Introdução

A razão da utilização de métodos complementares para investigação de pacientes em medicina é confirmar o diagnóstico de uma doença, após ter sido estabelecida uma hipótese baseada na história clínica e exame físico. Estes mesmos exames complementares, podem auxiliar o médico na escolha da melhor terapêutica quando as informações são confiáveis e os seus resultados estabelecem uma relação direta de causa-efeito na doença em questão. Em outras palavras, os sinais clínicos indicativos da presença de uma doença são específicos ou pelo menos mais comuns para aquela doença e, quando são abolidos pelo tratamento implementado, indicam que a doença foi curada ou que suas repercussões clínicas foram amenizadas. Os métodos complementares evidenciam a presença de sinais ocultos, próprios da doença e que são identificados através de métodos especiais de investigação.

Do mesmo modo, os sinais clínicos relacionados a uma doença podem ser úteis para se avaliar a sua repercussão sobre o paciente. Essas informações, aliadas aos resultados dos exames complementares, permite que se estabeleça um prognóstico. Por exemplo, após o infarto do miocárdio, o estado da função ventricular pode determinar os sinais e sintomas clínicos do paciente. Além disso, quanto mais comprometida for a função mais intensos e complexos devem ser os mecanismos de compensação hemodinâmica, dados por exemplo, pelas influências do sistema nervoso autônomo ou sistema renina angiotensina. No primeiro caso, a taquicardia observada ao exame físico, eletrocardiograma ou Holter de 24 horas, indicam elevação dos níveis plasmáticos das catecolaminas, por exemplo. A presença de arritmias complexas nesta população indica grande comprometimento da função, presença ou não de isquemia residual, influencia de catecolaminas, etc. Os métodos de investigação devem ser capazes de identificar estas alterações fisiopatológicas e auxiliar o clínico no raciocínio e, a partir deste, traçar a melhor estratégia terapêutica.

O valor preditivo positivo de um método de investigação é tanto maior quanto mais estreita for a relação existente entre as informações por ele oferecidas e a fisiopatologia da doença presente. Este talvez seja o mais importante critério a ser considerado quanto da utilização de um procedimento de investigação. Essa variável significa a probabilidade de ocorrência de um evento quando determinado achado, ligado à doença, for encontrado na investigação complementar. Analisado de outra maneira, significa a probabilidade de o indivíduo ser realmente portador de uma doença, quando o resultado do teste é positivo. Quando o valor preditivo positivo é elevado, o resultado do método de investigação pode ser utilizado para estabelecer uma estratégia terapêutica com alta probabilidade de sucesso. Do contrário, quando o valor preditivo positivo é baixo, significa que outros fatores, além daquela variável que está sendo investigada, influencia a evolução clínica.

Eletrocardiografia Dinâmica na Estratificação de Risco para Morte Súbita

O motivo pelo qual os pacientes se submetem ao Holter de 24 horas, quando apresentam sintomas, é esclarecer a origem destes e sua possível relação com alterações do ritmo cardíaco. Quando apresentam arritmias complexas e são assintomáticos, é para identificar os indivíduos com pior prognóstico e, com isso, tentar melhorar a sobrevida através de um tratamento efetivo. Vários estudos na literatura têm demonstrado que a presença daquelas arritmias, detectadas pela eletrocardiografia dinâmica, após a fase aguda do infarto do miocárdio é indicativa de mau prognóstico na evolução a médio prazo. Entretanto, embora a especificidade e o valor preditivo negativo de tal achado sejam elevados, a sensibilidade e o valor preditivo positivo permanecem baixos. Isso talvez se deva às características próprias das populações envolvidas nos estudos ou, então, que as arritmias são apenas marcadores de alto risco, não estando envolvidas diretamente na causa de morte. Este fato pode ser realçado pelos estudos recentes utilizando amiodarona na prevenção de morte súbita em pacientes com arritmias ventriculares complexas. Nestes, a redução da mortalidade por causa arrítmica e, em alguns deles, até mesmo a mortalidade global, ocorreu apesar da quantidade de extra-sístoles ventriculares não apresentar qualquer diferença estatisticamente significativa entre os sobreviventes e os pacientes que morreram.

