Grande parte do roubo de carros no Brasil é destinada a países como o Paraguai e a Bolívia, o que culmina na identificação de um delito de natureza transnacional [1], cujas características vão desde um alto poder de intimidação e corrupção, até a formação de uma estrutura criminosa hierárquica, onde há também a incidência da lavagem de dinheiro na regularização destes negócios, o que cria diversas amarras legais na recuperação destes veículos e na responsabilização dos envolvidos.

  1. 1.     Aspectos gerais – Fronteiras do crime

A América Latina possui uma repleta história de conflitos armados, internos e regionais, com infindáveis mortes e violações de direitos humanos, além é claro, de uma série de ditaduras num curso histórico recente, o que mostra a existência de uma evidente fragilidade social nesta região do planeta, ainda que a maioria dos países apresente notáveis evoluções sociais e econômicas nas últimas décadas. [2]

Neste compasso, a Bolívia e o Paraguai representam uma síntese deste continente, pois são claros reflexos de um passado de exploração e abandono institucional generalizado. No caso da Bolívia, a sua situação econômica é periclitante: Neste país o salário mínimo é de apenas 141 dólares, sendo a remuneração mais baixa da América do Sul. Igualmente, apenas 20% do total de trabalhadores possuem um emprego regular ou formal, onde o restante vive na informalidade,[3] com uma remuneração que não acompanha a velocidade inflacionária da moeda local, o boliviano. Neste sentido cerca de 54% da população boliviana vive abaixo da linha de pobreza, sobrevivendo com menos de dois dólares diários, e destes, 31% vivem na situação de indigência[4], sendo a mortalidade infantil no país é uma das mais altas do continente americano, superando a cifra de 49 mortes por 1000 nascimentos. [5]

Não distante da realidade boliviana, o Paraguai figura como um dos países mais pobres da América do Sul, com cerca de 56% da sua população vivendo abaixo da linha da pobreza, sendo que deste total, 30% vivem na linha da pobreza extrema, ou seja, em situação de indigência. [6] O Paraguai é hoje um vasto terreno para a atuação do crime organizado, pois perdura no país uma corrupção gritante em todos os níveis sociais, possibilitando o livre acesso do tráfico de drogas e de armas, além da venda dos mais diferentes tipos de contrabando, e é claro, dos veículos roubados ou furtados no Brasil. Cidades como Pedro Juan Caballero (cerca de 100 mil habitantes) encontram-se sitiadas por máfias de todos os tipos, promovendo uma série de atrocidades e execuções[7] em toda a região fronteiriça com o Brasil, sobretudo nas proximidades do estado do Mato Grosso do Sul.

Tendo com base os indicadores visualizados, não é difícil entender o por quê do aumento dos níveis de criminalidade nas cercanias destes países, onde a informalidade promovida pela carência industrial produz além da pobreza um fenômeno social atrativo às organizações criminosas, tanto no que diz respeito à produção de drogas, como no contrabando e regularização de mercadorias ilícitas, inclusive de automóveis roubados e furtados em países mais desenvolvidos, como é o caso do Brasil.

Toda a região fronteiriça compartilhada pelos países do Brasil, Bolívia e Paraguai é reconhecida pelas autoridades como “terra de ninguém”, pois se trata de um perímetro de terras dominadas pelo crime organizado, em meio a uma grande informalidade e fragilidade social, sendo o acesso muito fácil desde o Brasil, principalmente entre Ponta Porã-MS e Pedro Juan Caballero, no Paraguai.[8]

  1. 2.     O paraíso dos carros roubados

Muitos veículos roubados ou furtados em solo brasileiro podem ser facilmente localizados em países limítrofes como a Bolívia e o Paraguai. O número é tamanho, que somente na Bolívia, no ano de 2011, o presidente boliviano Evo Moralez concedeu mediante decreto a anistia de pelo menos 128 mil veículos que circulavam livremente pelo país sem qualquer documentação, o que culminou na legalização (ou nacionalização) dos mesmos. [9] No Paraguai, este processo foi igualmente realizado no passado, onde carros de procedência ilícita receberam a devida documentação legal daquele país. [10]

Em meio a este cenário, recentemente o governo brasileiro anunciou a repatriação simbólica de 400 veículos encontrados na Bolívia, todos roubados ou furtados no Brasil. Este ato foi uma consequência direta dos avanços promovidos pela Operação Sentinela da Polícia Federal, cujo interesse preponderante é o combate ao narcotráfico e ao roubo de carros entre as fronteiras do Brasil com estes países, realizando no ano de 2011, um total de 7.500 prisões em flagrante na região. [11]

