Caminhando pelas ruas vazias de Cabo Frio, naquela tarde baldia, sob um sol hesitante acossado por nuvens cinzentas vindas do sul, tive uma sensação ruim que me embrulhou o estômago e me turvou a alma. Era março de 1981 e as recordações dos dias agitados do verão recém-terminado ainda estavam frescas na memória. A cidade, pulsando no ritmo sonolento do outono, nem parecia a mesma, turbulenta e feérica, de até alguns dias atrás.

A transição abrupta da temporada de férias para a época escolar nunca deixava de ser melancólica. Ontem, o movimento frenético e incessante dos múltiplos bandos de jovens em busca de todo tipo de diversão nos espaços azuis do mar e da terra iluminada por um sol jovial, enchendo a cidade de alvoroçada vitalidade; hoje, resta o vento frio de sul na paisagem silenciosa e a expressão preocupada das poucas pessoas que passam, concentradas em suas obrigações. Mas a tristeza inevitável dessa passagem durava pouco. Reencontrar os amigos na escola era um prazer que renovava o espírito rapidamente e logo a turma local se reagrupava para aproveitar as muitas ocasiões de aventuras que o canal, o mar e os amplos espaços ofereciam. E tudo voltava ao normal.

Desta vez, porém, era diferente. Por variadas razões a minha turma se dissolvera após três anos de atividade quase ininterrupta e eu me sentia sozinho. Além disso, e não menos importante, aproximavam-se os dezoito anos e o espectro das escolhas difíceis me assombrava mais a cada dia. Serviço militar, vestibular, mudança para a metrópole, faculdade, carreira, trabalho. Terminara o tempo de puro prazer e descoberta, sem responsabilidade e sem adversidade. Nada seria como antes.

Naquele dia, enquanto o vento sudoeste trazia a primeira frente fria do ano, senti um tanto difusamente que a minha Idade do Ouro se encerrara. Tive ainda algum tempo, mais um verão, uma nova turma de amigos, outras diversões, mas já não era a mesma coisa. Um dia, peguei o ônibus para o Rio de Janeiro sabendo que jamais voltaria. Não havia porque nem para o que voltar. Mais do que um lugar, juventude, relações e pessoas queridas, a Idade de Ouro é isso tudo dentro de um lapso de tempo determinado. Findo esse tempo, ela não existe mais.

Mas o tempo passa e, com a maturidade, se superam as dores do rito de passagem que trouxe inexoravelmente a vida adulta. É o momento de olhar para trás e ver a si mesmo lá longe, congelado na idade da inocência, o que não se faz sem ternura, compaixão e uma certa melancolia.

Essa fase da vida é, creio, o melhor momento para se apreciar duas obras-primas do cinema que retratam esse momento decisivo com toda a minúcia sentimental possível: I Vitelloni, de Frederico Fellini, e American Graffiti, de George Lucas. Não tinha visto nenhum dos dois clássicos, uma lacuna na minha formação cultural que supri finalmente no momento mais oportuno possível. Eu não teria compreendido exatamente a essência das duas obras se as tivesse visto mais jovem ou mais velho.

O filme de Fellini é de 1953 e consagrou mundialmente o diretor italiano. Com toda a justiça. Ninguém envolvia com mais delicada afeição seus personagens e paisagens do que esse grande artista, mais ainda nesta história claramente autobiográfica. Fellini está olhando para si mesmo no passado e o faz com um lirismo difícil de superar. O filme se passa em uma cidadezinha da costa do Adriático, reminiscência da Rimini natal do diretor, e retrata a vida boêmia e descompromissada de uma turma de amigos. A trama segue principalmente as peripécias amorosas de Fausto, um mulherengo incorrigível, que arrasta os demais nas enrascadas em que se mete. Há cenas de beleza universal, como a dos amigos cantando e dançando abraçados pelas ruas desertas da cidade, de madrugada, após a enésima bebedeira. Quem não fez isso na juventude, saboreando a felicidade fugaz de um momento perfeito que escorre entre os dedos e fica para trás? Eu fiz, e você?