O surgimento de arritmias ventriculares malignas depende da interação entre características do substrato arritmogênico (circuito de reentrada), presença dos gatilhos (extra-sístoles ou taquicardia sinusal) e de fatores moduladores (representados pelas influências das catecolaminas, pH e perfusão teciduais, etc). A presença de arritmias complexas ou gatilhos atuando sobre um substrato estável, provavelmente não acarretará qualquer alteração significativa. Por essa razão, não é rara a observação de muitos pacientes na clínica que apresentam uma grande quantidade de extra-sístoles e, no entanto, vivem muito bem sem qualquer sintoma ou repercussão clínica destas. Por outro lado, o substrato arritmogênico pode se instabilizar por influências de fatores moduladores (isquemia ou ativação simpática, por exemplo) e, aquelas mesmas extra-sístoles que antes eram de baixo risco, agora podem ser capazes de causar taquicardia ou fibrilação ventricular. O Holter avalia apenas uma faceta desta complexa interação, ou seja, os gatilhos (quantidade ou características das extra-sístoles), e talvez por esta razão, os vários estudos publicados mostram que o achado destas arritmias durante a monitorização de 24 horas apresenta baixo valor preditivo positivo. Isso significa que, a simples presença destas não indica prognóstico ruim, embora retrospectivamente, a maioria dos pacientes que morreu apresente grande quantidade e elevada complexidade de arritmias ventriculares, como a taquicardia ventricular não sustentada.

Com a adição das informações extraídas da variabilidade do intervalo RR, quer no domínio do tempo, quer no domínio da frequência, a influência do sistema nervoso autônomo (balanço simpáto-vagal) também pode ser apreciada, incrementando deste modo, o valor preditivo da eletrocardiografia dinâmica na estratificação de risco em pacientes com arritmias. Quando os índices de variabilidade (SDNN, SDANN, pNN50, etc) apresentam-se baixos e existem arritmias ventriculares complexas durante a monitorização, a chance de identificação de indivíduos de maior risco para morte súbita, aumenta. Vários estudos têm mostrado que o valor preditivo do Holter aumenta quando as informações da variabilidade de RR são adicionadas.

Com o avanço da tecnologia, principalmente da informática, o clínico dispõe atualmente de mais uma arma na estratificação de risco de pacientes com arritmias ventriculares complexas. Ainda mesmo durante a realização da monitorização eletrocardiográfica de 24 horas, a análise do eletrocardiograma de alta resolução pode fornecer informações úteis a respeito da presença ou não de um substrato arritmogênico. Num circuito reentrante, a despolarização da área de condução lenta ocorre no momento em que a despolarização do tecido normal está terminando ou já se completou. A atividade elétrica desta região é silenciosa com os métodos de registros eletrocardiográficos convencionais. Entretanto, com a ajuda de softwares sofisticados e com a manipulação adequadas dos sinais elétricos, a ativação da área de condução lenta pode ser detectada pelo eletrocardiograma de alta resolução. As informações desta modalidade diagnóstica podem ser obtidas conjuntamente com o total de extra-sístoles ou de arritmias ventriculares e também com a variabilidade do intervalo RR durante a monitorização eletrocardiográfica de 24 horas aumentando assim, o valor preditivo positivo dos resultados obtidos. Os estudos que analisam a importância dos métodos de investigação não invasivos na estratificação de risco de pacientes com arritmias cardíacas demonstram que o valor preditivo positivo destes métodos é mais elevado do que quando as informações por eles oferecidas são consideradas separadamente.

Com o conhecimento de que a dispersão da duração do intervalo QT bem como, a alternância elétrica das ondas T podem indicar a probabilidade de maior risco de eventos arrítmicos e, por conseguinte, de morte súbita, a incorporação da análise destas variáveis durante a monitorização eletrocardiográfica de 24 horas, deverá melhorar ainda mais a capacidade desta técnica de identificar os pacientes de alto risco. Além destas, a turbulência de frequência cardíaca após extra-sístoles ventriculares, um método de avaliação da influencia autonômica sobre o coração também traz informações prognósticas adicionais valiosas, particularmente quando associada a pesquisa de alternância da amplitude das ondas T. As publicações sobre este assunto ainda são iniciais mas em breve estas técnicas poderão ser incorporadas aos equipamentos de Holter.

