Vivemos um momento de crise da cultura popular no Brasil e em especial no Rio de Janeiro. A necessidade de se conseguir vencer na vida, caracterizado pelo grande senso comum de que fazemos parte envolve, obviamente, a camada mais pobre da população e podemos dizer que abarca também os setores que mantêm atividades artísticas.

Já houve uma época no Rio de Janeiro em que os sambistas carregavam, com suas dificuldades específicas, o papel de representantes autênticos da cultura popular. Com o seu caráter sofrido e muitas vezes reivindicativo, expressavam poeticamente a indignação do pobre, ou simplesmente retratavam a dor de forma muito original. A idéia não é romantizar e transformar o samba num movimento politicamente organizado, mas identificar elementos de denso entendimento da vida e do estado de coisas proporcionado pela desigualdade e imensa dificuldade, miséria e falta de possibilidades vividas pelo pobre na favela carioca. Tal como a letra de Nelson Cavaquinho: “Não sei quantas vezes subi o morro cantando, sempre o sol me queimando e assim vou me acabando”.

No entanto, é fácil perceber atualmente uma tentativa de caracterizar o Funk como a nova expressão popular que toma avassaladoramente as massas e consegue espaço em todos os lugares possíveis: eventos elitizados ou de natureza mais popular, universidades, programas de tv, enfim, onde exista entretenimento que necessite de música, está lá, quase obrigatoriamente a presença do Funk.

Deste modo, caímos na armadilha de não perceber o que este estilo musical carrega e quão grave é a realidade destes que representam suas comunidades através do Funk. A melodia que é praticamente a mesma em todas as músicas, a voz sem gênero tecnico e agressiva dos cantores e a violência extremada das letras, inclusive o teor sexual brutalmente exposto, não de forma crítica, e que reduz a condição da mulher de maneira significativa, são elementos que não podem passar despercebidos e se tornarem mero divertimento dançante.

O Funk como expressão popular é o puro produto da miséria de nossa sociedade com sua profunda desigualdade. É também o desdobramento da violência exagerada vivida nas favelas e do terror sofrido pelos moradores, seja ele um terror “branco”, pelo fato de ter que conviver com homens armados até os dentes na porta de casa e na eterna expectativa de surgir algum confronto, ou “sangrento” quando se é obrigado a esconder-se velozmente de um tiroteio ou quando aparece, atirando para todos os lados, o tão famoso “Caveirão”, proporcionando tragédias em cima de tragédias àqueles trabalhadores que vivem naturalmente na penúria.

É legítimo o papel do Funk enquanto manifestação popular, mas também é real a falta de oportunidade do pobre de conhecer sua própria cultura, pois não lhes é mostrada, pelo contrário, é ocultada e transformada em obsoleta, sendo a cultura popular, chamada de “raiz”, usufruída apenas pelos intelectuais e membros da elite tornando-se cult. Também é legítima a exclusão da classe popular do direito ao ensino e a educação de qualidade, além do acesso aos locais onde se promove a cultura na cidade. A vida do favelado se resume à comunidade. A exclusão se dá inclusive geograficamente. Lá ele encontra de tudo, sai apenas para trabalhar, ou estudar, sendo o seu divertimento principal o baile Funk. No baile convivem legiões de viciados, traficantes, ambulantes que “dão duro” toda a noite, com sono, e um sem número de pessoas maltratadas que dançam ao lado de metralhadoras e tem aquilo como único divertimento. Lhes é negado também o acesso à informação e o incentivo necessário para que a população se integre realmente, para que o favelado saia do gueto. O baile funk, tal como acontece na favela, caracteriza-se como o máximo do underground, o maior exemplo de submundo no Rio de Janeiro.