As histórias engraçadas vão se sucedendo, mas logo se percebe que a tensão não está bem nelas e sim na situação geral dos personagens. Vê-se que a Idade de Ouro deles acabou há muito tempo, já são adultos e precisam urgentemente seguir com a vida, mas não conseguem. Seguem vivendo como adolescentes irresponsáveis e acabam prisioneiros de uma ilusão, porque se recusam todos a encarar a realidade. Agem como se fosse possível viver assim para sempre, desejando que o mundo se amolde a eles e não o contrário.

Fellini expressa toda a dor da situação dos “boas-vidas” em momentos de denso simbolismo que estão entre os mais belos da história do cinema. Os amigos vão passear na praia vazia de uma tarde cinzenta de inverno e olham para o mar desolado. Todo o desespero da condição deles está concretizada naquele lugar e naquele instante, mas nem assim acham coragem para enfrentar os fatos e fazer o que é preciso fazer. É preciso estourar a bolha de sabão do mundo de fantasia em que estão e retomar contato com a vida. É preciso ir embora daquela cidade! Mas quando Olga, a irmã do sonhador Alberto, toma coragem e faz exatamente isso, todos a recriminam com amargura, ostensivamente por partir com um homem casado e deixar para o irmão o ônus de cuidar da mãe idosa e doente, mas, na verdade, por se recusar a permanecer no delírio coletivo em que eles vivem. Isso é uma traição imperdoável.

O galanteador Fausto engravida uma garota e tem que se casar. Ele arranja um emprego, mas nem por isso abandona a quimera da eterna juventude boêmia. Flerta com a mulher do patrão, que lhe jogara confete em um baile de carnaval. Ela o recusa, mas ele mexe nos bolsos da calça, encontra restos de confete que lança sobre ela e relembra o episódio. Ela o recusa ainda mais firmemente. “Não é mais carnaval”, diz. Ele não a compreende, porque na miragem em que se encerrou o carnaval nunca termina.

O único personagem que está dolorosamente consciente do dilema e gradualmente o enfrenta é Moraldo, alter ego de Fellini, interpretado com amarga sutileza por Franco Interlenghi. Ele quase não fala, expressando somente  - e magistralmente - com o olhar o crescente desconforto com a situação. A cena final, em que Moraldo finalmente se decide a romper o impasse, comovente e memorável, coroa um filme absolutamente perfeito.

George Lucas se celebrizou com a saga Stars Wars, como todos sabem. A meu ver, contudo, quando baixar a poeira da contemporaneidade, nenhum dos filmes da série espacial ficará para os séculos. American Grafitti, sim, fará esse cineasta ser lembrado para sempre. Nele Lucas aborda o mesmo tema que Fellini – inclusive inspirou-se na fita do italiano para criar a sua. Enquanto Fellini retrata, em preto e branco, a depauperada Itália do pós-guerra, Lucas ambienta sua própria história – que também é autobiográfica – na opulenta América dos anos 50 e inicio dos anos 60, em cores maravilhosamente vivas.

Para apreciar o filme, entretanto, o espectador atual precisa antes desfazer alguns mal-entendidos.  Acontece que, quando foi lançado, em 1973, American Grafitti cativou o público por mostrar a América inocente e ingênua de antes dos conflitos e distúrbios sociais predominantes após os assassinatos de figuras políticas, o movimento hippie e a Guerra do Vietnã. Daí o sucesso estrondoso de crítica e bilheteria proporcionado por uma geração saudosa de um ambiente cultural não conflituoso e polarizado. Além disso, American Grafitti foi inicialmente visto como o primeiro filme a misturar nostalgia dos anos 50 e o universo adolescente da high school americana.