No caso específico da Bolívia, este país é hoje o maior destinatário de carros roubados ou furtados na América do Sul, ultrapassando o Paraguai, justamente por ter um controle ainda mais escasso por parte das autoridades locais. O drama do país andino se repete em relação aos seus vizinhos, como a Argentina, o próprio Paraguai, Chile, e Peru, que somados, reclamam ao governo boliviano a devolução de 8 mil veículos roubados ou furtados nos respectivos países. Parte deste mercado é motivada pela troca do veículo por cocaína, ainda nas fronteiras.  [12]

A livre circulação de veículos subtraídos nestes dois países ocorre em razão da facilidade de acesso existente nas regiões de fronteira do Brasil com a Bolívia e Paraguai, sobretudo no estado do Mato Grosso do Sul, sendo este o maior “corredor” de saída destes veículos rumo ao exterior. [13]

A grande dificuldade da Polícia Federal na identificação e repatriação destes veículos está na ausência de resposta das autoridades bolivianas, pois uma vez dentro destes países, os veículos não são mais considerados como produtos de crime pelas autoridades locais, o que facilita a ação de criminosos. [14]

  1. 3.     Os veículos no Paraguai e na Bolívia e as moedas de troca

Em países como o Paraguai e a Bolívia, inexistem montadoras de veículos, de modo que a frota nestes locais é inteiramente importada, mediante uma baixa carga de impostos, sobretudo em comparação ao Brasil ou a Argentina. No tocante a Bolívia, [15] há a permissão legal da importação de automóveis velhos ou usados, quase sempre provenientes da Coréia do Sul, China e Japão, havendo o ingresso dos mesmos em território boliviano pela via de portos chilenos, sendo vendidos e comercializados a preços muito baixos.

No que diz respeito ao preço de um veículo brasileiro na Bolívia, sendo ele novo ou usado, custará menos da metade do que no Brasil. Assim, fica evidente que somente será interessante a venda dos mesmos naquelas terras em decorrência de quaisquer atividades ilegais, como golpes de seguradoras, carros roubados e furtados, ou ainda, na hipótese da troca por drogas, sendo cada vez mais usual esta última prática. [16]

Todos estes aspectos encontram um facilitador: A ausência de controle da circulação e entrada de veículos do Brasil para a Bolívia, pois nos postos de fronteira inexistem fiscalizações pontuais, onde o exército boliviano exige apenas duas condições para o ingresso de visitantes: O pagamento de 1 real por veículo e a carteira de vacinação da Febre Amarela, sendo a entrada a pé gratuita. Somada a estes fatores, existem infindáveis estradas secundárias que ligam ambos os países de modo clandestino, onde as autoridades brasileiras visualizam passivamente a constante saída de drogas e de carros roubados, pois na maioria das vezes, não há meios de intervenção efetiva (aparato técnico e logístico).

Na Bolívia, parte destes veículos roubos ou furtados no Brasil é utilizada como moeda de troca por droga, onde há uma clara preferência por caminhonetes, carretas e automóveis importados. [17] O pagamento na entrega do veículo é usualmente feito através da troca do veículo por dólares (inclusive falsos) ou cocaína, unindo os “laços” entre o tráfico de entorpecentes e o roubo de carros, duas das modalidades mais comuns dos crimes praticados no Brasil. [18]

  1. 4.     A regularização de carros roubados ou furtados no exterior

Além da própria regularização por vezes promovida em massa pelos governos dos países do Paraguai e da Bolívia, perduram fundamentalmente outros dois modos de ação diversos deste: [19]

Os veículos são entregues com documentos legítimos e dados falsificados (mediante furtos em órgãos oficiais ou através de corrupções em órgãos de repartições brasileiras), e através disto, são regularizados para a livre circulação nestes países.

Em razão da fragilidade, da pobreza e da informalidade de países como a Bolívia e o Paraguai, os carros roubados são regularizados nestes países através de um instrumento jurídico denominado “contrato privado”, onde é registrado formalmente o veículo roubado sem que haja uma averiguação da procedência ou dos documentos originais, tudo através de um corrupto e caquético sistema de registro de veículos nestes locais. [20]


[1] MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado: Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p.11.

[2] ARAVENA, Francisco Rojas y MARÍN, Andréa Alvarez. América Latina y el Caribe: Globalización y conocimiento. Repensar las Ciencias Sociales. Oficina geral de Ciência de la UNESCO. Montevideo. 2011. p. 313.