Devemos entender o Funk, então, como a clara expressão da pobreza e injustiça, como uma evidência da situação social vivida no país, devemos analisar o que está por traz desta manifestação, o por que das letras, do ritmo, da repetição. Características que chocam a população e que nos faz rir, nos estimulam a dançar, sem nos darmos conta de seu real significado. O Funk, hoje, funciona como um instrumento de alienação, apesar da agressividade das letras, que chegam a chocar, é verdade, mas que não dizem nada de substancial a respeito do sexo ou da violência, apenas nos mostram o pensamento espontâneo deste grupo injustiçado que acaba por contribuir para a vulgarização destes temas ao reiterá-los. Não há crítica, por mais simples que seja, acerca destas questões, tal como o exemplo do samba acima citado. As reivindicações, também por menores que sejam, são esquecidas, restando apenas o caráter exótico e apelativo da violência e do sexo. Assim, as coisas permanecem em seu devido lugar, é importante pra a corrupção que a “massa funkeira” continue ali, ausente das discussões políticas, das buscas pela reflexão de sua própria realidade. E nós, escritores, nos deixamos levar por este exotismo e pela “graça” proporcionada pelo escracho. Passamos por tantas questões sem nos atentarmos para o grande significado que tem o Funk no quadro da sociedade e o conjunto de evidências que ele traz consigo.

Com relação à mercantilização propriamente, vemos como os funkeiros são explorados pelas equipes de som que detêm os monopólios dos bailes funks, ganhando rios de dinheiro, enquanto os próprios cantores não vêem suas vidas mudarem de forma considerável. Atraídos pela possibilidade de ganhar dinheiro e ficarem famosos, eles se apresentam nos bailes que são promovidos por estas empresas, tal como a poderosa Furacão 2000, que aumenta mais e mais o seu Império. Percebemos também o caráter passageiro do mc que faz o seu sucesso relâmpago, mas depois é rapidamente esquecido, substituído por outro, não encontra mais espaço, pois passa a não ser mais útil lucrativamente aos donos dos bailes.

O funk é apenas um elemento desta mercantilização da cultura popular. É impressionante como o que caracteriza o sucesso é o que vende mais. O sucesso se dá no que é lucrativo. Um exemplo disso são aqueles conjuntos formados em programas de televisão e que antes de lançarem o primeiro trabalho, devido ao marketing, já são sucesso. A população não emite opinião, não gosta nem desgosta, apenas consome. É como se o povo não tivesse, de fato, chance de escolher o que consumir, ele é bombardeado por uma série de produtos que geram muito dinheiro e acaba por desconhecer uma série de outros trabalhos que fazem trajetória no exterior, lá são respeitados e verdadeiramente ocultados aqui no Brasil.

Tal fato ocorre porque é impossível entrar para o sistema comercial se o artista não seguir as regras do jogo ditado e é normal encontrarmos, por exemplo, músicos que, para conseguirem um contrato com uma gravadora, se vêem tendo que modificar seu estilo, aquilo que caracteriza essencialmente o seu trabalho. Tal violência já está sendo considerada normal e aceita com tranqüilidade, quando na verdade não passa de uma censura disfarçada, pois não é proibido se expressar da maneira que quiser, nem dizer ou se colocar livremente, porém, simplesmente, os espaços são fechados se o padrão é desrespeitado. Se não vender não interessa. O mais grave, no entanto, é o fato de que não há o menor interesse de se abrir novos mercados, de dar mais alternativas de gostos à população. O problema é político. O povo consome o pouco e mísero do que já existe por que não lhes é apresentado o diferente, ou mesmo o que já existe há anos. Inúmeros são os artistas brasileiros, os músicos em particular, que construíram há tempos uma carreira respeitada internacionalmente, mas que não conseguem espaço no país e, conseqüentemente, o povo é privado de conhecê-los. A real possibilidade de escolha fica para aqueles que têm meios e poder aquisitivo, além de uma instrução, que lhes possibilitem o contato com este pequeno mundo de poucos.

É desta forma que, como estudantes, necessitamos atentar mais para o que consumimos e para o que nos cega perante os modismos que tomam o lugar de certos trabalhos que contribuiriam muito mais para a nossa formação enquanto críticos do mundo. Também para a forma com que devemos encarar certos materiais que trazem consigo um sem número de questões sobre a sociedade e que não conseguimos enxergar. Talvez por que estejam agindo sobre nós mesmos da maneira mais precisa possível. Fazer a própria crítica do Funk é, para muitos, agir preconceituosamente, entretanto, na minha opinião, depende de como se é feita tal crítica e de como o observamos e o entendemos: se como um mero produto, uma mercadoria ou como um meio de perceber melhor os problemas do Rio de Janeiro. Se apenas ao ouvirmos e dançarmos, conseguimos obter sua real dimensão e conviver com o que ele representa.