5. O HOMEM: ALGUMAS DAS SUAS DIMENSÕES

"O processo educativo implica o cruzamento, o conflito, ou exige colaboração entre factores relacionados com as diversas dimensões da pessoa humana: afectiva, ética, técnica, intelectual, corpórea, avaliativa? No plano ideal, todas estas dimensões deveriam integrar-se no todo que é a personalidade humana, do ponto de vista individual e social. Portanto, ao menos como ideal, o processo educativo visa à totalidade do homem..." (GILES, 1983: 27)
O homem, esse ser, ainda misterioso em muitos dos seus aspectos e/ou dimensões, constitui, no início do século XXI e do terceiro milénio, segundo a cronologia do nosso calendário ocidental, um verdadeiro enigma e, talvez por isso mesmo, ainda não conseguiu, no território, que fisicamente habita e pensa conhecer, a estabilidade, a tranquilidade e o desenvolvimento equilibrado entre todos os indivíduos da sua própria espécie, enfim, a verdadeira dignidade da condição humana, pese embora os avanços que, relativamente à antiguidade estudada, se tenham verificado, principalmente no que respeita à esperança de vida, assim como em mais alguns aspectos da materialidade envolvente. Então, quais as razões e quais as soluções para se alterar, para melhor, a actual situação desse mesmo Homem, integrante de um mundo em alteração constante, até nos aspectos mais naturais da sua constituição. Que falta a este Homem, aparentemente, tão "poderoso?"
Se é certo que, tradicionalmente, se alia à noção de ciência, o conceito de conhecimento e, nesta perspectiva, se analisam, também, as diversas maneiras de compreender o mundo, podendo aqui destacar-se alguns dos níveis clássicos: conhecimento espontâneo ou senso comum; conhecimento científico, este com um suporte actual de técnicas, tecnologias e equipamentos e considerado como uma vitória recente da humanidade, principalmente a partir do século XVII com as revoluções Coperniciana e Galileica.
Também não é menos verdade que no pensamento grego da antiguidade clássica, filosofia e ciência integravam uma única árvore do saber, logo, não repugnará considerar-se a Filosofia como um, de entre outros, caminho possível para melhor se compreender o Homem e o Mundo. Como ponto prévio, a filosofia direccionar-se-á, sempre que possível, para a sua aplicação educativa e formativa do homem-cidadão: trabalho, estudo, cidadania.
Portanto, a realidade que se julga conhecer e a natureza que se pensa dominar, através da ciência e da técnica, constituem, apesar de tudo, alguns campos de acção onde o Homem se pretende impor, porém, com a agravante de, ele próprio, ainda não se conhecer verdadeiramente, o que implica que, não se conhecendo a si próprio como deveria, muito menos conhece os seus semelhantes, daí os conflitos endógenos e exógenos que continuam a existir num mundo que se pretende cada vez mais humanizado, sejam quais forem as abordagens e perspectivas que se coloquem no seu estudo.
Ao longo dos séculos, o Homem tem procurado ampliar os seus conhecimentos e aplicá-los, nem sempre na concretização de objectivos altruístas, e sem se negar a conquista de muitos benefícios materiais que, directa ou indirectamente, proporcionam à espécie humana melhores condições de vida, em aspectos visíveis para o senso-comum, não se ignora, por outro lado, as incógnitas e as dúvidas que, em boa consciência, persistem em fazer sofrer a humanidade e para as quais se sente incapacidade para as esclarecer e resolver.
Aliás, até mesmo certos fenómenos naturais constituem, ainda hoje, verdadeiros problemas sem soluções eficazes e definitivas: sismos, pluviosidades diluvianas, temperaturas insuportáveis, vulcanismo, astrologia, ambiente, entre outros, perturbam, igualmente, este mesmo Homem. Desde e até quando o Homem viverá neste universo de incertezas, de dúvidas, de conflitos, de insatisfação? E como poderá o Homem tentar resolver esta imensidade de situações para as quais nem sequer tem o aperfeiçoamento de si próprio, no sentido de vir a conseguir uma sociedade mais humana, mais justa, mais solidária, mais tolerante e feliz?
