a mentir, a vender feijão podre e nisso ficou bem visto pela mãe, pelos parentes. E fez novos amigos como o Ministro da agricultura e outros burgueses. Assim ficou adorado por todos e a Maria Antônia ficou muito contente porque o rapaz estava com um bom juízo, e o juízo deu a Antenor a lógica de não se casar com a Maria , pois ela era pobre. Portanto, ele desprezou-a e propôs a ela apenas um relacionamento sem compromisso e às escondidas. O tempo passou e Antenor chegou a ser eleito Deputado e logo queimou o filme do presidente da república, pois queria tomar-lhe o lugar nas próximas eleições. Assim, o rapaz era feliz e bem visto e, em um certo dia, ele passou de frente a relojoaria onde deixara sua cabeça para conserto, entrou lá e perguntou se sua cabeça já estava arrumada, o relojoeiro disse que ela não tinha defeito algum, era a melhor cabeça já vista e regulava muito bem. Nisso, Antenor ia devolver a de papelão, mas não o fez porque resolveu respeitar a harmonia social, foi prudente em não devolver a de papelão e, assim, troco-a pela sua antiga cabeça, deixou a antiga com o relojoeiro e continuou com a de papelão. Logo, todos os seus conflitos forma solucionados, pois com a cabeça de papelão, ele se tornou um habitante dos mais ilustres no país Do Sol.     

            Enredo:

            O enredo do conto O Homem da Cabeça de Papelão é o conjunto dos elementos que condizem com o começo, o meio, o conflito e o final da estória. Nessa acepção, apresentaremos tais elementos de forma cronológica com a subtração de alguns fragmentos do conto seguida de exposição para sustentar as explicações postas daqui por diante.

            Exposição:

             A exposição do conto se principia com a descrição do espaço geral que é o país do Sol e com uma breve descrição do Antenor. Nessa descrição, notamos características físicas do país e algumas características sociais do Antenor. No que diz respeito ao país, podemos destacar as seguintes particularidades que foram apresentadas no conto:

[...] O país do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em ideias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital.  [...]

            No que diz respeito ao Antenor, destacam-se algumas especificidades que podem ser notadas no primeiro parágrafo do conto: "um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social".

            Desenvolvimento:

            O desenvolvimento flui a partir do momentoem que Antenor foi trabalhar, passando por setores do comércio, da indústria, passando por professor de escola, por revisor de jornal e condutor de bonde. Em todos os setores e cargos, ele é despedido por ser diferente dos demais funcionários. Um trecho interessante do desenvolvimento é o trecho que diz:

 

[...] Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre – qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. [...]

 

            Conflitos:     

            Os conflitos se desencadeiam a partir do conflito inicial que é quando Antenor escuta de sua mãe que sua cabeça não regula. Nessa ocasião, tudo estava contra ele; seus parentes não o cumprimentavam mais, não tinha mais emprego e era odiado por pessoas alheias:

 

[...] Estava convencido de estar com a razão, de vencer.Mas, a razão sua, sem interesse, chocava-se à razão dos outros [...]

[...] Os parentes, porém, não o cunprimentavam mais [...]

[...] Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa [...]

[...] É da tua má cabeça, meu filho [...] [...] A tua cabeça não regula [..]

 

            Esse problema que é de caráter externo ( é algo que parte da socidade que o envolve) e que enlaça o Antenor é alimentado logo na sequência por um conflito interno que vai desestruturar o personagem e é também a partir desse novo conflito que autor e texto geram uma transposição de sentidos no fio da narrativa, pois o personagem vai partir em busca de algo que não o preocupava antes. Mais do que antes, ele irá se preocupar em arrumar a sua cabeça. O tão exorbitante conflito é a paixão que Antenor sentiu por Maria Antônia:

 

[...] Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido [...]  