[3] CANTELMI, Marcelo. Bolívia: realidades sociales que desmienten las utopías. Diario Clarín, Buenos Aires, 12 de maio de 2012. Disponível em http://www.clarin.com/opinion/Bolivia-realidades-sociales-desmienten-utopias_0_698930245.html. Acesso em 19 out. 2012.

[4] Comissión Econômica para América Latina y Caribe – CEPAL / ONU – Panorama social de America Latina. 2010. Disponível em http://www.cepal.cl/publicaciones/xml/9/41799/PSE-panoramasocial2010.pdf Acesso em 19 out. 2012. p.13.

[5] PNUD, ONU. Informe sobre Desarrollo Humano 2009, Superando barreras: Movilidad y desarrollo humanos, Programa de Naciones Unidas Para el Desarrollo. Nova York, 2009. p.293

[6] Comissión Econômica para América Latina y Caribe – CEPAL / ONU – Panorama social de America Latina. 2010. Disponível em http://www.cepal.cl/publicaciones/xml/9/41799/PSE-panoramasocial2010.pdf Acesso em 19 out. 2012. p.13.

[7] CLARÍN, diário. Macabro hallazgo en Paraguay. Diário Clarín, Buenos Aires, 1 de Julho de 2010. Disponível em <http://www.clarin.com/america_latina/Macabro-hallazgo-Paraguay_0_290371028.html> Acesso em 19 out. 2012.

[8] CORREA, Hudson. Os novos donos do tráfico. Revista Época. 30 de setembro de 2011. Disponível em <http://revistaepoca.globo.com/tempo/noticia/2011/09/os-novos-donos-do-trafico.html> Acesso em 19 out. 2012

[9] O ESTADO DE SÃO PAULO, jornal. Brasil vai repatriar 400 veículos que estão na Bolívia. UOL notícias, 8 de Junho de 2012. Disponível em http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2012/06/08/brasil-vai-repatriar-400-veiculos-que-estao-na-bolivia.htm. Acesso em 7 out. 2012.

[10] GAIGHER, Cláudia. Número de carros roubados aumenta até 19% em alguns estados. Bom Dia Brasil, 11 de setembro de 2012. Disponível em http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2012/09/numero-de-carros-roubados-aumenta-ate-19-em-alguns-estados-em-2012.html. Acesso em 27 set. 2012.

[11] O ESTADO DE SÃO PAULO, jornal. Brasil vai repatriar 400 veículos que estão na Bolívia. UOL notícias, 8 de Junho de 2012. Disponível em http://www.noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2012/06/08/brasil-vai-repatriar-400-veiculos-que-estao-na-bolivia.htm. Acesso em 7 out. 2012.

[12] CLARÍN, diário. Bolívia devuelve coches robados. Diário Clarín, Buenos Aires, 4 de Fevereiro de 2012. Disponível em <http://www.clarin.com/inseguridad/Bolivia-devuelve-coches-robados_0_640136131.html> Acesso em 19 out. 2012.

[13] GAIGHER, Cláudia. Número de carros roubados aumenta até 19% em alguns estados. Bom Dia Brasil, 11 de setembro de 2012. Disponível em http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2012/09/numero-de-carros-roubados-aumenta-ate-19-em-alguns-estados-em-2012.html. Acesso em 27 set. 2012.

[14] GAIGHER, Cláudia. Número de carros roubados aumenta até 19% em alguns estados. Bom Dia Brasil, 11 de setembro de 2012. Disponível em http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2012/09/numero-de-carros-roubados-aumenta-ate-19-em-alguns-estados-em-2012.html. Acesso em 27 set. 2012.

[15] REBELLO, Aiuri. Bolívia, a legalização do crime. Revista Veja. Publicado em 13 de novembro de 2011. Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/a-legalizacao-do-crime Acesso em 20 out. 2012.

[16] REBELLO, Aiuri. Bolívia, a legalização do crime. Revista Veja. Publicado em 13 de novembro de 2011. Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/a-legalizacao-do-crime Acesso em 20 out. 2012.

[17] GAIGHER, Cláudia. Número de carros roubados aumenta até 19% em alguns estados. Bom Dia Brasil, 11 de setembro de 2012. Disponível em http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2012/09/numero-de-carros-roubados-aumenta-ate-19-em-alguns-estados-em-2012.html. Acesso em 27 set. 2012.

[18] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.16.

[19] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.16.

[20] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.16.