Importa discutir quais os caminhos a seguir, para que, num futuro próximo, o Homem possa beneficiar de todo o seu potencial. Certamente que não haverá processos e estratégias únicos, infalíveis e/ou predominantes. As estratégias a empregar serão, necessariamente, interdisciplinares porque: tal como o homem não terá condições para viver isolado; também um qualquer ramo do conhecimento será incapaz de encontrar e implementar as melhores soluções para os diversos problemas com que a humanidade se enfrenta actualmente: conflitos político-ideológicos; fundamentalismos diversos; proliferação incontrolada de armamento bélico; usurpação de direitos adquiridos pelo trabalho; aumento desenfreado de consumo de estupefacientes; alastramento de doenças graves; fome; crescimento do fosso entre ricos e pobres; intolerância a vários níveis em diferentes actividades e situações: sociais, económicas, culturais, políticas e estatutárias; violação sistemática dos Direitos Humanos, incluindo o desprezo pelos direitos das vítimas. Neste quadro, minimamente descrito, todos são poucos e os meios insuficientes para, isoladamente, se obterem resultados favoráveis à alteração daquelas situações.
Sabe-se que o recurso a métodos rigorosos possibilita que a ciência atinja um tipo de conhecimento sistemático, preciso e objectivo, pelo qual se descobrem relações universais e necessárias entre fenómenos. A ciência tem um carácter universal na medida em que as suas conclusões não valem, exclusivamente, para os casos observados, mas também para todos os que se assemelham.
A realidade e/ou o mundo construído pela ciência desejam a objectividade, isto é, as conclusões poderem ser verificadas por qualquer outro membro da comunidade científica, porque está estabelecido que a ciência dispõe de uma linguagem rigorosa, para que os conceitos não se apresentem ambíguos, insuficientes ou ambivalentes. Todavia, a construção e desconstrução de paradigmas científicos, sucedem-se a um ritmo cada vez maior. Já passou o período da idade média, onde, por exemplo, o geocentrismo prevaleceu como um dogma durante vários séculos, acabando por ser desmontado, na idade moderna, pela teoria heliocêntrica.
De igual forma se afigura cada vez mais necessário o contributo de outras áreas do saber que, não tendo o aval positivista, são igualmente importantes, pelo menos na tentativa de busca de novas interpretações, de novos questionamentos, de possíveis e diferentes sugestões de solução. Em início de século e de milénio, o Homem, quando esgotadas as possibilidades da ciência, e em situações-limite recorre a outros domínios de um determinado tipo de conhecimento, utilizando códigos muito específicos e ocultos para a maioria das pessoas, também denominados por mânticas.
Com que resultados científicos, não se sabe, mas com resultados adquiridos pelos próprios que, alegadamente, consideram favoráveis, isso parece acontecer. Evidentemente que entre dois extremos: ciências exactas e objectivas e conhecimentos e práticas esotéricas, existem outros meios para, pelo menos, se iniciar novos processos, designadamente na área das ciências sociais e humanas e também no domínio da sabedoria filosófica, metodologias, estratégias e tecnologias educativas.
O Homem tem de se esforçar no sentido de agir cada vez mais como um ser reflexivo e cada vez menos como um ser emotivo, para o que deverá conciliar os Quocientes de Inteligência (QI) e Emocional (QE). Ora, tal equilíbrio pode ser minimamente atingido se houver uma predisposição para a reflexão diária, dir-se-ia, permanente. É aqui que, sem menosprezo pelas ciências e outros conhecimentos, a filosofia educacional pode e deve intervir, como uma sabedoria e uma técnica moderadas, que procura consensos assentes na prudência da experiência milenar e já clássica.
E se a ciência não pode construir fórmulas rigorosas, verificáveis, experimentáveis e definitivas no que respeita à "formação do cidadão do futuro", também não parece viável que outros conhecimentos e práticas do domínio astrológico-espírita, consigam atingir tal objectivo, então resta o contributo da reflexão filosófica. É muito frequente, utilizar-se o termo filosofia, para justificar determinadas decisões, práticas, atitudes e comportamentos, como por exemplo: uma nova filosofia de vida; uma filosofia da educação; uma filosofia da saúde; uma filosofia empresarial e por aí adiante.