Baseados em todas essas considerações preliminares, a eletrocardiografia dinâmica ou sistema Holter de investigação complementar, é um método útil na avaliação de pacientes com arritmias ventriculares complexas. Devido a própria natureza multifatorial causal da doença arrítmica, independente do tipo de cardiopatia (pós-infarto do miocárdio, miocardiopatia dilatada idiopática, etc) as informações fornecidas não devem ser consideradas isoladamente. Durante a monitorização de 24 horas, devem ser acrescentados os resultados da variabilidade do intervalo RR, do eletrocardiograma de alta resolução e, se possível e já estiver disponível, os dados relacionados à dispersão do intervalo QT, alternância elétrica das ondas T e a turbulência da frequência crdíaca.

O estado da função ventricular determina o prognóstico de pacientes no período pós-infarto do miocárdio bem como daqueles com miocardiopatia dilatada (isquêmica ou não isquêmica) e insuficiência cardíaca. Além disso, a presença de arritmias ventriculares complexas associada à disfunção ventricular (fração de ejeção < 40) identifica os pacientes de maior risco. Por esta razão, o conhecimento do estado da função ventricular associado às informações do Holter, elevam o valor preditivo positivo destes exames complementares, mais do que a informação fornecida por eles isoladamente.

Devido a natureza não invasiva da eletrocardiografia dinâmica ou Holter de 24 horas para avaliar pacientes com arritmias ventriculares complexas e, dada a controvérsia a respeito do valor das informações fornecidas por esta técnica no que diz respeito aos resultados do tratamento baseado nos resultados deste procedimento, o Holter deve ser utilizado nestes pacientes como método de investigação adicional. Deve-se salientar que os resultados devem ser analisados e considerados num contexto mais amplo com outros métodos de investigação.

De acordo com a American Heart Association e American College of Cardiologia, está listada abaixo a classificação das indicações do Holter:

Classe I - Condições para as quais há evidências e/ou concordância geral de que um determinado procedimento ou tratamento é útil ou efetivo

Classe II - Condições para as quais há evidências conflitantes e/ou divergências de opiniões sobre a utilidade/eficácia do procedimento ou tratamento
IIa - o peso das evidências/opiniões é favorável à sua utilidade/eficácia
IIb - Utilidade/eficácia é menos estabelecida pelas evidências/opiniões

Classe III - Condições para as quais há evidência e/ou concordância geral de que o procedimento/tratamento não é útil/efetivo, e em alguns casos pode até ser perigoso.

Indicações do Holter para detecção de arritmias para avaliar o risco de futuros eventos cardíacos em pacientes sem sintomas de arritmias:

Classe I - Nenhuma

Classe IIb - a) pacientes pós infarto do miocárdio
b) pacientes com insuficiência cardíaca congestiva
c) paciente com estenose sub-aórtica hipertrófica idiopática

Classe III - a) pacientes com história de contusão cardíaca
b) hipertensos com hipertrofia ventricular esquerda
c) pós infarto com função ventricular normal
d) avaliação pré-operatória de arritmias em cirurgia não cardíaca
e) pacientes com apnéia do sono
d) pacientes com valvopatia


Indicações para avaliação da variabilidade do intervalo RR para avaliar risco futuro de eventos cardíacos em pacientes sem sintomas de arritmias:

Classe I - nenhuma

Classe IIb - a) pacientes pós-infarto com disfunção ventricular esquerda
b) pacientes com insuficiência cardíaca congestiva
c) pacientes com estenose sub-aórtica hipertrófica idiopática

Classe III - a) pacientes pós-infarto do miocárdio com função ventricular normal
b) diabéticos, para avaliar neuropatia diabética
c) pacientes com distúrbio de ritmo que impeça análise da variabilidade de RR (como na fibrilação atrial).

Classificação do Holter para avaliação do sucesso da terapêutica antiarrítmica:

Classe I - Para avaliar a resposta a terapêutica antiarrítmica em pacientes nos quais a frequência da arritmia foi bem caracterizada como reprodutível e com frequência suficiente para permitir a análise

Classe IIa - Para detectar efeitos pró-arrítmicos da terapêutica antiarrítmica em pacientes de alto risco

Classe IIb - a) Para avaliar controle da frequência cardíaca na fibrilação atrial
b) Para documentação de recorrências de arritmias não sustentadas com ou sem sintomas durante tratamento ambulatorial

Classe III - Nenhuma