 

            Clímax:

            Vale expor que Antenor solucionou parte dos problemas, ou seja, estabilizou-se após trocar a cabeça normal pela de papelão, depois dessa posição adotada pelo personagem, ele chega num momento de extrema importância, é o momento em que vai decidir se devolve a cabeça de papelão ou se fica com ela, esse instante é o clímax do conto. É nesse momento que há uma expectativa para o desfecho, a expectativa de que  Antenor volte a colocar a cabeça antiga e normal mesmo que se dê mal por causa disso, essa é uma expectativa levantada pelo jogo que o autor faz com as convenções sociais, ou seja, em nossa sociedade é esperado que  as pessoas adotem boas práticas sociais que tragam benefícios a si mesmas e aos outros, tanto é que em novelas de televisão o bem sempre vence o mal no final (com muita gente sendo beneficiada) e o amor sempre supera desafios (trazendo felicidade). O autor joga com essas expectativas de caráter social e quebra a expectativa de um final segundo os parâmetros de o bem vencendo o mal e de amor como solucionador de conflitos.

            Ao contrário do esperado, é no clímax do conto que nós observamos o personagem  Antenor se transformando definitivamente em um protagonista para a sociedade dele (país do Sol) e em Antagonista para a real sociedade ( Brasil), pois o personagem decide que o melhor é seguir a ideologia cultural (convênções, valores, sentimentos, etc) da sua sociedade sem importar com o que anteriormente pensava, até porque a cabeça de papelão não o permite enxergar o mundo como a antiga cabeça e nessa acepção ele segue a verdade dos outros.

 

            Desfecho:     

            De acordo com o mencionado sobre o clímax,  Antenor decide ficar definitivamente com a cabeça de papelão e deixa a antiga cabeça na relojoaria, dando a si mesmo a oportunidade de continuar desfrutando de tudo o que conseguiu para si:  

 

[...] Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. Com ela. Eu continuo com a de papelão [...] 

 

 

            Considerações 

             Analisando o conto O Homem da Cabeça de Papelão, conseguimos perceber que a estrutura pela qual o autor optou na elaboração da estória modificou e enfatizou alguns sentidos relacionados às convenções sociais, pois antes do conflito (paixão) o personagem era o modelo positivo de homem esperado pelas pessoas da nossa sociedade e depois que buscou solução para sua paixão o personagem se tornou o modelo negativo de homem que não se espera ter em nossa sociedade. Nesse jogo de mudança de valores, o autor trabalha com paradoxos da natureza humana, assim reconhecemos no conto a oposição entre bem e mal, entre verdade e mentira, início e fim, passado e presente, presente e futuro, egoísmo e solidariedade. Em meio a essas oposições, o autor cria de forma cômica a vitória do mal sobre o bem. Nesse ponto, a estória não fica aberta para outras soluções, ou seja, não há como o leitor refletir, no final, se o melhor é ter uma cabeça de papelão ou ter uma cabeça normal porque o final é conclusivo, o personagem adota definitivamente a cabeça de papelão. Assim, o autor induz o leitor a concordar que a cabeça de papelão é a vitoriosa, é o que vale apena vestir, não havendo outra saída.

            Visto por outro prisma, concluímos por inferência que o texto pode convencer uma pessoa a aderir a ideia de que a verdade, a honestidade, a camaradagem e o bem não são valores apreciáveis na nossa sociedade, pois esses valores, no texto, são colocados como sendo negativos. E sendo assim, não deveriam ser exemplificados.

            Mas, contudo, todavia, porém, esse mesmo sentido negativo dado ao valores (verdade, honestidade,etc) pode convencer outros leitores a enxergar que o mal está a cada dia aumentando e fazendo bons valores desaparecerem do cotidiano, deixando as pessoas cada vez mais com cabeças de papelão. Nesse sentido, alguém pode convencer-se de que é necessário buscar os valores que se estão perdendo a cada dia, empenhando-se em dar bons exemplos de solidariedade e cidadania. Cremos que essa questão da produção de sentidos pode atuar ou não no aspecto do convencimento dependendo da história de vida de cada leitor, pois como diz CORACINI (2001): na produção de sentidos estão envolvidos os aspectos históricos-sociais de cada leitor.    

REFERÊNCIA

ALUÍSIO, Azevedo. Coleção Literaturaem Minha Casa. SãoPaulo: Scipione, 2003.

CORACINI, Maria.J.R. Discurso e Leitura: Heterogeneidade e Leitura Na Aula de Língua Materna. Pelotas: EDUCAT, 2001.