O termo acaba por se vulgarizar e perder o seu significado profundo, o seu conceito socrático. Quaisquer que sejam os usos, reconhece-se, apesar de tudo, a importância da Filosofia, enquanto "algo" que, em última instância serve para justificar aquilo que as diversas ciências e conhecimentos não explicam. Será uma filosofia desta natureza que suportará o trabalho de educação e formação de um novo cidadão.
Esta dimensão racional do Homem, não poderá continuar a ser ignorada pelos cientistas, pelos técnicos, pela tecnologia e por outros domínios do conhecimento. A reflexividade humana, deverá estar presente em todas as actividades e, se se quer mudar para melhor a convivência entre os homens, cumpre preparar o futuro, a partir da formação cívica de cada indivíduo.
Será algo que se interiorizará em cada um que, permanentemente, indicará o que é certo e errado. Isto não se consegue com fórmulas científicas, ou seja, como quantificar o sentimento, a emoção, a atitude, a virtude, o erro, o comportamento, os valores referenciais da ética e da moral? Só uma praxis qualitativamente em aperfeiçoamento poderá conduzir à construção do cidadão do futuro, o qual se pretende comprometido e conivente com as soluções que visem erradicar as situações excessivas que prejudicam uns em benefício de outros. Também aqui há um défice de cidadania que não se pode escamotear mais.
É neste enquadramento de vários confrontos: homem e ambiente; sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas e/ou em vias de desenvolvimento; ricos e pobres; individualistas e colectivistas; governos e governados; patrões e empregados; crentes e ateus; religiosos e laicos; políticos e não políticos; democracia e totalitarismo; entre outros aspectos, que se joga a felicidade da humanidade. Como se pode e deve viver juntos em harmonia? Obviamente que não caberá, exclusivamente, a este ou àquele domínio do conhecimento, a este ou àquele indivíduo, isoladamente considerado; a esta ou àquela comunidade, modificar o actual estado do mundo, na medida em que há um conjunto de situações cuja resolução requer recursos de diversa natureza e autoridade para implementar as medidas necessárias, o que só será viável a partir da intervenção de um Estado moderno, forte e competente, na medida em que: "O Estado moderno construiu-se a partir do momento em que se tornou capaz de desempenhar uma série de funções, anteriormente distribuídas por diferentes comunidades: a função legislativa; a protecção da segurança individual e da ordem pública; a defesa dos direitos adquiridos; o cuidado com interesses sanitários, pedagógicos, políticos, sociais e económicos; a protecção contra os habitantes de outros Estados." (LEITE, 1980: 91)
Sem se pretender defender um Estado providência, deseja-se um Estado regulador, a partir do qual as instituições funcionem livre e responsavelmente e, nesta perspectiva se podem desenvolver os vários ramos de actividade social, económica e cultural, com autonomia, competência e responsabilização.
É neste sentido que o Estado deve regular os sistemas que promovam o cidadão de forma a torná-lo o elemento fundante da sociedade contemporânea, em progressão evolutiva do aprimoramento dessa mesma sociedade, sempre em projecção para o futuro. Quaisquer que sejam tais sistemas, certamente que a educação/formação constituirá um pilar insubstituível para se atingirem aqueles objectivos. No âmbito da educação/formação é determinante o que e como se estuda, o que se pratica e como se implementam os conhecimentos na perspectiva do bem-comum.