O que era atrativo em 73 hoje funciona ao contrário. Os anos 50 estão muito distantes para evocar memórias agradáveis nas gerações que vieram depois do lançamento do filme. Esse aspecto, inteiramente datado, nada diz ao espectador moderno. Ademais, filmes idealizando os anos 50 e, mais ainda, retratando o mundinho escolar americano, tornaram-se clichês até repulsivos. Por isso, leitor, se começar a assistir ao filme, não se assuste e não desligue a TV. American Grafitti NÃO É UM FILME SOBRE HIGH SCHOOL E ANOS 50. O tema da fita é o rito de passagem da adolescência para a vida adulta que afeta todas as pessoas de todas as épocas e de todos os lugares e que, nesse caso, se passa nos Estados Unidos em uma determinada época. A ambientação particular dessa história não deve obscurecer o seu caráter universal.

Superadas essas barreiras, uma obra-prima se desenrolará diante dos seus olhos. O filme narra uma noite do verão de 1962, época em que as correntes formadas nos anos 50 tinham se adensado e a cultura juvenil com seus ícones, ídolos e modelos chegara ao mainstream pela primeira vez na História. E para ficar. Lucas enfatiza esse aspecto com muita propriedade, enchendo a tela com carrões envenenados (“hot rods”) ao som da pop music rica e melodiosa da época.  Só pela beleza plástica e pela trilha sonora o filme já merece uma vaga entre os grandes.

Lucas, porém, vai muito além da beleza das formas, ingressando impetuosamente no drama adolescente, sem tempo para introduções e apresentações. A trama gira em torno de um grupo de jovens e o baile escolar de formatura. Ao contrário de Fellini, que mostra seus personagens congelados em um sonho de juventude eterna em que a passagem do tempo é quase irrelevante, George Lucas joga seus protagonistas na velocidade estonteante de uma única noite. E o espectador tem que conter a angústia de ver passar essa última noite da Idade do Ouro quase em tempo real.

Sim, a Idade de Ouro acaba AGORA. Não há mais tempo para hesitações e adiamentos. Amanhã será absolutamente necessário fazer escolhas definitivas e pagar o preço por elas. Não decidir nada é escolher viver prisioneiro da imagem de um tempo querido que acabou. É fazer a escolha terrível de viver como os boas-vidas de Fellini. Lucas mostra a agonia dos jovens com maestria pungente e, assim, iguala-se ao mestre italiano.

A cena inicial introduz as principais figuras se encontrando no estacionamento de uma lanchonete tipo drive-in, enquanto o sol se põe. Cores deslumbrantes e simbolismo servem para realçar a tensão psicológica que aflige os garotos e que vai se avolumando enquanto se aproxima o fim. O baile vem e vai, mas a noite segue arrastando os jovens que vagam em seus carros pela cidadezinha (inspirada na pequena Modesto, California, onde Lucas passou a adolescência). Trata-se do “cruising”, costume dos jovens de circular à esmo pela noite em busca de diversão. Não há linearidade ou trama central e as histórias se entrecruzam quase ao acaso. Com esse oportuno recurso de narrativa, Lucas amplia a pressão que afeta os garotos à medida em que o tempo se acelera. Eles buscam soluções mágicas que os salvem do dia seguinte. Curt Henderson (Richard Dreyfuss, excelente), angustiado com a partida para a faculdade marcada para a manhã seguinte, pensa ter encontrado a salvação quando vê uma linda menina dizer que o ama em outro carro, no sinal fechado. Ele tenta desesperadamente encontrá-la, mas, como uma miragem, a garota se desvanece. Quando descobre quem ela é, é muito tarde. O dia já raiou e Curt agora deixará a cidade para sempre. A Idade de Ouro terminou. O desfecho de American Graffiti deixa um pouco a desejar, mas felizmente não estraga a história.

Terminei de ver ambos os filmes com um travo amargo na garganta, sinal de que compreendi bem o âmago de cada um deles e, como Fellini, Lucas e todos os que atingem a idade madura, senti a dor do acerto de contas com o relutante adeus à minha própria juventude.