Naturalmente que não basta um Estado regulador se a sociedade no seu todo não alterar certos procedimentos, certa mentalidade e se continuar a ignorar valores referenciais da existência humana, nas suas diversas dimensões. Poderá ser aqui a entrada das ciências sociais e humanas em geral e, especificamente, as Ciências da Educação em interdisciplinaridade com a Filosofia para, através da reflexão, se equacionarem os desafios do futuro, que são muitos e complexos. Caberá perguntar, em que poderá a Filosofia orientar? O seu contributo para a educação e formação da pessoa humana, é valorizado se for possível adaptá-la como sendo: " um instrumento de luta e de critica contra todos os sectarismos e dogmatismos. A sua ética natural é a da amizade e do diálogo e é bom que os seus ensinamentos sejam defendidos e desenvolvidos no sistema educativo. Deveria estar presente nos estudos superiores, sejam quais forem as disciplinas." (MALHERBE & GAUDIN, 1999: 178)
Considera-se, igualmente importante, sem menosprezo por outros domínios do conhecimento, e a par do sistema educativo nacional, um outro que, nos dias de hoje, se pretende cada vez mais interventor: alude-se aqui ao sistema político ao nível das autarquias, no que se refere à autarquia de freguesia, e dentro desta, à autarquia rural das pequenas comunidades locais. Com efeito, dada a proximidade dos eleitos com os eleitores, estes criticam e afastam-se ou aplaudem e seguem as atitudes daqueles, sempre que se joga o bem-estar de todos. A este nível, as evasivas dos responsáveis políticos locais não são fáceis
Quaisquer que sejam os domínios em que os indivíduos se movimentam, a dimensão pessoal e interrelacional do Homem estará sempre presente e não foge às normas, às regras de conduta, a determinados hábitos, costumes e tradições sociais e, do mesmo modo, acatará todo um conjunto de regulamentos profissionais que constituem o corpo de direitos e deveres laborais, incluindo-se, em quaisquer domínios, um articulado de sanções, sejam positivas, no sentido do prémio para quem cumpre; sejam negativas, aqui entendidas como punição para os que violam regras estabelecidas. Haverá, portanto, um sistema social que assenta no protocolo básico da dimensão social, que "...Nos ensina que o sistema social condiciona, modela e orienta aspectos fundamentais do comportamento e da personalidade. (...) tende a regular e orientar o comportamento de seus membros e componentes." (ROMERO, 1998: 72)
Se se continua a reflectir sobre a existência humana, depara-se com uma teia complexa, de interdependências entre as diferentes dimensões humanas que, no homem moderno, são cada vez mais evidentes e que para o cidadão do futuro se tornam necessárias para se poder compreender o outro como um igual, no qual se possa rever como pessoa de direitos e deveres, isto é, como cidadãos do mundo. Acredita-se que este será um dos caminhos a seguir neste novo século, entre outros percursos tão interessantes quanto eficazes. Independentemente dos processos, das estratégias e dos recursos a utilizar, parece não restarem muitas dúvidas sob a urgência de formar um novo cidadão, até porque outros processos, nomeadamente bélicos, totalitários e radicais não atingiriam os objectivos que, pela via pacífica da educação e formação, se pretende defender neste trabalho, para se obterem os resultados desejados.

Bibliografia

BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2002). "Silvestre Pinheiro Ferreira: Paladino dos Direitos Humanos no Espaço Luso-Brasileiro" Dissertação de Mestrado, Braga: Universidade do Minho, Lisboa: Biblioteca Nacional, CDU: 1Ferreira, Silvestre Pinheiro (043), 342.7 (043). (Publicada em artigos, 2008, www.caminha2000.com in "Jornal Digital "Caminha2000 ? link Tribuna"); (Exemplares nas: Universidade do Minho, ISPGaya; Bibliotecas Municipal do Porto e de Caminha; Brasil ? Campinas SP: UNICAMP, PUC, METROCAM, UNIP; PUC, Municipal Prefeitura de Campinas)
BATOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2009). Filosofia Social e Política: Especialização: Cidadania Luso-Brasileira, Direitos Humanos e Relações Interpessoais, Bahia/Brasil: FATECBA ? Faculdade Teológica e Cultural da Bahia, Tese de Doutoramento. Exemplares Portugal na Biblioteca Municipal de Caminha; Brasil: Bibliotecas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas-SP, Metrocamp ? Universidade Metropolitana de Campinas-SP)
GILES, Thomas Ransom, (1983). Filosofia da Educação, São Paulo: E.P.U. Editora Pedagógica e Universitária.
LEITE, Merian Moreira, (1980). Iniciação à História Social Contemporânea, 3. Ed., São Paulo: Editora Cultrix.
MALHERBE, Michel, e GAUDIN, Philippe, (1999). As Filosofias da Humanidade. Trad. Ana Rabaço, Lisboa: Instituto Piaget, pp. 164-170.
ROMERO, Emílio, (1998). As Dimensões da Vida Humana: Existência e Experiência, São José dos Campos: Novos Horizontes Editora.


Venade ? Caminha ? Portugal, 2010

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
[email protected]
Mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea
Universidades: Minho/Portugal; Unicamp/Brasil
Doutor em Filosofia Social e Política
Faculdade Teológica e Cultural da Bahia -Brasil
Professor-Formador